A percepção que recebemos
quando prestamos atenção ao desenvolvimento da cultura pós-moderna é a tomada
de consciência de que está faltando um esquema de referência que norteia a vida
cotidiana. Como nos lembra Charles Taylor: “uma estrutura de referência é
aquilo que nos permite dar um sentido à nossa vida espiritual. Não possuir uma
estrutura de referência quer dizer cair numa vida espiritualmente sem sentido”
(TAYLOR, 1998, p. 32). A estrutura de referência é o marco da cultura moderna
ocidental. A identidade pessoal é moldada em valores assimilados desde a
infância. Educar uma criança significa fazer de tudo para que ela assimile os
valores e as virtudes necessárias para a integração na sociedade. É isso que nós
encontramos já na antiguidade grega com a experiência da Paideia da Polis,
onde as crianças aprendiam as virtudes necessárias para uma vida socialmente
digna. Nesta primeira parte do artigo, queremos oferecer algumas chaves de
leitura para entendermos a origem da estrutura do pensamento ocidental que se
desenvolveu ao redor de algumas contraposições e, entre elas, vale a pena
destacar o dualismo de harmonia e caos que desemboca no dualismo entre razão e
sentimento de um lado e o contraste entre espírito e matéria que desemboca no
dualismo de corpo e alma do outro. É a partir destas contradições que é
possível entender a fonte dos valores e normas éticas que moldaram a cultura
ocidental e, em seguida, compreender a crise da sociedade pós-moderna.
A experiência da cultura grega
tem na tragédia um ponto de referência incomparável. Segundo Friedrich
Nietzsche, o nascimento da Tragédia Grega deve-se sobretudo à dicotomia do
apolíneo e do dionisíaco (NIETZSCHE, 2007). O termo dionisíaco vem da figura do
deus grego Dioniso, cuja presença deriva da influência das tradições orientais.
As festas dionisíacas comportavam danças compulsivas ao fim de alcançar uma
forte emoção e a superação do próprio eu, para que pudesse emergir o mesmo si
natural, típico do impulso vital, da criatividade, do desejo no seu aspecto
mais instintivo. Foi desta maneira que o dionisíaco foi se identificando com
instinto, emoção, irracionalidade, sensualidade e criatividade. Por outro lado,
o apolíneo é a tentativa de captar a realidade através de construções mentais
ordenadas, negando o caos, que é um aspecto típico da realidade, bloqueando
desta forma o essencial dinamismo da vida. O espírito apolíneo expressa o
componente racional do indivíduo, que vem se contrapondo ao espírito dionisíaco
que, por isso, representa o seu contraste. A filologia clássica ao tempo de
Nietzsche era convencida de que o mundo da civilização grega fosse
caracterizado por um espírito de equilíbrio entre dionisíaco e apolíneo.
Enquanto o apolíneo dominava na arte e na escultura, o dionisíaco prevalecia na
música e na poesia lírica. Também a religião não ficou fora deste dinamismo. De
fato, enquanto no Olimpo reinava a harmonia entre os deuses, do outro lado
aconteciam ritos dionisíacos caracterizados pelas emoções e a exaltação
entusiástica do sexo.
É possível distinguir na
história grega três períodos: no primeiro acontece o milagre da convivência do
espírito apolíneo com o dionisíaco, separados entre eles como aparece nas
tragédias de Esquilo e Sófocles; no segundo os dois espíritos se harmonizam e
no terceiro momento, com Eurípides e Sócrates, o espírito apolíneo prevalece
sempre mais. (KERÉNVI, 1992)
Para compreendermos o
pessimismo grego, que Nietzsche percebia forte e enraizado mas, ao mesmo tempo,
não decadente, Nietzsche reconhece como o homem grego percebe em profundeza a
negatividade e a caducidade da existência, mas também como consegue, através do
espírito dionisíaco, superar o niilismo que esta atitude comportava para
erguer-se através o pessimismo da coragem (FIGAL, 2002). Aquilo que levará a tragédia à
decadência será a derrota do dionisíaco. Para Nietzsche os maiores culpados são
Eurípides e Sócrates pois exasperam a interpretação racional do mundo,
sustentando a compreensibilidade junto com uma otimística positividade – ambos
elementos que acabam com o dionisíaco – levando à decadência da tragédia com
Eurípides.
