segunda-feira, 4 de março de 2024

JESUS CRISTO OU A DESSACRALIZAÇÃO DA RELIGIÃO

 





Paulo Cugini

 

 

Deus decidiu manifestar-se, dizer quem é, mostrar-se aproximando-se de nós até se tornar um de nós. É sobre este aspecto que a meu ver vale a pena reflectir, para compreender as diversas implicações que este acontecimento único na história da humanidade produziu. Até à chegada de Jesus existia uma distinção muito precisa entre o sagrado e o profano (cf. Mircea Eliade), com tudo o que uma separação deste tipo implica. Sagrado fala de distância, de separação do que é profano. O nascimento de Jesus numa manjedoura representa a destruição do sagrado, a sacralização do profano, a destruição de todo tipo de distância e separação entre o sagrado e o profano, porque no caso do Natal, o sagrado passa a habitar o profano, e o profano se torna o lar do sagrado. Ao nascer numa caverna, Deus realizou um processo de humanização do divino e de divinização do humano, querendo assim desconstruir o processo humano de sacralização do divino. Deus em Jesus sacralizou o tempo, rompeu distâncias e, consequentemente, aproximou-se de cada homem e de cada mulher.

O que significa esta aproximação que é, ao mesmo tempo, uma identificação? Significa que a partir de agora não precisamos mais sacralizar os espaços religiosos, porque a sacralização foi um processo da religião ancestral, muitas vezes e voluntariamente manipulado por aqueles que administravam o poder religioso. Em segundo lugar, tendo-se humanizado, Deus deu a todos o acesso ao divino, tirou de alguém o domínio religioso, para se entregar a todos. Na verdade, a partir de Jesus, a igualdade tornou-se o sinal visível da presença de Deus na carne humana. É por isso que o nascimento de Jesus significa o fim e o julgamento negativo de todo modelo social que produz desigualdades, separações, divisões. Se Aquele que estava lá em cima no céu veio à terra e veio morar entre nós (cf. Jo 1, 1s), significa que, de agora em diante, ninguém poderá se colocar no alto, considerando-se melhor que os outros. Jesus é a presença da igualdade: ao vir ao mundo e viver entre nós. Na presença de Jesus na terra, Deus quis dizer que todos somos dignos, porque não se aproximou de alguém, mas de todos.

O reino dos céus anunciado por Jesus é uma advertência clara contra todos aqueles que produzem e mantêm o nefasto modelo económico do neoliberalismo, que produz cada vez mais pobres, em favor de uma pequena elite de ricos cada vez mais ricos, face à os pobres. Onde há desigualdade não há presença de Cristo, porque Jesus escolheu os pobres, isto é, o desejo explícito de dar dignidade a cada pessoa. Esta identificação de Jesus com os pobres, que encontramos no momento do nascimento, é indicada pelo próprio Jesus como critério para entrar no Reino dos céus (cf. Mt 25,32s). O caminho da vida na terra, para os discípulos de Jesus, só pode ser caracterizado por um estilo simples e uma postura perante os pobres. Não é por acaso que a Igreja, desde a sua origem, desenvolveu esta atenção aos mais pobres, propondo o caminho da solidariedade e da partilha. Depois, a partir do século V d. C., tudo desandou, mas isso é outra história.

 

Este aspecto da dessacralização da religião alcançada com a vinda de Jesus ao longo do tempo, manifesta-se na polémica com os fariseus sobre o puro e o impuro e, sobretudo, sobre o templo. A crítica radical de Jesus à religião do templo, que explode no Evangelho de João desde o início, ou seja, no capítulo dois, será explorada em profundidade no capítulo quatro, no diálogo com a mulher samaritana. O Templo, em vez de ser o lugar de encontro com Deus, tornou-se ao longo do tempo o seu oposto, ou seja, um obstáculo. Por que? Existem algumas passagens do Evangelho de João que nos ajudam a compreender o problema:

“Entretanto, aproximava-se a Páscoa dos judeus.” Uma passagem que já dá o tom da polêmica: não é mais a Páscoa de Deus, sua passagem que salva o povo, mas a Páscoa dos judeus, isto é, dos líderes do povo, como pode ser visto no contexto da passagem. Ao longo dos séculos, houve um caminho de transformação negativa. A Páscoa já não é a Páscoa do Êxodo, mas do regime judaico, tornou-se um instrumento de dominação, uma Páscoa em benefício de poucos que zelam pelos seus próprios interesses. A Páscoa tornou-se uma fonte de lucro mesmo às custas dos pobres.

Ele disse aos vendedores de pombas…” as pombas são os animais que os pobres poderiam usar para oferecer sacrifícios. Pois bem, o desastre moral chegou ao ponto em que os comerciantes também lucraram com os pobres. Parece que estamos a ouvir a voz dos profetas, em particular do profeta Amós, que insultou os ricos do seu tempo porque exploravam os pobres, vendendo-os por um par de sandálias (ver Os 2.6). Quando os pobres são explorados, significa que o nível social de um povo atingiu verdadeiramente o fundo do poço. O pior é que isso acontece no templo. Como pode uma religião ter perdido de vista o seu ponto de referência a ponto de cometer tais crimes? O pior é que isso é feito no templo de IHWH, que sempre teve uma preocupação especial com os pobres.

Não façais da casa de meu Pai um mercado ”. Se há algo que é antitético ao Deus de Israel, é o mercado. Na verdade, Deus é doação total, é gratidão, está atento aos pequenos. Pelo contrário, o mercado é o interesse, modelado no egoísmo, que esmaga os pequenos. A crítica de Jesus ao templo chega ao paroxismo. Como pode um templo tornar-se o lugar do mercado e da sua lógica?

“Destrua este templo ”. Jesus veio para destruir o templo, aquele lugar que com o tempo se tornou um símbolo de desigualdade e injustiça social. Este é o objectivo do caminho cristão: escapar à religião negativa, à religião que fere, que em vez de ser um estímulo à igualdade se torna um espaço para todas as formas de injustiça e de discriminação. Fugir da lógica do templo como lugar de desigualdades. Na verdade, já no livro de Levítico existem muitas prescrições cultuais que proíbem o acesso a pessoas em situação de impureza. Leprosos, doentes, estrangeiros, pagãos, mulheres menstruadas: muitas pessoas não conseguem aceder ao Templo. Sair da lógica do templo feito pelos homens, que é um espaço de desigualdades e de lógicas perversas, para seguir o caminho que Jesus propõe, baseado no amor e na misericórdia.

É este caminho que as comunidades cristãs devem seguir: abandonar formas excessivas de sacralização religiosa, muitas vezes sinal de manipulação de um grupo em detrimento da maioria, para dar espaço a formas de acolhimento, sinal da misericórdia de Deus manifestada no seu Filho Jesus. Comunidades cristãs, cujo sinal característico se torna o novo estilo inaugurado por Jesus, em que ninguém se sente excluído porque todos podem ter acesso a Ele. Comunidade em que homens e mulheres, em vez de se preocuparem com as formas externas de expressão da devoção cultual, questionam sobre a bondade de seus relacionamentos e os métodos implementados para demonstrar o caminho de igualdade e misericórdia proposto por Jesus.

4 comentários:

  1. Grande exploração sobre a vida de Jesus os textos de padre Paolo são riquíssimos nos mostra com clareza quem é Jesus

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  2. Quem dera pudéssemos seguir realmente alguns preceitos cristãos: amor, misericórdia, humildade, igualdade...

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  3. Saudades da sua sapiência e presença...

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