domingo, 22 de outubro de 2023

O DEUS QUE É PAI TAMBÉM É HOMEM?

 





Paolo Cugini

A grande tarefa da teologia feminista, expressa em numerosos estudos, consiste em libertar a palavra de Deus da estrutura patriarcal que, antes de ser um modelo religioso, é um modelo cultural e social bem estruturado. É o patriarcado que justifica o sistema familiar que define pais como chefes de família com poder explícito sobre a esposa e os filhos (SAFFIOTI, 2015). 

O próprio patriarcado estende, em nível social, a definição de papéis específicos para homens e mulheres, homens que sempre ocupam posições dominantes das quais as mulheres são excluídas. O sistema patriarcal, portanto, elabora um processo de desigualdade entre homens e mulheres, criando uma situação cultural constante de submissão de mulheres a homens. O patriarcado, assim entendido, não é apenas um produto social, mas encontrou apoio no mundo religioso até os dias atuais. De fato, o Ocidente cristão "produziu uma série de relações desiguais de poder; Deus como Pai governa o mundo, santos padres governam a Igreja, pais clericais governam os leigos, homens governam mulheres, maridos esposas e filhos e, finalmente, a humanidade governa a criação " (CAAR, 1991, p. 93). 

Nesse ponto da discussão, o pensamento feminino suspende a reflexão para se perguntar: o Deus Pai tem a ver o que com esse sistema opressivo? É a vontade de Deus que as mulheres sejam submissas aos homens? É possível pensar de maneira diferente sobre Deus e seu relacionamento com a criação e as criaturas? Mais uma vez: é possível libertar a palavra de Deus de formas antropomórficas, que ao longo dos séculos, fizeram de Deus um ser cada vez mais masculino às custas do mundo feminino, com todas as consequências daí decorrentes? Se é o sistema patriarcal que descreve a identidade de Deus, a teóloga Mary Daly tem razão quando diz: "se Deus é homem, então homem é Deus" (DALY, 1990, p.27). 

Novamente no livro mencionado, refletindo sobre as consequências da assimilação do modelo patriarcal pela igreja, a teóloga estadunidense Mary Daly mostra como os dogmas e artigos de fé emitidos tendem a propor a estrutura bilateral da relação homem-mulher, que justifica o modelo de submissão, tornando-o credível na sociedade civil. Portanto, não é simplesmente uma questão de entender um modelo social específico que foi estruturado ao longo dos séculos e que justifica as relações binárias de submissão e dominação, com todas as consequências da violência e abuso que todos conhecemos. 

Não é por acaso que, depois que as massas trabalhadoras do século passado se afastaram da Igreja devido à sua identificação com o poder político e econômico, encontrando-se, portanto, nem representadas nem protegidas, hoje muitas mulheres, que no ocidente atingiram um nível cultural significativo, não mais se veem representadas por uma estrutura religiosa patriarcal que justifica a inferioridade de um sexo em outro e a consequente submissão e, por isso, afastam-se dela. 

O problema é entender de que lado Deus está e se é realmente que justifica esse sistema de relações injustas ou se ocorreram interpolações culturais, que mudaram a interpretação em uma certa direção, a saber, a direção patriarcal. Nesse ponto, torna-se extremamente importante, não apenas para as mulheres, mas também para os homens, ouvir as reflexões das teólogas feministas que, em várias ocasiões e de maneiras diferentes, releram o texto bíblico com essas questões significativas. É possível, então, libertar a palavra de Deus do patriarcado, organizado por meio de uma série de relações de subordinação e exclusão? "Como podemos dizer o relacionamento de Deus com o mundo - Elisabeth Green se pergunta - para não reproduzir relacionamentos hierárquicos entre pessoas e principalmente homens e mulheres?" (GREEN, 2015, p. 27). Ainda seguindo Green, que estudou em profundidade este tema em várias pesquisas, tomamos o Antigo Testamento como um ponto de referência para compreender alguns aspectos que o pensamento masculino não nos permite observar.

 Se lermos atentamente o texto de Êxodo 3: 13-15, no qual Deus, depois de manifestar seu nome, acrescenta: “Você dirá aos israelitas: O Senhor Deus de seus pais, Deus de Abraão, Deus de Isaque, Deus de Jacó, ele me enviou para você. " De como a história realmente vai, percebemos que esse versículo não justifica a abordagem patriarcal. "Se olharmos para a narração das origens de Israel, descobrimos que ela não apresenta uma identificação simples entre Deus e a ordem patriarcal, pois isso está arranhada em três pontos importantes: paternidade, sucessão, protagonismo das mulheres" (GREEN, 2015, p. 48). Na história de Abraão, por exemplo, o fluxo dos relacionamentos dos pais é interrompido pela ordem de Deus para abandonar a casa do pai. Tudo isso é muito semelhante a uma relativização dos laços familiares de Deus, um sentimento confirmado pelo relacionamento com seu filho Isaac, sancionado por seu sacrifício, que passa por um vínculo e uma desligação, entendido como a libertação de Isaac da necessidade de paternidade (RECALCATI, 2013, p. 34). Elisabeth Green observa que tudo isso acontece não em resposta à palavra paterna, mas a uma palavra divina sem conotações paternas, senão aquelas que lhe foram atribuídas mais tarde. "Portanto, a ordem patriarcal - continua Green - não é simplesmente confirmada: Abraão é introduzido em outra ordem: a da promessa" (GREEN, 2015, p. 49).

