quarta-feira, 17 de maio de 2023

A doutrina da força e suas aplicações na filosofia de Emmanuel Mounier





 

Paolo Cugini

Mounier percebe o perigo de que a revolução nunca aconteça. E, refletindo sobre isso, o autor se interroga sobre o sentido da violência como passagem obrigatória pela realização da nova sociedade. O mundo da pessoa – escreve Mounier – exclui a violência como meio de constrição interior, mas algumas necessidades que se formaram na desordem anterior produzem ainda violência nas pessoas (MOUNIER, 1982, p. 35). Se é verdade que, em algumas circunstâncias, o uso da violência pode ser consentido, é preciso limitar ao máximo este meio revolucionário. Porém:

Se somente da violência pode, em algumas circunstâncias, depender a decisão final, nenhuma razão plausível pode exclui-la. A violência pode chegar somente como extrema necessidade. Quando é utilizada de forma prematura sufoca os homens e prejudica o resultado final. (MOUNIER, 1982, p.49).

 

Percebe-se, dentro o pensamento de Mounier, uma profunda tensão entre o reconhecimento como princípio do uso da violência em situações limites e, do outro lado, uma constante aspiração à paz. A não violência deve ser o fruto da força e deve conseguir repudiar toda aliança com o medo e a fraqueza. A renúncia de subverter com violência a desordem estabelecida é legitima somente se nasce da aceitação dos limites inevitáveis que a ação impõe e não por causa do medo.

Se, como vimos, Mounier não exclui em linha de princípio a ação violenta, todavia a sua preferência é com os meios de ação não violenta. No livro Revolução personalista e comunitária, o autor manifesta a vontade de experimentar, antes de tudo, os meios não violentos e de não utilizar nunca os meios violentos que, em si mesmos e num sentido absoluto, sejam condenáveis mas, acrescenta Mounier: “nós não acreditamos que todos os meios violentos sejam negativos pelo único fato de que são violentos” (MOUNIER, 1984, p. 281). Por isso, o cristão não deve recusar de forma prevenida o uso da violência, mas se questionar sobre a sua legitimidade e manter uma constante atenção sobre os meios que são envolvidos em cada ação. A não violência é uma arma tipicamente cristã, mas não é a única[1]. A teoria da revolução encontra-se aqui com uma filosofia da ação, aquela mesma que Mounier amadureceu no Trattato del Carattere (MOUNIER, 1993). Nessa obra, o autor insiste sobre a relação entre homem e ambiente e sobre a importância da experiência da ação.

 

A única prova da verdade de um homem são os seus atos. O valor das suas palavras, a autenticidade do seu pensamento, se revela somente na confirmação que é data, pois nós mesmos somos jogados na ação antes de refletirmos sobre ela (MOUNIER, 1993, p. 5).

 

Como é muito fácil perceber, a reflexão de Mounier acaba formalizando uma ética da ação, mais do que uma técnica da ação. O filósofo francês sublinha a exigência da ação, contra toda forma de pureza idealista que foge da realidade[2]. As páginas que dedica a este tema são de grande importância na estrutura do seu pensamento. O personalismo se recusa a ser técnica de ação e, ao mesmo tempo, recusa a acusação de ser uma mera filosofia utópica, sem nenhuma relevância para a história. Pelo contrário, o personalismo, que se desenvolveu ao longo dos anos 30 e 40 do século passado, sobretudo nas páginas da revista Ésprit, sempre ofereceu propostas concretas para os problemas encontrados[3].

O discurso sobre as formas concretas da ação é apenas esboçado. De um lado, de fato, nos anos entre as duas guerras, quando Mounier amadureceu o seu pensamento revolucionário, a exigência primeira era romper com a desordem estabelecida e o personalismo nesta época não conseguiu desenvolver um programa político social; do outro lado, quando Mounier, depois do segundo conflito mundial, teria as condições necessárias para enfrentar o problema, encontrou uma situação histórica e política extremamente mudada, de uma certa forma uma sociedade pós-revolucionária. Nem por isso Mounier reduziu o personalismo a uma espécie de revolução interior. De fato, depois da libertação, denunciava “a doença infantil da revolução espiritual” que amiúde se resolve numa postura

conservadora sem futuro, que fica confundindo a denúncia com a ação, sem conseguir incidir na ação da história.

Para inserir o personalismo no drama histórico do nosso temo não basta dizer: pessoa, comunidade, homem, etc.; é também preciso dizer: fim da burguesia ocidental, advento das estruturas do socialismo, função iniciadora do proletariado. (MOUNIER, p. 105) Somente assim, será possível evitar que o personalismo se torne uma ideologia boa para todos, sem alguma possibilidade de orientar as pessoas e, sobretudo, sem ter a chance de mudar o caminho da história. A filosofia personalista, portanto, não pode ser uma máscara para uma política de conservação social. Apesar disso, é bom salientar que o personalismo nunca conseguiu elaborar uma teoria da ação política[4]. “Recusada a democracia parlamentar, condenados sem apelo os partidos, considerados com suspeita os sindicatos, falta ao personalismo o meio para desenvolver o seu potencial revolucionário” (CAMPANINI, 2012, p. 113).

