quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

ALGUNS ASPECTOS DA ESPIRITUALIDADE XAMÂNICA

 



 

EM BUSCA DE UMA LITURGIA ENCULTURADA NA AMAZÔNIA

 

 

Paulo Cugini

 

Faz alguns meses que montamos um pequeno grupo de pesquisa litúrgica na paróquia. Todos os sábados nos reunimos à tarde para ler e comentar algumas páginas do material que a Conferência Episcopal Amazônica (CEAMA) desenvolveu para colocar em prática as indicações do Sínodo sobre a Amazônia. Já analisamos o papel muito importante que as mulheres desempenham nas comunidades indígenas e nos perguntamos como as mulheres podem estar envolvidas nas nossas comunidades cristãs. O caminho continuou levando em consideração as experiências espirituais dos líderes religiosos indígenas, cujas capacidades reconhecidas pelas comunidades indígenas lhes permitem comunicar-se com os poderes superiores presentes na natureza. Esses personagens são chamados de: xamãs. 

A expressão “xamânico” não reduz o assunto às experiências e à vida do xamã, mas refere-se a uma forma de encontrar o profundo mundo do espírito que reside em todas as coisas. Um ponto de partida fundamental é reconhecer que a selva é uma coisa viva. Para os povos amazônicos, a natureza não é algo que está à nossa disposição, mas um espaço vivo, animado e, quem a vivência desta forma, percebe a presença dos espíritos que a habitam: os xapiris. Devemos ter em mente que isto não significa que a floresta (selva) tenha um animus autónomo, como apoiaria uma posição animista. O sagrado vive na selva, mas não é só isso. Ela o contém, dentro está a linguagem de um mundo que não pode ser acessado dominando-o, mas transformando-se nele. “A selva tem uma densidade sacramental. Essa presença sagrada é fruto de um momento de origem em que tudo era um caos” (coloquei entre aspas alguns trechos do texto em português do documento do CEAMA, que ainda não foi publicado).

Existe uma harmonia na selva que deve ser decifrada para redescobrir a sabedoria presente nas coisas. Para reconhecer o mistério presente na natureza é necessário transformar-se nela; somente tornando-se sua realidade ele poderá ser compreendido. Aqui ocupam um lugar decisivo as chamadas “ervas alucinógenas”, que na realidade, do ponto de vista ocidental, são descritas como substâncias que provocam um estado de transe semelhante ao dos alcaloides. Porém, a forma mais adequada é chamá-las de “ervas professoras”. Na verdade, permitem o acesso à linguagem, à chave da sabedoria presente na natureza da selva. Existe, portanto, uma revelação sagrada que pode ser acessada através das plantas mestras. É aqui que o xamã tem uma missão especial. “Ele é alguém que se preparou através de um processo de purificação. Não basta consumir a planta, mas é fundamental purificar o organismo para entrar em contato com a verdade que a natureza contém”. Esta revelação comunica-se com cantos e danças que não têm dimensão decorativa ou estética, mas são o modo como a sabedoria se dá a conhecer. O xamã, neste sentido, não tem uma missão sacerdotal, mas profética; o sentido da sua atividade não é mediar a eficácia do sagrado, mas dar a conhecer a sua mensagem.





Ao fazer uma interpretação teológica dos mitos ancestrais indígenas, é fundamental questionar a forma como ela se articula: a revelação no sentido cristão com a comunicação divina nas práticas rituais indígenas. Portanto, é fundamental pensar na relação entre o cosmos e Jesus Cristo e o papel da mediação humana do cosmos. A lógica xamânica tem uma estrutura própria que não deve a todo custo forçar a entrada na ritualidade cristã. Contudo, poderíamos perguntar-nos se um xamã cristão pode contribuir para o caminho de uma comunidade eclesial. Para isso, é necessário reconhecer que a natureza possui uma vida que contém sabedoria para viver melhor. Portanto, a revelação de Jesus Cristo contida nos textos canônicos não entra em conflito com a presença criada de um logos em toda a criação. Existe, portanto, um conteúdo sagrado na natureza, que o xamã pode captar e comunicar à comunidade.

