terça-feira, 14 de outubro de 2025

AMOR E PROFECIA

 



O vínculo insolúvel que transforma o mundo


Paolo Cugini

Em uma época em que frequentemente nos detemos nas aparências e as relações correm o risco de se tornarem superficiais, aproximar as palavras amor e profecia pode soar quase como um oxímoro. No entanto, essas duas dimensões estão unidas por um vínculo profundo e indissolúvel: apenas quem ama de verdade consegue enxergar além do que é imediatamente visível aos olhos. O amor, na verdade, não se limita a sentimentos passageiros ou emoções efêmeras, mas torna-se uma força capaz de penetrar as trevas e perceber a luz, mesmo quando tudo parece escuro.

Amor e profecia. Parece estranho, mas é uma relação íntima. Só quem ama consegue ver além das aparências. Amar não significa aceitar passivamente aquilo que nos cerca, mas saber perceber os sinais ocultos de esperança e mudança até nos momentos mais difíceis. O amor autêntico nos torna capazes de ouvir o coração da realidade e reconhecer a promessa do amanhecer mesmo na escuridão mais profunda. Apenas quem ama profundamente deseja uma justiça que vá além do próprio interesse. Só quem ama deseja justiça, pois não suporta desigualdades e clama contra todo tipo de abuso. A indiferença é o verdadeiro inimigo da profecia: quem ama não pode virar o rosto diante da injustiça, mas se torna voz de denúncia e braços para construir. Amar também significa não se calar diante do mal, mas tomar posição, arriscar, envolver-se pessoalmente.

Essas são as características do profeta, que nasce de uma profunda experiência de amor, da busca cotidiana pelo rosto do mistério que vislumbra na história. O profeta não é um visionário isolado ou um simples pregador, mas alguém que, através do amor, se coloca à escuta do Mistério que habita a realidade. É a paixão pelo bem e a constante busca de sentido que o impulsionam a ler a história com novos olhos e enxergar possibilidades onde outros veem apenas limites. É o profeta, homem ou mulher do profundo amor pelo Mistério, quem se torna portador de paz, construtor de pontes, trabalhador incansável na formação de alianças. Num tempo marcado por divisões, desconfianças e conflitos, o profeta é quem sabe derrubar muros e lançar pontes entre as pessoas. Sua obra é silenciosa, mas extraordinária: busca a paz, semeia esperança, constrói alianças duradouras porque estão enraizadas na autenticidade do amor.

Num mundo que precisa de profetas, cada um de nós pode escolher amar profundamente, olhar além das aparências e empenhar-se por uma justiça verdadeira e uma paz possível. Assim, a profecia não será apenas palavra, mas vida vivida, testemunho concreto de que outro mundo é possível quando o amor se torna nossa luz guia.

sábado, 11 de outubro de 2025

A contaminação cultural como paradigma: entre o hibridismo e a perda de identidade

 



Paolo Cugini

 

O conceito de contaminação, quando aplicado ao universo da cultura, evoca uma complexidade de interpretações que transcendem a sua conotação pejorativa original. Longe de ser apenas um processo de degradação ou perda, a contaminação cultural pode ser analisada como um paradigma que revela as dinâmicas de poder, resistência e adaptação na era da globalização. Em um mundo cada vez mais interconectado, onde as fronteiras geográficas se tornam mais fluidas, as culturas se misturam, se transformam e, em muitos casos, se hibridizam. No entanto, essa mistura não é sempre pacífica ou igualitária, levantando questões sobre a preservação da identidade cultural e os impactos da influência de culturas dominantes sobre as minoritárias.

A metáfora da contaminação na sociologia e na antropologia cultural pode ser entendida de diferentes maneiras. Em um sentido, ela descreve a forma como elementos culturais externos se infiltram e modificam uma cultura local. O termo contaminação sugere uma intrusão indesejada, similar à poluição ambiental, que pode comprometer a pureza ou a autenticidade de uma tradição cultural. Essa visão pessimista é frequentemente utilizada para descrever o impacto do consumismo ocidental e da cultura de massa sobre sociedades menos industrializadas, resultando na homogeneização de costumes e na perda de saberes ancestrais. Um exemplo claro disso é o declínio de línguas, rituais e técnicas de subsistência de povos indígenas, que são impactados por contaminantes ambientais e por uma cultura de desenvolvimento que ameaça sua identidade.