O pensamento político de Mounier consegue elaborar apenas uma teoria da ação para pequenos grupos. Foi isso que aconteceu logo no início da experiência da revista Ésprit, quando Mounier formou sobre todo o território francês pequenos grupos de estudo – os “grupos Ésprit” – que conseguissem manter uma ligação entre a realidade e a elaboração filosófica. A estrutura da sociedade do futuro pode ser criada no:

pequeno grupo, que vale para os homens que recolhem e pela intensidade da difusão, mais que pelo número, que não se propõe grandes tarefas revolucionárias, mas a descoberta corajosa de panoramas desconhecidos e a vigilância sobre um tesouro necessário ao bem-estar de todos, tesouro que os tumultos esquecem e ameaçam. (MOUNIER, p. 29).

 

A praxe revolucionária se resolve nesse contexto numa preparação da nova sociedade dentro de pequenos grupos, na espera de que estas formas novas de relacionamento social se ampliem, afetando toda a estrutura social. Mais uma vez, Mounier revela a sua vocação tipicamente cultural, mais do que política. A reflexão sobre a ação se resolve na passagem de uma ética do compromisso para uma ética do testemunho. Assim como também desenvolveu o discurso na sua obra fundamental – O personalismo –, Mounier indica quatro dimensões da ação: fazer, agir, contemplar, ação coletiva. Na realidade, somente o primeiro desses pontos tem como finalidade a ação propriamente dita, o poiéin, que Mounier resolve, sobretudo na economia, na ação do homem sobre as coisas, com todas as ligações que existem entre economia e política. O agir, que Mounier indica com o grego pràttein, tem como objetivo a ação ética, caracterizada pela autenticidade do seu jeito de se colocar, mais do que as formas concretas de como ela se realiza no plano dos acontecimentos históricos.

Também na categoria da theoréin, a contemplação não tem muito sentido da ação, assim como é compreendida no pensamento comum. Segundo a reflexão de Mounier, “a contemplação é uma tarefa do homem na sua totalidade; não é evasão da atividade comum para uma atividade escolhida e separada, mas aspiração para um reino de valores que desenvolvem toda a atividade humana” (MOUNIER, 2006, p. 125). A teoria da ação termina afirmando uma tensão entre o “polo político” e o “polo profético”, o primeiro mais concentrado sobre o sucesso, o segundo mais orientado sobre o

testemunho, todos dois, porém, indispensáveis ao homem de ação. É bom salientar que a teoria da ação do personalismo não se resolve numa confissão de impotência ou num refúgio sobre o plano ético e religioso. Na realidade, em Mounier existe uma teoria da ação, não uma técnica da ação[5].

Examinando com atenção a posição política de Mounier, percebe-se uma relevância prática. De fato, o filósofo francês reconhece o valor da não violência como atitude religiosa, como apelo à santidade. Isso, porém, não exclui o dever de se opor à força com a força. O homem não consegue se opor somente com o testemunho pessoal perante estruturas construídas contra a pessoa. “Nunca conseguirá sozinho sacudir a instituição do mal na estrutura do mundo moderno” (MOUNIER, 1984, p. 226). Por isso, junto com o compromisso espiritual, é preciso uma revolução interior, mas também política, para remover o reino da injustiça e da desordem estabelecida.

A teoria de Mounier sobre a ação indica dois polos: de um lado a denúncia de uma impossível pureza absoluta do compromisso; do outro, a indicação do perigo que a política se transforme em pura vontade de potência. Entre espiritualismo puro e vontade de potência, o personalismo se esforça para criar um difícil equilíbrio, sem porém, sacrificar a contemplação da ação, sem renunciar à técnica e, ao mesmo tempo, conferindo a prioridade aos meios espirituais.

 



[1] Cfr. Muito interessante, para aprofundar o relacionamento entre ação violenta e ação não violenta, são os escritos publicados em: Pacifistes ou bellicistes?, Paris 1939 (Em: MOUNIER, Emmanuel, Oeuvres, vol. 1, Paris: Bibliothéque de la Pléiade, pp. 785-836).

[2] Mounier enfrentou o tema da fuga da realidade em: Che cos’é il personalismo? Torino, 1948, cit. p. 22.

[3] Sobre esse assunto cfr. O nosso trabalho sobre o nascimento da revista Ésprit (CUGINI, 2009).

[4] É isso que sustenta CAMPANINI, 1968, p. 213.

[5] Segundo Giorgio Campanini (1968, p. 216) a teoria da ação de Mounier manifesta o grande limite do personalismo e a explicação da sua escassa incidência na política francesa.

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