As cristologias cósmicas dos Padres da Igreja, em particular de Máximo o Confessor, não entrariam em conflito com a ideia de que o ser das coisas nos ensina uma vida mais integral. Podemos concluir, neste sentido, que, se o xamanismo contribui de alguma forma para a lógica ministerial na vida da Igreja, está mais ligado a um carisma profético do que a um carisma sacerdotal. Neste sentido, precisamos rever outra questão, que é pensar na profecia apenas em conexão com a história. “A noção de história desenvolvida no Ocidente tem estado ligada ao exercício da liberdade humana sobre a criação.” Nesse sentido, fazer história significa impactar transformando a natureza. O que é ensinado ao carisma xamânico nada tem a ver com uma forma de agir diante das coisas, mas com aprender com as coisas. Nesse sentido, a profecia seria a revelação de uma sabedoria escondida em tudo o que existe, como o rio, a selva, a onça ou os pássaros: revela uma esfera sagrada e não um tipo de comportamento, que deveríamos alcançar. Porém, viver esta experiência requer uma purificação que afeta o comportamento. Não se pode beber ayahuasca sem jejuar e, mais ainda, sem se abster de relações sexuais. Antes, mas também depois, alguém se torna aquilo que come ou experimenta. É necessário, portanto, reconsiderar a forma de compreender a ontologia, as relações com Deus e a experiência da natureza para além dos processos dedutivos, dando maior espaço à sensibilidade.



Na lógica xamânica existe um ensinamento fundamental sobre a relacionalidade que escapa à construção da verdade meramente dedutiva e que dá lugar à dimensão da consciência emocional e concreta. Qualquer ministério pensado para a Amazônia deve fazê-lo reconhecendo esta questão central, para propor a verdade do Evangelho: isso não pode ser feito no formato da perspectiva do conhecimento, que tem prevalecido no Ocidente. “O desafio, portanto, não é assumir a ritualidade xamânica para a organização do rito cristão, mas assumir a forma relacional em que tudo é vivenciado e onde os sentidos, como espaço em que se dá a inteligência da realidade, têm uma dimensão central”. É também o primeiro passo para evitar a estigmatização destas formas de ligação com a sabedoria da natureza, começar a reconhecer que existe uma forma de se conectar com o ser, em que se conhece através da emoção, da comunhão e da união com os seres que habitam. a selva.

 

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O Concilio: uma questão de estilo

 



 O teólogo alemão Christoph Theobald [1]esclarece que o tão alardeado princípio da pastoral, como chave hermenêutica dos textos do Concílio Vaticano II, não emerge diretamente da estrutura do corpus, mas é de natureza estilística: “Indica um caminho de proceder, uma conversão ou uma reforma individual e colectiva, como sublinha com força o discurso final de Paulo VI» [2]. É a forma de gerir o conflito e a violência dentro da Igreja que dá ao Vaticano II a sua credibilidade evangélica. São várias as passagens em que fica evidente esta escolha do estilo evangélico. Theobald indica aquela passagem da Dignitatis Humanae em que, na busca da verdade, o texto mostra respeito pelas verdades dos outros. Nesta situação, como noutras, o Concílio Vaticano II opta pelo estilo do diálogo em vez da condenação, como tinha acontecido nos concílios anteriores. É por isso que, segundo Theobald, falar em estilo pastoral é uma forma de reconhecer a mudança de paradigma na forma de enfrentar os problemas na Igreja. Para confirmar esta opinião, Theobald relata a tese de John W. O'Malley segundo a qual a novidade do Concílio consiste no evento linguístico que ele representa. “Pouco a pouco – afirma O'Malley – o Vaticano II configurou um novo jogo linguístico, isto é, uma nova retórica única em si, que culmina na Gaudium et Spes [3].

Segundo O'Malley, o estilo resulta de dois elementos: um gênero literário e uma terminologia adequada a ele. O'Malley identifica o gênero literário na eloqüência epidítica que substitui a judicial. No que diz respeito à terminologia, identifica cinco traços: a acentuação das relações horizontais; a insistência no serviço em detrimento do controle; orientação para o futuro; a substituição de uma terminologia inclusiva pela de exclusão; a preponderância da participação ativa de todos sobre a adesão passiva. Theobald sustenta que para identificar os traços distintivos do estilo pastoral do Vaticano II é necessário ligar o corpus ao próprio evento conciliar, que entre outras coisas é a indicação da Officina Bolognese liderada por Giuseppe Alberigo. Se levarmos a sério o princípio da pastoralidade indicado por João XXIII no Concílio, é necessário colocar a unidade no modo de proceder, em vez de procurar os géneros literários. Esta forma de proceder “ consiste em compreender imediatamente o corpus textual do Vaticano II como expressão de uma experiência extratextual, uma experiência de escuta da palavra de Deus e de encontro eficaz com a infinita variedade daqueles a quem a assembleia deseja dirigir-se” [4].