Em suas duas divindades
artísticas, Apolo e Dionísio, baseiam-se em nossa teoria de que no mundo grego
existe um enorme contraste, enorme para a origem e o propósito, entre a arte
figurativa, a de Apolo, e a arte não figurativa de música, que é propriamente a
de Dionísio. Os dois instintos, tão diferentes um do outro, andam lado a lado,
principalmente em discórdia aberta, mas também se estimulam mutuamente para
partes novas e cada vez mais vigorosas, a fim de transmitir e perpetuar o
espírito desse contraste, que a palavra comum "arte" resolve apenas
na aparência; até que, em virtude de um milagre metafísico da "vontade"
helênica, pareçam finalmente acoplados entre si, e nesse acoplamento final eles
geram a obra de arte, tão dionisíaca quanto apolínia, que é a tragédia grega.
(NIETZSCHE, 2007, p. 79)
A lenta e irrestringível
vitória da racionalidade apolínea sobre o sentimento dionisíaco marca de forma
contundente a estruturação da cultura ocidental. De agora em diante, podemos
dizer que o caos foi ordenado, mas pagando um preço muito alto, ou seja, o
desrespeito da realidade assim como ela se manifesta, em favor de um sistema
racional tranquilizador. O ocidente moldou-se sobre a escolha arrogante de ter
a pretensão de controlar a natureza, de dominar a realidade, identificando de
agora em diante o sentimento e as paixões humanas como algo de negativo, sem dúvida
inferior se comparado com a força da racionalidade. A tranquilidade oferecida
por sistemas racionais que, antecipando a realidade, orientam o destino do
mundo, pagou o preço caríssimo de uma vida paralela, na qual as forças
criativas são poupadas por serem consideradas perigosas e, sobretudo, nocivas
ao sistema. Uma vida tranquila é considerada melhor para as pessoas de uma vida
insegura dominada pelos sentidos: essa é a escolha e uma característica
fundamental da cultura que se impôs no ocidente. Assim, essa maneira de pensar a realidade se
estruturou desde a época de Platão, se esforçando em dar razão ao caos do mundo
fenomênico, elaborando um sistema que permita a firme distinção entre a matéria
e o espírito, o céu e a terra, o mundo sensível e o mundo suprassensível
(REALE, 2003). De agora em diante, é o espírito que guia a matéria, são as
ideias perfeitas e imóveis que alicerçam a existência dos fenômenos móveis e,
por isso, carentes e perecíveis. A força dos sistemas filosóficos elaborados no
mundo ocidental está toda num pensamento metafísico que molda a realidade móvel
a partir de ideias imóveis. Nesse sentido tipicamente ocidental, os valores, as
virtudes e a mesma verdade pertencem ao mundo suprassensível, que é imóvel,
fixo, eterno, rígido, único, indivisível. A vida moral humana consiste no
esforço de traduzir na vida humana sensível os valores eternos imóveis, que
norteiam a vida cotidiana e oferecem um sentido. Poucos filósofos se
questionaram sobre um ponto fundamental: a realidade na qual mergulham é assim
mesmo? Não estamos perante uma grande contrafação? São os valores morais que
são eternos ou não são nada mais que o fruto de complicados sistemas racionais
produzidos por homens?