No entanto, uma visão mais matizada e construtiva interpreta a contaminação cultural como um processo inevitável e, por vezes, enriquecedor. O conceito de hibridismo cultural, popularizado por autores como Néstor García Canclini, argumenta que a mistura de culturas gera novas formas culturais, dinâmicas e criativas. Nesse sentido, a contaminação é menos uma destruição e mais uma transformação. Um exemplo é a música brasileira, que incorpora ritmos africanos e europeus para criar gêneros únicos como o samba e a bossa nova. O hibridismo celebra a capacidade das culturas de se adaptarem, absorverem e ressignificarem influências externas, resultando em uma identidade multifacetada e em constante evolução.

A análise da contaminação cultural como paradigma não pode ignorar a questão do poder. A troca cultural não ocorre em um campo de jogo nivelado. A influência de culturas hegemônicas, frequentemente ligadas a potências econômicas e políticas, pode sobrepujar as manifestações culturais de grupos minoritários, levando a uma assimilação forçada ou à marginalização. O medo da contaminação por parte de culturas mais frágeis é, muitas vezes, o temor da diluição de sua identidade em face de uma cultura dominante. A contaminação, nesse contexto, torna-se uma ferramenta de dominação cultural, onde a cultura do colonizador ou do poder dominante se impõe sobre a do colonizado.

Apesar da assimetria de poder, a contaminação cultural não é um processo unilateral. As culturas minoritárias demonstram notável resiliência e resistência, adaptando elementos culturais externos de maneira criativa e subversiva. O sincretismo religioso é um exemplo clássico, onde crenças e rituais de povos oprimidos se mesclam com os da cultura dominante, mas mantendo um substrato de sua religião original. As comunidades resistem à perda total de suas tradições, encontrando formas de preservar sua herança cultural mesmo sob forte pressão externa.

A contaminação cultural como paradigma oferece uma lente poderosa para entender as complexas interações entre as culturas no mundo contemporâneo. Ela nos força a ir além de uma visão simplista de pureza cultural versus degradação. Ao invés disso, revela um processo dinâmico que navega entre a apropriação criativa, o hibridismo enriquecedor e a dolorosa perda de identidade. A análise desse paradigma exige uma atenção cuidadosa às relações de poder, valorizando tanto a capacidade das culturas de se transformarem quanto a necessidade urgente de proteger a diversidade cultural e as identidades vulneráveis. Em última análise, a contaminação cultural nos lembra que a cultura não é estática, mas um fenômeno vivo, em constante negociação e ressignificação.

 

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

A TEOLOGIA DE BAIXO: UM CAMINHO PARA UMA TEOLOGIA CONTAMINADA

 



Paolo Cugini

 

No panorama contemporâneo da reflexão teológica, cresce a necessidade de uma teologia que saiba ouvir a realidade, uma teologia de baixo capaz de captar a ação do Espírito Santo dentro da história concreta.  Essa perspectiva se apresenta como uma alternativa viva à teologia ocidental de tipo dedutivo, que frequentemente fórmula dogmas a partir de conceitos abstratos, correndo o risco de perder o contato com a experiência das pessoas e com aquilo que o Espírito Santo prepara no cotidiano.  A teologia de baixo nasce da experiência, do encontro com o outro, da escuta das perguntas que emergem das dobras da história e das feridas da humanidade.  Nessa abordagem, a reflexão não parte de princípios universais abstratos, mas da concretude da vida, das histórias de homens e mulheres que buscam sentido e salvação. “A realidade supera a ideia”, diria o Papa Francisco, resgatando a exigência de não se fechar em esquemas estáticos, mas de se deixar interpelar pela história.