Segundo Theobald, o estilo pastoral do Vaticano II não pode ser reduzido nem à configuração sincrónica de um acontecimento linguístico ((O'Malley) nem à experiência histórica dos actores conciliares (escola de Bolonha), " mas enquadra-se bem num contexto evangélico". modo de proceder e de chegar a um acordo, inscrito no corpus textual aberto que, precisamente por causa desta <abertura>, permanece por sua vez intimamente ligado a um modo de se colocar hic et nunc entre a Palavra de Deus e os seus possíveis receptores” [5]. O princípio pastoral e ecuménico está carregado de duas implicações importantes: a sua ligação com a ideia de reforma e a sua relação com o enraizamento histórico e contextual dos destinatários do Evangelho são progressivamente explicitadas e refluem na forma gradual do magistério. O autor está consciente de que a adoção de um modo de proceder evangélico não pode ser imposta, mas depende da conversão não programável dos participantes. Talvez este tenha sido o problema de adotar um estilo dialógico e atento à diversidade dentro do Conselho formado por muitas pessoas de todos os cantos do mundo.

Para mostrar o valor da recepção do estilo pastoral do Concílio Vaticano II, Teobaldo oferece alguns exemplos. A primeira é a Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi de 1974. Como afirmou o próprio autor da Exortação, o objetivo principal do Concílio era tornar a Igreja do século XX cada vez mais adequada para anunciar o Evangelho à humanidade no século XX. O outro exemplo, relatado pelo autor, é a encíclica Ut Unum sint de João Paulo II , de 1995, que propõe uma releitura do que surgiu no debate teológico sobre o tema do ecumenismo, em harmonia com o documento conciliar Unitatis redintegração. Segundo Theobald, o estilo do texto é evangélico e narrativo. O tom dialógico e aberto também pode ser percebido na pergunta que o Papa faz para ajudá-lo a realizar o melhor possível o serviço do primado. O último exemplo proposto de recepção do estilo de Pastoral indicado pelo Concílio Vaticano II é o encontro inter-religioso de Assis em 1986. A principal novidade deste evento é, segundo Theobald, a visualização, os gestos de respeito pela diferença religiosa no coração da humanidade. Há uma grande mensagem de abertura que vem deste acontecimento memorável: “Uma nova forma de articular a alteridade do outro e o que nos une: há uma forma de compreender o fundamento comum da comunidade humana que não é a superação ou supressão da diferença religiosa mas, pelo contrário, respeito por esta última em Deus [6].

No terceiro capítulo da primeira parte, Theobald aborda o problema da recepção do Concílio Vaticano II, colocando em segundo plano a função normativa da história na teologia católica. Diante dos critérios clássicos de interpretação - Teobaldo cita os lugares teológicos de Melchior Cano em que a história ocupava o décimo e último lugar - o Concílio Vaticano II, justamente pelo seu caráter pastoral, parece ter um valor canônico menor que os anteriores. Ou é um género novo que provocou a própria mutação do “dogmático” e do “doutrinário” ao inseri-los na mesma relação pastoral que é marcada pela história. Para Theobald a resposta só pode ser encontrada dando espaço à história do Vaticano II. Desde 1962 tem sido destacada a articulação entre estilo pastoral e estilo ecumênico. Karl Rahner destacou isto pela primeira vez e a maioria dos oradores serão inspirados por este argumento. Theobald salienta que a partir do terceiro e quartos períodos do Concílio serão especificadas duas outras implicações do princípio da pastorícia. A primeira diz respeito à introdução do vocabulário da “reforma”, que implica levar em consideração a receptividade ecuménica. A segunda determinação diz respeito à posição histórica e cultural dos receptores e, consequentemente, à historicidade da própria revelação. Num certo sentido, o princípio da pastorícia permanece controverso e não tem efeito de retorno na interpretação global do corpus do Concílio. Tudo isto porque, para além das primeiras aparências que viram emergir a centralidade do tema eclesiológico na elaboração dos textos, na realidade esta centralidade desaparece à medida que o Concílio continua. Há, segundo Theobald, uma abertura histórica que advém do processo de aprendizagem dentro do Concílio, o que significa que: “ a formulação relativamente completa do princípio da pastorícia de 1965 permanece sem efeito de retorno no tratamento de um certo número de questões particulares, na compreensão do vínculo indissolúvel entre o <doutrinário> e o <pastoral> e, mais ainda, na compreensão do estatuto normativo do corpus conciliar na sua totalidade [7]. É por esta razão que Theobald se pergunta se a elaboração de um catecismo como um compêndio de toda a doutrina católica, proposta em 1985 e criada em 1992, é o sintoma de uma confusão que hoje é ainda mais profunda.