Essa estrutura metafísica
bastante rígida, toda a detrimento do mundo material, considerado como um
produto imperfeito de ideias perfeitas, é a base da antropologia dualista de
matiz platônica, que considera o corpo como prisão da alma. A fuga do mundo e o
desprezo do corpo, culpado para dificultar a vida da alma, foram elementos que
marcaram a espiritualidade do cristianismo ocidental que, desde o começo, foi
marcado por uma profunda absorção da filosofia platônica na forma do
neoplatonismo plotiniano (REALE, 2008). A
reflexão dos Padres da Igreja dos primeiros séculos do cristianismo está tão imbuída
de platonismo, ao ponto que é impossível abordar os textos destes autores sem
ter um conhecimento prévio do neoplatonismo que se afirmou no terceiro século
da hera cristã. Se é verdade que o ocidente é profundamente marcado pelo
pensamento cristão, é também verdade que não existe cristianismo na sua forma
filosófica sem levar em conta os grandes sistemas filosóficos de Platão e
Aristóteles. Enquanto o primeiro foi a base da elaboração filosófica de
Agostino, que a partir do quinto século dominou a cena cultural por oito
séculos, a metafísica aristotélica foi o pano de fundo do grande sistema teológico
elaborado por Thomas de Aquino no XIII século, que se impôs até os nossos dias[1]. Tudo
isso pra dizer o quanto o ocidente cristão foi moldado pelos sistemas
filosóficos gregos, influenciando de forma contundente os conteúdos do
Evangelho. Se de fato a ressurreição de Jesus Cristo deveria ter deixado passar
uma nova forma de monismo antropológico, no sentido que o corpo vive o mesmo
destino da alma, não foi este o anúncio do cristianismo. O menosprezo do corpo
foi acompanhado pela desvalorização da sexualidade ao ponto de considerar o
matrimônio como uma proposta de segundo nível se comparada com o celibato dos
religiosos. Não é por acaso que no livro dos santos canonizados pela Igreja
católica a maioria esmagadora é de religiosos. A necessidade dos sacrifícios
corporais que, em alguns casos, chegam até o ponto de machucar o corpo para
aliviar a alma, constitui um conteúdo importante da pregação católica por
muitos séculos. A contraposição entre céu, entendido como verdadeira e autêntica
morada do homem, e a terra, percebida como castigo e âmbito de grandes
tentações que atrapalham a vida autêntica que busca a perfeição, produziu a
espiritualidade da fuga do mundo, que grande influência teve nos primeiros
séculos da Igreja. Ao longo dos séculos, o mundo material no seu conjunto, como
matéria, corpo, paixões humanas e sexualidade, foi sacrificado no altar da
racionalidade, ou pelo menos, na maneira de entendê-la. O homem e a mulher
virtuosa sempre foram pessoas que sacrificaram a própria sexualidade, o próprio
corpo, os próprios sentimentos para uma aparente harmonia oferecida pela
estrutura racional. Até guerras foram feitas pela afirmação dos presunçosos
valores ocidentais cristãos. Também o encontro com culturas alheias, como
aconteceu a partir do século XVI, elaborou um julgamento de inferioridade, que
até justificou a escravidão e a matança de miliares de pessoas (TODOROV, 2010).
A percepção nietzschiana do
niilismo ocidental, como processo de desmascaramento da construção cultural dos
valores religiosos e morais, revela que o sentido profundo da identidade do
homem ocidental sempre foi alicerçado sobre uma estrutura forte de valores.