Essa abertura à realidade não é apenas método, mas também conteúdo: é aqui que o Espírito Santo age, transforma, prepara novos caminhos.  A teologia de baixo se torna, assim, uma teologia contaminada, ou seja, capaz de se deixar interpelar e modificar pelo contato com a vida real, pelas culturas, pelas mudanças sociais, pelos sofrimentos e pelas esperanças dos povos.  A teologia ocidental, sobretudo em sua forma mais dedutiva, privilegiou frequentemente a formulação de dogmas a partir de conceitos abstratos, por vezes se afastando do contexto histórico e da realidade vivida.  Esse método, que tem suas raízes na filosofia grega e na escolástica medieval, certamente garantiu a coerência e a profundidade do pensamento cristão, mas corre o risco de se tornar autorreferencial. O perigo é o de uma teologia in vitro, que analisa a fé como um objeto de laboratório, sem se deixar contaminar pela vida, e, pior, se defendendo dela.  Dessa forma, a reflexão teológica pode perder sua força profética e seu dinamismo, não conseguindo captar aquilo que o Espírito Santo está preparando na história através das novidades, das crises, dos desafios e das transformações.  Este é, talvez, um dos problemas mais evidentes no debate teológico contemporâneo, no qual é visível a incapacidade da teologia oficial e do Magistério eclesial de dialogar com os temas que a vida cotidiana aponta como urgentes.  Uma teologia que se defende da vida, para proteger seus princípios absolutos, considerados inegociáveis, está destinada a ficar de fora dos jogos da vida real e, a longo prazo, a ser ignorada no debate que busca soluções para os problemas existenciais.

Ao contrário, uma teologia contaminada é uma teologia que aceita o risco do encontro, da encarnação, da mistura.  Não teme sujar as mãos na história, de se confrontar com aquilo que é novo, diferente, imprevisto.  É uma teologia que reconhece que o Espírito Santo age não apenas nos locais institucionais ou nos dogmas consolidados, mas também e, sobretudo, nas periferias, nas perguntas incômodas, nas mudanças sociais, nas lutas por justiça. Essa perspectiva lembra o modelo bíblico, onde Deus se revela na história concreta de um povo, através de acontecimentos muitas vezes marcados pela dor e pela esperança. A teologia de baixo, contaminada pela realidade, torna-se então um lugar de discernimento, de escuta, de criatividade, capaz de gerar novas sínteses e novos caminhos para a fé.  É nos caminhos da história que o teólogo deveria estar, para se colocar em escuta, e elaborar uma teologia com cheiro de terra e água, de vida vivida e não de cheiro de livros e estantes.  Em um mundo em rápida mudança, a teologia não pode se contentar em repetir fórmulas abstratas, mas deve se colocar à escuta da realidade, permitindo-se ser contaminada pela história e pelas perguntas que emergem do cotidiano.  Somente assim poderá realmente captar a ação do Espírito Santo, que continua a preparar novos caminhos para a Igreja e para a humanidade. A teologia de baixo convida a deixar as margens seguras da abstração para navegar no mar aberto da vida, onde o Espírito sopra e renova todas as coisas.

 


terça-feira, 23 de setembro de 2025

O Paganismo Eslavo Contemporâneo: Entre Mitos e Religião Vivida

 



 

Palestrante: Prof. Dr. Giuseppe Maiello (Universidade de Praga)Moderadora e Tradutora: Profa. Dra. Marcia Enéas Costa (UFPB)Síntese: Paolo Cugini

Desde 1054, formam-se dois polos: Oriente e Ocidente. Existe uma fronteira cultural que ao longo dos séculos gerou guerras. Hoje, essa fronteira voltou a ser uma espécie de “cortina de ferro”.