Sobre o problema do valor teológico dos textos, Theobald apoia a tese de O. Semmelroth . Na verdade, é este autor quem sustenta que, se o Concílio não utilizou os meios de definição dogmática, é sempre tendo em vista a forma pastoral que molda também o compromisso doutrinal. Desta forma, o Concílio conseguiu integrar a consciência histórica do nosso tempo. A recepção do princípio da pastoral pelo Concílio exigiu, sem dúvida, um longo processo de aprendizagem e assimilação, mesmo nas décadas que se seguiram ao próprio Concílio. Este princípio da pastoral, que fala da historicidade da verdade anunciada por Jesus, só é compreensível se tivermos em conta que a relação original entre Jesus e os seus seguidores é a fundadora da própria historicidade do processo da tradição. É, então, a criatividade dos discípulos, como receptores activos da mensagem de Jesus, que se torna visível no caminho conciliar de recepção e transmissão do Evangelho às novas gerações, com a ajuda do Espírito Santo. É por esta razão que Theobald afirma que: “ O Concílio Vaticano II inaugurou a própria mutação da dogmática, ligada na sua forma clássica ao cristianismo, e colocou a “normatividade”, inscrita na identidade cristã, num outro nível, que está dentro do relação pastoral tradicional, que também é sempre marcada pelo seu contexto cultural e histórico” (138).

 Inspirando-se na célebre expressão de Bento XVI que, a propósito do Concílio Vaticano II, falou da hermenêutica da reforma, Theobald indica quatro etapas da referida reforma. Em primeiro lugar, o Vaticano II é sem dúvida o primeiro Concílio geral que põe em jogo a totalidade da tradição cristã nas suas diversas etapas, mesmo que esta consciência pertença ao período pós-conciliar. Em segundo lugar, Teobaldo sublinha o facto de a aquisição da Dei Verbum consistir em ter iniciado a integração entre as fases patrística, medieval e moderna na tradição da Igreja. Nessa perspectiva, a tradição no sentido processual do termo torna-se o conceito integrador. Em terceiro lugar, Theobald apoia a tese de Rahner que em 1966 afirmou que o Vaticano II representa o primeiro Concílio de uma Igreja no processo de globalização. Finalmente, ao percebermos a tarefa de reinterpretar o Evangelho para o nosso tempo, podemos questionar-nos novamente sobre o estatuto normativo dos textos do Vaticano II e do seu género. Su pode assim afirmar que: “O Concílio oferece-nos uma visão do mistério da Igreja no coração da história da humanidade iluminada pela luz do Deus Trinitário” [8].

Segundo Theobald, o principal desafio hoje consiste em aprofundar os modos de proceder que o concílio soube inventar. O que está em jogo numa leitura genética ou processual do Vaticano II é poder colocar o futuro do Evangelho e da Igreja na sociedade nas mãos de todo o povo de Deus. No capítulo sétimo, Theobald reflete sobre o conceito de estilo que, segundo ele, está implicado no princípio pastoral proposto ao Concílio por João XXIII. São três aspectos indispensáveis que o conceito de estilo evoca. Primeiro, a singularidade de uma obra ou a criatividade única do seu autor. Este trabalho criativo não pode desenvolver – e este é o segundo aspecto – o seu efeito específico apenas num processo específico de encontro onde: “o espectador, o ouvinte ou o leitor se envolvem pessoalmente no processo criativo de colocá-lo em forma artística [9]. Este efeito do trabalho sobre o seu receptor desdobra-se, em terceiro lugar, no mundo. O estilo, então, fala de uma forma de habitar o mundo. O Vaticano II ajudou a compreender que o cristianismo não pode ser plenamente compreendido através de afirmações dogmáticas, mas deve ser compreendido como um processo de encontros e relações mútuas. É isso que se vislumbra no estilo de Jesus, que não se limitava a oferecer informações, mas transmitia conteúdos através das relações que estabelecia. Segundo Theobald, a perspectiva fundadora da Lumen Gentium e o ponto de partida da visão eclesiogenética da Ad Gentes podem convergir precisamente a partir desta indicação do estilo evangélico, que remete sempre a uma reciprocidade entre relação e anúncio. “ A presença eclesial do cristianismo mostra-se como um processo específico de encontros e relações mútuas no mundo, que se torna sacramental quando as pessoas envolvidas neste processo na sua singularidade, especialmente as últimas de um grupo ou sociedade, tornam-se sinais messiânicos [10]. A Lumen Gentium aprofunda a discussão sobre o estilo no capítulo relativo à vocação universal à santidade na Igreja (c. V). Considerando o progresso da Igreja na Europa, Theobald afirma que o seu futuro só pode ser abordado através de uma relação criativa com as origens do Cristianismo. Por isso, o autor sublinha como etapas significativas do renascimento pela Igreja de elementos importantes do estilo das origens, a hospitalidade, a relação com a Sagrada Escritura, a percepção das dimensões corporais da fé, a tomada em consideração da universalidade da Igreja e, finalmente, a vida contemplativa.