Analisar como se formou a identidade no ocidente ajudará a entender a
dificuldade do homem e a mulher pós-moderna de viver dentro de uma estrutura
fictícia e, ao mesmo tempo, a tentação de fugir dela. É exatamente a este nível
que se encaixa a análise de Charles Taylor. Segundo ele, “o fato de viver
dentro desses horizontes altamente qualificados é essencial para a ação humana
e evitar esses limites significaria deixar de parecer integral, ou seja,
pessoas humanas completas” (TAYLOR, 1998, p. 43). A antropologia filosófica
taylorista nos devolve a imagem do homem como um ser constitutivamente moral,
porque na base de suas escolhas, de suas ações, há sempre a referência às
diferenças intrínsecas de valores, às fortes avaliações, que constituem os
pontos de referência crucial do horizonte moral em que todo indivíduo, digno
desse nome, se encontra localizado. Por
isso, segundo Taylor, a construção da identidade no ocidente, longe de ser um
ato individualista, é um fato social. É na sociedade que o sujeito encontra um
patamar de saberes e de valores que o norteiam. "Viver em sociedade é uma
condição necessária para o desenvolvimento da racionalidade, em um dos sentidos
possíveis dessa propriedade, ou para a transformação em um agente moral, no
sentido pleno do termo, ou em um ser autônomo totalmente responsável"
(TAYLOR, 2004, 191). Por isso, a identidade do indivíduo é sempre uma
identidade dialógica, nunca monológica, pois nasce e se desenvolve numa
sociedade. Mesmo quando é a identidade
de um individualista radical, ainda deve haver um horizonte de significado que
permitiu que esse indivíduo pensasse nesses termos. Nesse sentido, a antissociabilidade
também é intrinsecamente social justamente porque o homem é, segundo Taylor, um
animal constitutivamente social. A racionalidade ocidental exige a sociabilidade
e a mesma identidade subjetiva molda-se neste âmbito imprescindível.
A descoberta da interioridade
por parte de Santo Agostinho no século V de um lado, e a redução da realidade
ao cogito individual operada por Descartes no século XVI, leva progressivamente
a cultura ocidental a elaborar um modelo de identidade humana, que exige uma
autenticidade entendida como autorrealização subjetiva. Segundo Taylor:
A ética da autenticidade é
algo relativamente novo e peculiar à cultura moderna. Nascida no final do
século XVIII, desenvolveu-se de formas anteriores do individualismo, como o
individualismo da racionalidade desengajada, iniciado por Descartes, no qual a
exigência é de que cada pessoa pense de maneira autorresponsável por si mesma,
ou o individualismo político de Locke, que pretendia tornar a pessoa e sua
vontade anterior às obrigações sociais. (TAYLOR, 2011, p.35)
A grande novidade desta virada
moderna consiste no fato que, enquanto na época anterior dominada pela moral
cristã, o conceito de autenticidade subjetiva era estritamente ligado ao
patamar de valores que tinham Deus como referência final, agora, a fonte que
oferece autenticidade a cada pessoa está no fundo de nós mesmos. Claramente,
como nos lembra Taylor, esta nova fonte da interioridade não exclui o nosso ser
relacionado a Deus ou às ideias de cunho platônico. Trata-se do desenvolvimento
da intuição agostiniana que aponta o caminho para Deus como passagem, através
da interioridade da pessoa humana. Assistimos, assim, na modernidade a uma
virada subjetiva massiva, uma nova maneira de interioridade, na qual chegamos a
pensar em nós mesmos como seres de profundidade interior. A grande novidade
desta virada está na mudança do quadro de referência. De fato, de agora em
diante, a fonte dos valores que norteiam a vida das pessoas, não é mais Deus,
mas a natureza. Jean Jacques Rousseau é o testemunho desta passagem.
Rousseau frequentemente
apresenta o problema da moralidade como aquele em que nós seguimos uma voz da
natureza dentro de nós. Esta voz costuma ser abafada pelas paixões induzidas
por nossa dependência das demais, das quais a paixão chave é o amor próprio ou
orgulho. Nossa salvação moral advém da recuperação do contato moral autêntico
com nós mesmos. (TAYLOR, 2001, p. 36-37)
A ideia de natureza, que já se
encontrava conceitualmente elaborada, sobretudo na teologia de Santo Thomas de
Aquino, assume neste novo cenário teórico um novo e mais profundo alcance, pois
vem substituindo o lugar que em antecedência pertencia a Deus. É importante
salientar que nos encontramos sempre no âmbito da metafísica, ou seja, de uma
forma de pensar que antecipa a realidade e que determina o rumo da história na
qual é inserido o sujeito.
[1] É importante lembrar que o
papa João Paulo II na encíclica Fides et Ratio do 1998 considerou a
teologia tomista como o ponto referencial ainda valido da teologia católica.
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