O mundo eslavo é marcado por guerras e divisões: sempre foi assim? As línguas eslavas são próximas entre si. Se houver concentração, é possível comunicar-se com os povos eslavos. A distância linguística entre as línguas eslavas leva à consideração de que, em tempos passados, todos esses povos possuíam uma única cultura. Esses povos não deixaram vestígios antropológicos; chamamo-los de eslavos. Temos poucas fontes históricas. Os eslavos não utilizavam a escrita, tal como os povos indígenas que se valem da oralidade. Para reconstruir as fontes religiosas dos eslavos, baseamo-nos nas fontes dos prelados cristãos ou nos relatos de viajantes muçulmanos que visitavam esses lugares para comprar escravos. A palavra “eslavo” é muito semelhante à palavra “escravo”.

A partir do final do Iluminismo, observa-se um grande interesse pelas culturas eslavas. Os etnógrafos desempenharam um papel importante, especialmente em temas ligados aos costumes sexuais. Os cristãos assimilaram elementos culturais dos eslavos, modificando-os e cristianizando-os. No século XX, surgem os primeiros resultados das pesquisas antropológicas sobre a cultura eslava. O paganismo eslavo foi interpretado pelas leis. Identifica-se o modelo linguístico eslavo com a existência de um povo indo-europeu chamado ariano. Os indo-europeus, os arianos, foram considerados a melhor raça. Em particular, na Alemanha, acreditava-se que os arianos eram loiros e de pele clara, tese impossível de ser comprovada. A Alemanha nazista gastou enormes quantias para “melhorar” a raça ariana. A simbologia nazista utiliza materiais provenientes do período ancestral dos povos eslavos.

Paganismo eslavo contemporâneo. A Rússia é o maior país eslavo. Atualmente, existem 193 minorias étnicas na Rússia. Muitas dessas minorias conseguiram preservar suas culturas, também porque a Rússia permitiu este processo de conservação. A Rússia é um terreno fértil para o renascimento do paganismo, mesmo que esse renascimento tenha raízes em movimentos filosóficos ocidentais. Isso é visível em alguns poetas russos. Pintores e músicos também são testemunhas do paganismo russo. O paganismo eslavo russo contemporâneo possui muitos elementos de pacifismo. Em alguns grupos pagãos, sobretudo polacos, nota-se certa simpatia por símbolos nazistas que estão presentes no paganismo eslavo ancestral. Entre os eslavos orientais, houve uma fratura no mundo neopagão.

Os grupos pagãos contemporâneos discordam dos seus próprios modelos. O nacionalismo tornou-se tão radical que provocou tensões entre os grupos. No paganismo eslavo contemporâneo oriental, há uma tendência à politização em relação aos povos eslavos ocidentais. Existe também a sensibilidade em relação à Terra como sagrada. Os valores religiosos são mais fortes nas faixas etárias mais avançadas da população.

O paganismo eslavo contemporâneo é um fenômeno marginal na sociedade. Religião vivida no paganismo eslavo contemporâneo: existem rituais que seguem o calendário solar, realizados de quatro a cinco vezes por ano. As celebrações populares são mais frequentes. São as comunidades agrárias que enfatizam a mitologia solar. As danças que seguem o movimento da lua remetem a sociedades ainda mais arcaicas.

Perguntas

Nos rituais pascais, há contaminações com referência a mitos pré-cristãos. A igreja, apesar de existirem jogos sexuais que podem incomodar, tolera-os. Há muitas contaminações. O nazismo apropriou-se de símbolos pré-cristãos, mas uma parte não queria confrontar o cristianismo. Buscavam a supremacia da raça.

 

sábado, 6 de setembro de 2025

GRITO DOS EXCLUÍDOS E EXCLUIDAS MANAUS 2025

 




A Arquidiocese de Manaus está organizando uma grande manifestação com o objetivo de envolver a região da Bacia Hidrográfica do Sul.

 

Paolo Cugini

 

O Grito dos Excluídos consiste numa uma série de manifestações populares realizadas no Brasil em 1995, por ocasião do Dia da Independência, culminando em 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil. Essa manifestação milagrosa representa o primeiro passo rumo à exclusão da sociedade, denunciando os mecanismos sociais de exclusão e propondo uma abordagem alternativa para uma sociedade inclusiva.