No último capítulo Teobald aborda o tema da recepção da Gaudium et Spes. O autor centra-se em analisar detalhadamente, sobretudo, a recepção franco-alemã do princípio dos sinais dos tempos. Theobald sublinha a tipologia da recepção germano-alemã tal como foi apresentada por Hans-Joachim Sander, que argumentou que: “a novidade fascinante e perturbadora da constituição consiste na sua forma de articular o que não pode ser relativizado, isto é, a verdade, e o que é relativo, isto é, os lugares onde se questiona . ” [11]Os sinais dos tempos são, portanto, segundo Sander, indícios de lugares em meio a este tempo. Libertam algo que está silenciado, mas que é representativo da luta pela humanidade do homem e por condições de vida dignas dele. O Cardeal Lehman, a propósito deste debate, sustentou que a versão final da Gaudium et Spes deve ser relida hoje, prestando atenção a muitas partes do texto que, segundo ele, envolvem diferentes níveis, por vezes cheios de tensões e contradições. Em todo o caso, segundo Teobaldo, é necessário admitir as dificuldades que dependem do carácter incompleto do texto da Gaudium et Spes e do carácter sectorial da sua abordagem pelas diferentes disciplinas teológicas. O autor destaca também o novo contexto cultural que provoca o discernimento de novos sinais dos tempos que devem ser interpretados. A este respeito, Teobaldo indica um triplo critério de discernimento. Em primeiro lugar, a fé, que deve ser entendida como histórias de cura, isto é, como uma fé que surge no contacto com o Senhor, mas que já está em acção no seu interlocutor. A Gaudium et Spes conhece o equivalente desta fé antropológica que define com a ajuda de noções como a dignidade humana e a vocação do homem. Outro elemento importante desta fé, tal como é apresentada nos evangelhos, é a sua presença naqueles que não fazem parte do povo de Israel. É a maravilha da fé do outro que constitui o segundo critério de discernimento na época atual. O último critério que Teobaldo sublinha é a fecundidade com que os acontecimentos messiânicos, produzidos pela fé, abrem a história de alguém e influenciam multidões. “ Este critério – sublinha o autor – encontra-se nos sinóticos, por exemplo na parábola do semeador, mas já está em ação na missão apostólica de Paulo. Dificulta o processo de discernimento porque o tipo de fecundidade messiânica para a qual tende nunca deixa de se misturar com os acontecimentos produzidos pela opinião pública e eclesial, formando com eles uma espécie de corpus permixtum [12].

Na conclusão, Theobald reitera que considera o Concílio Vaticano II o primeiro de uma Igreja que se tornou global e intercultural, mas, ao mesmo tempo, o último de um cristianismo euro-atlântico. Perante a possível crítica a uma leitura parcial em chave eurocêntrica dos textos do Concílio Vaticano II, especialmente no que diz respeito à Gaudium et Spes, o autor defende-se argumentando que “o catolicismo europeu e euro-atlântico permanece insubstituível na polifonia da as Igrejas particulares». Para além destas afirmações que abrem portas a muitas críticas, podemos acompanhar Theobald quando afirma que é possível abandonar uma leitura predominantemente eurocêntrica no contexto histórico actual, reflectindo sobre a consciência de que a sua visão messiânica e genética da Igreja é apoiada e atravessada por uma hermenêutica pastoral. Nessa perspectiva, percebe-se nas páginas dos textos conciliares o respeito absoluto pela alteridade do outro e, portanto, pela pluralidade de pontos de vista. Para o autor, esta sensibilidade é visível na centralidade dada aos pobres, em conformidade com a perspectiva dada pelo grupo conciliar “a Igreja dos pobres”. A maior surpresa de Teobaldo em relação ao debate pós-conciliar consiste na percepção do pouco espaço dado à liturgia. Apesar disso, devem ser retomadas e exploradas as recomendações do Sacrosantum Concilium sobre a participação ativa dos fiéis, que tinham a intenção de dar aos fiéis os traços de uma fé adulta.

O estilo evangélico de diálogo, mais do que de julgamento, de escuta, mais do que a presunção sumária de sentir-se obrigado a indicar ao mundo o que deve fazer, contaminou positivamente o caminho da Igreja. Os conselhos pastorais, órgãos sinodais nos vários níveis, representam sem dúvida o fruto positivo do esforço realizado pelo Concílio.



[1] THEOBALD, C., O futuro do Conselho. Novas abordagens ao Vaticano II , EDB Bolonha 2016

[2]Ibid., pág. 37

[3]Ibid., pág. 47

[4]Ibid., pág. 63

[5]Lá pág. 96

[6]Ibid., pág. 113

[7]Ibid., pág. 124

[8]Ibid., pág. 149

[9]Ibid., pág. 146

[10]Ibid., pág. 178

[11]Ibid., pág. 193

[12]Ibid., pág. 209

sábado, 17 de fevereiro de 2024

MARGENS - UM PROJETO SOCIAL

 




Margens é o nome do projeto que financia as atividades sociais da Paróquia São Vicente de Paulo localizada no bairro Compensa de Manaus, capital do estado da Amazônia no Brasil.