Também é interessante notar a questão da sucessão que, diferentemente de como a imaginamos, na história patriarcal, a herança patrilinear não ocorre através do primogênito, mas na direção oposta. De fato, não é o primogênito de Abraham Ishmael que herda as promessas, mas Isaac, que é o primogênito não de Abraão, mas de Sara. O mesmo acontece com Jacob, o favorito da mãe, que herda a promessa enquanto é o segundo filho, roubando a primogenitura de Esaú. Existe, portanto, uma ordem patriarcal que a palavra de Deus parece ignorar, fazendo as promessas passarem por caminhos diferentes daqueles marcados pela cultura dominante. Enquanto a cultura patriarcal ignora a presença de mulheres, deixando-as de lado e proibindo-as de falar, a palavra de Deus parece ser diferente.

Muitos estudos de teologia feminista enfatizam o protagonismo feminino nas histórias dos patriarcas. É difícil, de fato, passar despercebida a esterilidade de todas as esposas dos três primeiros patriarcas, Sara, Rebeca e Raquel, esposas de Abraão, Isaac e Jacó, respectivamente. Para Elisabeth Green, esse dado bíblico retomado em outras partes das Escrituras, em vez de indicar que é Deus quem dá vida e não o homem, sublinha que não é o pai que cumpre as promessas. Na verdade, é Deus quem torna Sarah, Rebecca e Rachel capazes de conceber um filho e não seus respeitáveis ​​maridos. O que está em jogo não é tanto a autoria desses homens que, como sabemos, já eram pais por causa da estrutura poligâmica da cultura atual, mas a maternidade das mulheres que Deus escolheu para cumprir suas promessas. Segundo a teóloga Irmtraud Fischer: "Desde o início, a promessa divina relativiza os laços familiares e o relacionamento pai-filho, rompe a ordem da sucessão patriarcal e funda a casa de Israel através das mulheres, dando-nos lendas com uma estrutura igualitária" (FISCHER, 2009, p. 241).

Também interessante nessa perspectiva, como o nome que Deus revela a Moisés em Êx 3,14, na verdade não é um nome, mas um verbo mais um pronome, que nada tem a ver com a paternidade. Segundo o filósofo Paul Ricoeur, essa revelação do nome representa "a destruição de todos os antropomorfismos, de todas as figuras e figuras, incluindo a do pai: o nome contra o ídolo" (RICOEUR, 1977, p.502). Juntamente com Robert Con Davis (1993), Elisabeth Green argumenta que o tetragrama, sendo escrito de uma maneira e lida de outra, pode ser considerado um texto imperfeito, cuja interpretação nunca é completa, exigindo um esforço contínuo de compreensão. Nesta perspectiva, muitos argumentam que o propósito do nome revelado a Moisés é proteger a incompreensibilidade de Deus, proteger sua identidade de antropomorfismos fáceis e identificações materiais. É por essa razão que algumas teólogas veem a possibilidade de declinar Deus à maneira feminina (JOHNSON, 1999), de falar dele em novos termos, libertando-se, por assim dizer, do esquema patriarcal.

Sempre mantendo o Antigo Testamento como ponto de referência, é importante focar a atenção no tipo de simbolismo colocado em prática para descrever o caminho da eleição e da aliança, que revela a relação entre Deus e o povo de Israel. No que é definido como simbolismo indireto, expresso por exemplo em textos como Êx 6,7 ou Os 11,1, a paternidade divina é social e não biológica. De fato, não há relacionamento parental entre o pai Deus e o filho Israel. Deus não gera Israel e, portanto, somos confrontados com um tipo de paternidade absolutamente desprovida de sexualidade (SARACENO, 2012). O simbolismo direto implementado especialmente nos períodos em que Israel esquece a aliança com Deus, manifesta uma riqueza de versículos nos quais a referência ao gênero feminino é visível. Entre as muitas possíveis, cito o famoso texto de Isaías 49.15, que diz: “Uma mulher pode esquecer o bebê que amamenta, deixa de sentir pena dos frutos do intestino? Mesmo que as mães esqueçam, eu não vou te esquecer". Declinar ao masculino textos como esse é problemático. Ouvir o texto sagrado, desconstruir as estratificações patriarcais, permite trazer tesouros insuspeitos da graça, tesouros com um sabor feminino que enriquecem e dão um novo significado também às leituras masculinas da Palavra. Percebemos que declinar Deus ao masculino não é apenas arriscado, mas enganoso.

 

Um comentário:

  1. Gratidão pelo texto, como estamos longe de mudar essa realidade, mas é nos pequenos espaços que vamos tecendo olhares diferentes, uma cultura que respeite das diferenças nas tantas diversidades. Desconstruir a cultura patriarcal é e será sempre um trabalho de mulheres e homens.

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