Sua origem remonta à II Semana Social Brasileira, promovida pela Pastoral Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizada entre 1993 e 1994, quando Dom Luiz Demétrio Valentini era o responsável pela Pastoral Social. Embora a iniciativa tenha sido lançada diretamente pela CNBB, diversas organizações participaram do movimento desde sua criação: igrejas do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, movimentos sociais e organizações cristãs comprometidas com a justiça social. Os eventos são variados: celebrações, atos públicos, romarias, caminhadas, seminários e debates, teatro, música, dança e feiras de economia sustentável.

No dia 5 de setembro, feriado mais importante para os povos amazônicos, acontece em Manaus o primeiro passo para o 31º Grito dos Excluídos. O tema é "A Vida em Primeiro Lugar" e o lema "Cuidar da Casa Comum e da Democracia é uma Luta Diária", que ecoa o clamor pela vida, pela floresta e pela democracia. A questão é o futuro da Amazônia, que a tornará provincial, um marco na história do nosso país que comemora o destino e a resistência dos povos desta terra. Se for comemorado antes do Dia da Amazônia, é a necessidade de ser cuidada e preservada.



O evento, promovido pela Arquidiocese de Manaus por meio de sua Pastoral Social, nasceu com um papel importante na cura da Amazônia e de cada pessoa de sua população. Cuidar da Amazônia é cuidar da vida e de toda a humanidade. Mas vemos isso como a floresta destruída, os rios contaminados, os povos indígenas e ribeirinhos atacados, expulsos e assassinados. A Amazônia não é vida, cultura, cheiro e resistência; vivemos na ecologia central, vivemos em resistência.

Agora é mais um momento de paz no Plebiscito Popular 2025 - Justiça Fiscal Já! e em toda a produção agrícola, com o firme apoio do partido presente. Essa reivindicação é uma grade de arrecadação de impostos e contribuições, composta por um imposto de renda sulista para quem ganha uma multa de 5.000 reais e o risco de um imposto milionário, que acumula riqueza às custas dos pobres. Um dos slogans mais recorrentes durante a manifestação: "Parem de taxar os pobres, enquanto os ricos acumulam riqueza e se esquivam de suas responsabilidades sociais!"

Durante o mês de março, a campanha "Água e lixo não se misturam" foi destaque. Essa campanha visa mobilizar a sociedade, tanto pública quanto privada, para o enfrentamento das ondas em Igarapés. A marcha percorreu a Zona Leste de Manaus, reunindo centenas de pessoas que levantaram a voz por uma vida digna para aqueles em situação de exclusão e vulnerabilidade social, reivindicando, entre outras coisas, vida, saúde, moradia, políticas públicas, respeito e dignidade.



Por fim, o Cardeal Leonardo Steiner, marcando presença por meio de seu longo relacionamento com o Arcebispo de Manaus, o encorajou a continuar impecavelmente construindo uma sociedade mais generosa e fraterna, em nome do Evangelho.

Um discurso de gratidão a todos, olhando para o futuro, por terem participado do 31º Grito dos Excluídos. Agora, a partir desta questão prospectiva, continuamos a dizer algo, criando uma população de dois milhões e trezentas pessoas. Mas nós o amaremos em seu nome. Mostraremos a nossa verdadeira realidade, porque acredito que ela transformará. E eu creio, em nome do Evangelho, que podemos ter uma sociedade comunitária, uma sociedade fraterna, podemos viver em nossa casa comum e sempre ter um governo, ancorar uma revolução, ser sempre democráticos, sempre em paz, enfatizou Dom Leonardo.

Nossa paróquia, São Vicente de Paulo, participou com cerca de cem pessoas.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Jacques Derrida e o conceito de contaminação na desconstrução

 




Uma reflexão crítica sobre a desconstrução derridiana e a interação entre tradições


Paolo Cugini

Jacques Derrida (1930-2004), filósofo franco-argelino, é universalmente reconhecido como o pai da desconstrução, uma metodologia de leitura e pensamento que revolucionou as formas de compreender o texto, o sentido e a tradição. Um dos pontos importantes de sua reflexão é o conceito de “contaminação”, termo que adquire um valor positivo e estratégico não apenas na crítica literária, mas também na interpretação dos textos religiosos, dos sistemas de pensamento e das tradições culturais.