O nome deriva da característica específica de Manaus e das cidades vizinhas nascidas às margens (em português: margens) do grande Rio Amazonas e seus afluentes como o Rio Negro e o Solimões. Às margens destes rios estão as comunidades Ribeirinhas, com todos os seus encantos e os seus problemas. Margens também, coincide com a tradução do sobrenome do responsável por este projeto, que nasceu de uma longa amizade entre padre Paolo e Massimiliano, um empresário de Reggio Emilia, sensível às questões sociais.

A freguesia de San Vincenzo de Paoli está localizada na zona vermelha de Manaus, no bairro compensa, famoso pelas ações violentas dos traficantes locais. A Paróquia foi fundada na década de 70 do século passado com a ajuda dos jesuítas locais.  O nome do bairro – Compensa – foi devido a fábrica de compensado que tinha lá no começo da estrada que dava acesso ao bairro. Os primeiros moradores, eram em sua maioria oriundos das comunidades ribeirinhas ou localizadas na floresta amazônica.

Durante a assembleia das 7 comunidades da paróquia São Vicente de Paulo, que aconteceu no início do ano de 2024, os psicólogos e a assistente social convidados para nos ajudar a compreender a actual situação humana do bairro compensa onde vivem as 7 comunidades, apresentaram-nos um quadro muito duro. O maior problema parece ser o sofrimento mental dos adultos, que lutam para lidar tanto com a grande situação de insegurança causada pela violência do tráfico e com a elevada percentagem de desemprego.

Depois de uma série de diálogos com algumas pessoas das comunidades e com Massimiliano decidimos não construir um edifício específico que reunisse todos os projectos financiados pela Margens, mas sim colocar algumas salas nas 7 comunidades em condições de viabilizar a realização destes projetos.



Os projetos sociais em funcionamento envolvem crianças e adolescentes das sete comunidades são os seguintes:

Cursos de música

Guitarra

Bateria

Teclados

Violão

Cursos de dança

Cursos de Capoeira (atualmente em três comunidades)

Coro infantil

Cursos de idiomas

Inglês

Espanhol

Informática

Ativação de cursos preparatórios para vestibular (Enem e concursos públicos)

Oficinas de profissionalização para jovens

Produção de pão

Confeitaria

Culinária

Artesanato

Produção de sabonete com material reciclado

Sala de imprensa equipada para incentivar a comunicação dos projetos através das redes sociais

Planeamento de percursos psicológicos para jovens e pessoas que o solicitem atendimento psicossocial (atualmente a paróquia disponibiliza dois psicólogos uma vez por semana)

Projetos vinculados à Caritas

Cobertores, roupas e materiais de higiene pessoal para quem mora em situação de rua.

Disponibilidade financeira para intervenções imediatas quando as instituições públicas não respondem às necessidades (consertar portas, telhados, pagar contas, etc.).

Para garantir que os projetos ativados com a ajuda de Margens possam continuar mesmo depois da saída de Dom Paolo da Paróquia, decidimos não utilizar o dinheiro para pagar salários.

Os projetos serão apoiados com bolsas de estudo que exigirão sempre e em qualquer caso uma contribuição do candidato.

A previsão é a chegada de 50 mil euros cada ano por cincos anos. O dinheiro será colocado na conta do Centro Missionário Diocesano de Reggio Emília (é o nome da Diocese de padre Paolo), que será enviado no Brasil através da conta do Banco Santander da paróquia São Vicente de Paulo.

 

Idealizadores do projeto: Massimiliano Margini e Paolo Cugini

Colaboradores locais: Gecivaldo Siqueira e  Wanilda Lima 

sábado, 10 de fevereiro de 2024

AS PERPLEXIDADES DE KEPLER. A dificuldade de pensar diferente

 




 

Paolo Cugini

 