A desconstrução, segundo Derrida, é o movimento que evidencia as tensões, contradições e aporias dentro de um texto, revelando como nenhuma construção teórica, nenhum sistema, pode ser considerado puro ou autossuficiente. A ideia de contaminação surge como antídoto à lógica identitária e à busca de uma origem incontaminada. Em "Da Gramatologia" (1967), Derrida afirma que “o texto está sempre já contaminado por aquilo que não é ele”, sublinhando que nenhum sentido pode ser pensado como isolado e que todo significado se gera na interação e na diferença. A contaminação, neste contexto, não deve ser entendida como um defeito ou uma intrusão negativa, mas como a própria condição de possibilidade do sentido: “A pureza nunca é dada, é sempre construída contra, pela exclusão ou pela diferenciação de uma alteridade que necessariamente a contamina.” (Derrida, "A Disseminação", 1972).

Quando Derrida se confronta com a leitura dos textos religiosos, sua crítica da pureza adquire um alcance ético e político. No ensaio "Fé e Saber" (1996), Derrida mostra como toda religião, toda tradição espiritual, é irremediavelmente marcada pela contaminação de outras narrativas, práticas, rituais e linguagens. Não existe uma tradição religiosa que possa ser separada de influências externas; mesmo os textos sagrados são o resultado de sedimentações, traduções, interpolações e reescritas. “Não há religião que possa se afirmar na pureza de sua origem: toda fé é atravessada, alterada, modificada pelo encontro, pela troca, pela tradução.” (Derrida, "Fé e Saber"). Isso significa que a busca por uma “origem pura”, seja numa religião, seja numa cultura, é uma construção ideológica que serve para delimitar fronteiras identitárias e excluir a alteridade. Ao contrário, a contaminação torna-se um espaço de abertura, de diálogo e de hospitalidade.

Deridda


A abordagem derridiana não se limita a uma crítica epistemológica, mas se traduz numa verdadeira ética da contaminação. Em "Adeus a Emmanuel Lévinas" (1997), Derrida retoma o tema da hospitalidade, mostrando como a abertura ao outro e a disponibilidade “a ser contaminado” são as condições da justiça e da responsabilidade. “A hospitalidade é sempre a possibilidade de ser afetado, transformado, contaminado pelo outro que acolho.” (Derrida, "Adeus"). Essa visão se reflete também na leitura dos textos religiosos, onde a interpretação deve aceitar a possibilidade de ser “contaminada” por outros sentidos, outras tradições, outras linguagens, sem querer neutralizá-las ou absorvê-las. Derrida rejeita qualquer ideia de fronteira rígida entre as tradições, propondo a contaminação como processo criativo e gerador.

Em "O Monolinguismo do Outro" (1996), a contaminação linguística torna-se metáfora do diálogo entre culturas e religiões. A língua, como a tradição, está sempre já atravessada por traços de outras línguas, e é justamente por isso que está viva: “Nunca falamos uma língua pura. Cada palavra, cada texto, cada tradição é atravessada pela diferença, pela marca de uma alteridade que a constitui.” (Derrida, "O Monolinguismo do Outro"). Neste sentido, a desconstrução mostra que a contaminação é a própria condição de toda identidade: não um perigo, mas um recurso.

Quando se leem os textos religiosos com o olhar derridiano, descobre-se que toda sacralidade, todo dogma, é o resultado de uma estratificação histórica, de uma contaminação com textos precedentes, paralelos ou externos. A Bíblia, o Corão, os Vedas, são textos que carregam a memória de línguas, tradições e culturas diferentes, e toda tentativa de purificá-los está fadada ao fracasso. A leitura desconstrucionista, assim, convida ao reconhecimento das marcas de outras tradições dentro de cada texto sagrado, a acolher a contaminação como abertura para novos sentidos e novas interpretações; viver a diversidade não como ameaça, mas como possibilidade de hospitalidade e justiça.