Nos diários de John Kepler (1571-1630), famoso matemático e astrônomo alemão do século XVII, encontramos narrado o caminho que o estudioso percorreu para descrever de forma matemática os movimentos dos planetas, juntamente com os do sol e a terra. Cerca de um século antes, Nicolau Copérnico argumentara que não era o Sol que girava em torno da Terra, mas sim o contrário. Foi o início dessa nova forma de ver o céu, que causaria o que mais tarde foi chamado de revolução copernicana. Nesta nova visão do mundo, o homem já não é o centro do cosmos, mas um ponto no infinito. Assim, como nos lembra o pensador francês nascido na Rússia, Alexander Koyré, passamos do mundo fechado para o universo infinito. Como sabemos, foram necessárias várias décadas até que aceitássemos esta nova visão do mundo. A principal dificuldade residia no fato de as pessoas sempre terem pensado de uma forma única, fortalecida tanto pela leitura metafísica que a filosofia aristotélica propunha ao sistema geocêntrico, quanto pela interpretação da Igreja que via o sistema geocêntrico em referência ao sistema astronômico. posição proposta pelo texto Sagrado. Nesta perspectiva, o heliocentrismo de Nicolau Copérnico (1473-1543) parecia uma afronta tanto à autoridade cultural reconhecida por todos como infalível, isto é, Aristóteles, mas acima de tudo parecia um golpe baixo contra a autoridade da Igreja. Sabemos o quanto Galileu Galilei (1564-1642), defensor da teoria heliocêntrica de Copérnico, sofreu com as acusações da Igreja, que não se importou com a metodologia experimental adotada por Galileu para demonstrar cientificamente suas posições, mas se preocupou inteiramente com aquilo que implicava em termos de credibilidade a nova abordagem heliocêntrica, que contradizia o que estava escrito na Bíblia.

Kepler apoiou a teoria heliocêntrica de Copérnico desde muito jovem. Através das suas observações ele intuiu a presença de uma força (gravidade) emanando do Sol que atraiu os planetas e os manteve em órbita. Embora tenha tido a oportunidade de recorrer aos cálculos astronómicos do mais importante astrónomo da época, nomeadamente Tycho Brahe (1546-1601), não conseguiu igualar esses cálculos com as órbitas circulares dos planetas. Ele não conseguia, como ele próprio admitia, porque não conseguia pensar nessas órbitas além do esquema astronômico aristotélico, assimilado desde a infância e que durava quase dois milênios. Estamos no início de 1600, o clima político-religioso já era bastante tenso e explodiria em 1618 na Guerra dos Trinta Anos, uma das guerras mais longas e sangrentas da história europeia. Expor-se a um tema que se tornou tão delicado como a astronomia, significava tomar partido. Kepler era protestante, Galileu, católico: ambos apoiavam a tese copernicana. Para eles, a autoridade no campo científico e, portanto, a última palavra não deveria ser deixada à autoridade religiosa ou à Sagrada Escritura, mas ao método experimental que passava pela observação que comprovava ou negava as hipóteses.

Pelo que o próprio Kepler relata em seus diários, já no início de 1600, o astrônomo e matemático havia entendido que o formato das órbitas não poderia ser circular, como sempre se pensou, mas sim algo diferente, que precisava ser pensado. Este era o problema: pensar algo diferente do que a Tradição sempre pensou. Só por volta de 1604 é que Kepler terá coragem de pensar num movimento orbital diferente do circular: a elipse. Para sua grande surpresa e enorme entusiasmo, os cálculos matemáticos de Tycho Brahe encaixaram-se perfeitamente neste novo modelo geométrico. É interessante notar que o próprio Tycho Brahe era contra a teoria heliocêntrica de Copérnico, assim como o grande astrônomo Michael Maestin (1550-1631), mentor de Kepler. Poderíamos dizer: era muito difícil pensar diferente num mundo onde todos pensavam da mesma maneira e pensar diferente significava arriscar a vida. Na verdade, sabemos como acabou Galileu Galilei que, por ter apoiado a tese copernicana, acabou nas prisões do Vaticano durante 16 longos anos. Deveria haver uma reflexão sobre o significado de uma instituição religiosa que se refere ao Evangelho e o nega com escolhas no mínimo questionáveis. Esqueça.

Por que essa história é importante? Porque nos faz compreender a grande pressão que as ideias veiculadas pelo poder político ou religioso exercem sobre nós, a ponto de não nos permitir “ver” a realidade como ela é, mas apenas como aparece a quem a impõe. Pensar diferente, desobedecer à imposição do poder, não é fácil: é algo brilhante, como foi Kepler ou Galileu. Para ter o golpe de génio é preciso ter a coragem de ir contra a instituição, que tudo fará para sufocar a diversidade de opiniões. Somente aqueles que compreenderam que a verdade está em outro lugar e que a instituição tem medo da novidade, porque pode desestabilizá-la, perecerão na rebelião. Somente aqueles que vislumbraram a realidade e desejam comunicá-la aos outros continuam no caminho. Só lutam contra a instituição opressora aqueles que têm a certeza de ter vislumbrado a verdade como um dado que está nos antípodas da verdade transmitida pela Tradição. Demorámos quase dois milénios a ver o céu de forma diferente, embora o grande astrónomo Aristarco (310-230 a.C.) já o tivesse afirmado. Precisamos da coragem e da falta de escrúpulos de algum gênio para nos ajudar a ver as coisas como elas são e nos libertar da escravidão do pensamento único que nos torna estúpidos e cegos. 