Também as práticas e rituais religiosos, observa Derrida, são o resultado de contaminações. As liturgias cristãs, por exemplo, incorporaram elementos pagãos, e as festividades religiosas são frequentemente entrelaçadas com tradições populares e folclóricas. Em "Fé e Saber", Derrida escreve: “As práticas nunca são puras: são fruto de uma multiplicidade de encontros, negociações, adaptações.” Essa consciência permite superar as rigidezes dogmáticas e acolher a pluralidade como riqueza. A tentativa de preservar uma tradição em sua suposta pureza, segundo Derrida, conduz inevitavelmente à exclusão, à violência simbólica e material contra o outro. A contaminação, ao contrário, é o caminho para uma sociedade mais justa porque aberta à diferença e à transformação. Em "Políticas da Amizade" (1994): “O verdadeiro amigo é aquele que aceita a possibilidade de ser afetado, modificado, contaminado pelo outro, sem perder a própria hospitalidade.”

O conceito de “contaminação” na filosofia da desconstrução de Jacques Derrida revela-se uma poderosa ferramenta para a leitura dos textos religiosos, das tradições e das culturas. Nenhuma tradição, nenhum texto, nenhuma identidade pode ser pensada como “pura”, pois todo sentido se produz na abertura e na hospitalidade ao outro. Viver a contaminação significa acolher a diferença, reconhecer a marca do outro, e deixar-se transformar pelo encontro. É nesta perspectiva que a desconstrução se torna não apenas uma teoria da leitura, mas uma verdadeira ética da hospitalidade.

 

sábado, 30 de agosto de 2025

A SOLIDARIEDADE SOB ATAQUE

 



A estranha aliança entre cristãos tradicionalistas americanos e a extrema direita

Paolo Cugini

Nas últimas décadas, observou-se nos Estados Unidos o fortalecimento de uma aliança entre o cristianismo tradicionalista e as formações da extrema direita política. Esse fenômeno pode parecer contraditório, sobretudo considerando que muitas das ideias centrais do cristianismo — como a solidariedade, a acolhida ao próximo e a caridade — parecem estar em aberto contraste com posições que, por vezes, rejeitam ou desvalorizam esses mesmos princípios. No entanto, essa aliança se fundamenta em raízes culturais, históricas e teológicas profundas. Nas próximas linhas, tento explicar por que uma parte significativa dos cristãos tradicionalistas americanos apoia ideologias e movimentos de extrema direita, que interpretam a solidariedade de forma negativa.

Para compreender o fenômeno contemporâneo, é necessário remontar às origens da relação entre cristianismo conservador e política americana. O historiador Kevin M. Kruse, em seu livro "One Nation Under God: How Corporate America Invented Christian America" (2015), sustenta que o vínculo entre cristianismo tradicional e políticas econômicas de direita surge já nos anos 1940 e 1950, quando empresas e líderes religiosos se uniram contra o New Deal e a crescente influência do Estado de bem-estar social. Segundo Kruse, a partir desses anos, o cristianismo foi progressivamente associado aos valores do individualismo, da liberdade econômica e da desconfiança em relação à intervenção pública, vistos como "ameaças" à liberdade do indivíduo.

A antropóloga Kristin Kobes Du Mez, em "Jesus and John Wayne" (2020), mostra como o evangelicalismo branco americano promoveu uma visão do cristianismo como bastião de valores conservadores — autoridade, ordem, patriotismo — muitas vezes em contraste com uma ideia de solidariedade coletiva ou responsabilidade social, e orientado principalmente à defesa da "lei e da ordem" contra qualquer forma de dissenso ou reivindicação de direitos civis. Para entender por que a solidariedade é vista de forma negativa por muitas formações da extrema direita, é útil fazer referência ao pensamento de Patrick J. Deneen, professor de Ciências Políticas em Notre Dame e autor de "Cambio di regime. Verso un futuro post-liberale" (2025). Deneen explica como parte da direita americana acredita que projetos sociais coletivos — frequentemente associados ao termo “solidariedade” — acabaram por produzir apenas dependência e ineficiência, minando a liberdade e a responsabilidade individual.