 

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A SÍNDROME DE MONTEZUMA-Caminho de libertação do passado

 




Paulo Cugini

 

Como explicar o fato de Cortez, com algumas centenas de homens, ter conseguido tomar o reino de Montezuma que contava com centenas de milhares de homens? O problema é: por que os índios ofereceram tão pouca resistência? Esta é a questão que está na base da obra do filósofo e pensador búlgaro e naturalizado francês Tzvetan Todorov: A Conquista da América. O problema do outro, Marin Fontes, São Paulo 2019.

 Sabemos que, pelos textos da época, os índios dedicam grande parte do seu tempo à interpretação das mensagens que os acontecimentos da atualidade manifestam. O problema para eles consiste em entender como um evento já ocorreu no passado, pois nada de novo acontece que já não tenha acontecido. Trata-se, portanto, de compreender, ou melhor ainda, de descobrir quando e de que forma ocorreu aquele acontecimento específico, que está a acontecer agora, e assim compreender como os antigos resolveram o problema. O futuro do indivíduo é determinado pelo passado coletivo. O indivíduo não constrói o seu futuro, ele se revela. Os índios de Montezuma ficam estupefatos com a notícia, porque tudo deve ter acontecido no passado, porque tudo volta.

Os espanhóis foram uma verdadeira surpresa para os mexicanos, por isso Montezuma não quis receber Cortez: demorava a perceber se já tinha acontecido uma situação semelhante no passado. Os astecas não escreviam, mas faziam pinturas. Havia um livro de pinturas antigas que revelava acontecimentos passados ​​aos sábios. Diante de cada nova situação, buscavam-se respostas no passado: o futuro não existia, porque tudo já havia acontecido. A identidade dos espanhóis é tão diferente e nova que perturba todos os meios de comunicação e os astecas já não conseguem recolher informações: já não existem no passado. Em vez de perceberem o acontecimento como um encontro puramente humano, ainda que inédito - a chegada de homens ávidos por ouro -, os índios os integram numa rede de relações naturais, sociais e sobrenaturais, onde o acontecimento perde a sua singularidade.

A ausência da escrita é um elemento importante da situação. Os astecas registravam situações com desenhos e não com linguagem escrita. A submissão do presente ao passado continua a ser uma característica significativa das sociedades indígenas da época. Isto diz respeito também à educação das crianças, que tiveram que aprender os ensinamentos do passado para interpretar os sinais do presente. A profecia, nesta perspectiva, é memória. Passado e futuro pertencem ao mesmo livro.  



Podemos ver claramente a relutância de Montezuma em admitir que um acontecimento totalmente novo pudesse acontecer. A vitória dos conquistadores também é vista numa perspectiva religiosa, como a superioridade da concepção de tempo do cristianismo, que avança para a novidade que, neste caso, corresponde à vitória sobre os indígenas. Os nativos não conseguem improvisar, porque para eles o acontecimento presente nunca é novo, mas tem sempre uma contrapartida no passado. Nessa perspectiva, o problema passa a ser interpretar os presságios, os sinais do presente para entender que acontecimento passado se trata.

O que podemos definir com termos retirados da atualidade, a síndrome de Montezuma, nos preocupa muito de perto. Principalmente com o passar dos anos, a tendência de nos refugiarmos no passado, rejeitando a novidade do presente que nos encontra despreparados, torna-se uma característica da nossa forma de agir e interagir com o mundo que nos rodeia. O grande problema, em determinado momento da vida, passa a ser a novidade que o presente acontecimento pode trazer. É capaz de se relacionar com a novidade, aquele que durante a vida aprendeu a deixar-se questionar e, assim, apreender cada situação da vida como possibilidade de crescimento e de renovação. Esta é a atitude da pessoa aberta, disposta, atenta, que ama a vida tal como ela se manifesta e não como gostaria de mantê-la.

Aqueles que, pelo contrário, se deixam dominar pela síndrome de Montezuma, muitas vezes partem de um caminho feito constantemente na defesa, na procura constante de segurança material, existencial, em que o importante é não lutar, não sujar as mãos, para permanecer protegido. Quem passa a vida na via de emergência acaba virando um velho rabugento, que tem medo de tudo, porque, afinal, tinha medo de viver.

A cura da síndrome de Montezuma, que se forma a partir das escolhas que fazemos quando crianças, é uma grande meta de todo pai, mãe, educador. Salvamo-nos desta síndrome mortal vivendo plenamente o nosso presente, não fugindo das coisas novas, mas abraçando-as com as duas mãos, porque aprendemos lentamente a reconhecer nas coisas novas o mistério da vida que nos chega, a saboreemos a emoção de tudo o que uma vida plena implica.