Entre as fontes mais citadas pelos tradicionalistas, encontra-se também o pensamento de Ayn Rand, embora não cristã. Rand, em "A virtude do egoísmo. Um novo conceito de egoísmo" (2023), defende a superioridade moral do individualismo e considera qualquer forma de solidariedade forçada uma ameaça à dignidade humana. Para Rand, a solidariedade imposta pelo Estado equivale a uma espécie de escravidão moral, que priva o indivíduo de sua autonomia e o obriga a assumir as necessidades dos outros. Muitos líderes cristãos tradicionalistas americanos integraram, de forma paradoxal, essa visão à sua pregação pública, como destaca Michael Sandel em "Justiça. O nosso bem comum" (2013).

Outro elemento decisivo é o surgimento, no pós-guerra, da chamada "teologia da prosperidade" (prosperity gospel), segundo a qual o bem-estar pessoal e material é sinal da bênção divina. Segundo Kate Bowler, autora de "Blessed: A History of the American Prosperity Gospel" (2013), essa teologia levou milhões de cristãos americanos a identificar o sucesso individual como vontade de Deus, desvalorizando toda forma de solidariedade institucional e pública, vista como intromissão indevida na relação privada entre Deus e o fiel.

A Guerra Fria desempenhou um papel central no fortalecimento da desconfiança do mundo cristão tradicionalista em relação à ideia de solidariedade. No contexto americano, a solidariedade era associada ao socialismo ou, pior, ao comunismo soviético. Como sublinha o historiador David W. Swartz em "Moral Minority: The Evangelical Left in an Age of Conservatism" (2012), todo projeto de welfare, redistribuição ou proteção social era atacado como um potencial “cavalo de Troia” das ideologias ateias e totalitárias. Daí nasce uma retórica que identifica a solidariedade como ameaça direta à fé e aos valores fundantes da nação e, ao mesmo tempo, como perigo de uma possível entrada do comunismo no país.

Nos Estados Unidos contemporâneos, segundo Robert P. Jones em "The End of White Christian America" (2016), muitos cristãos tradicionalistas percebem uma crise de valores, acentuada pelo aumento da diversidade étnica, pela secularização e pela perda da centralidade pública da religião. Neste contexto, a extrema direita oferece uma narrativa tranquilizadora, centrada na defesa de uma identidade cultural e religiosa ameaçada por estrangeiros, na qual toda forma de solidariedade universal é vista com suspeita, como se escondesse uma ameaça à ordem tradicional. Daí se compreende a fácil penetração no imaginário americano das ideias do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e de seu projeto político de purificar a América dos imigrantes.

Um papel-chave é desempenhado pelos meios de comunicação conservadores, como a Fox News ou a Christian Broadcasting Network, que promovem uma visão segundo a qual as políticas de solidariedade são representadas como instrumentos de controle estatal e de corrupção moral. Segundo o sociólogo Arlie Russell Hochschild em "Por amor ou por dinheiro. A comercialização da vida íntima" (2016), muitos cristãos tradicionalistas se reconhecem em uma narrativa que vê a extrema direita como defensora das liberdades religiosas e individuais contra o opressivo “politicamente correto” e das “ideologias globalistas” da solidariedade universal.

O apoio dos cristãos tradicionalistas americanos à extrema direita que desvaloriza a solidariedade é o resultado de uma complexa teia de fatores históricos, teológicos, sociais e midiáticos. Se o cristianismo das origens colocava no centro o amor ao próximo e a partilha, o americano contemporâneo — ao menos em sua versão tradicionalista e politizada — frequentemente privilegiou a defesa do indivíduo, da propriedade privada e das liberdades negativas, percebendo a solidariedade pública como ameaça. Compreender as raízes profundas desse fenômeno é essencial para enfrentar os desafios políticos e sociais dos Estados Unidos contemporâneos.