segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

A IDENTIDADE FORTE DA ÉPOCA MODERNA

 




A percepção que recebemos quando prestamos atenção ao desenvolvimento da cultura pós-moderna é a tomada de consciência de que está faltando um esquema de referência que norteia a vida cotidiana. Como nos lembra Charles Taylor: “uma estrutura de referência é aquilo que nos permite dar um sentido à nossa vida espiritual. Não possuir uma estrutura de referência quer dizer cair numa vida espiritualmente sem sentido” (TAYLOR, 1998, p. 32). A estrutura de referência é o marco da cultura moderna ocidental. A identidade pessoal é moldada em valores assimilados desde a infância. Educar uma criança significa fazer de tudo para que ela assimile os valores e as virtudes necessárias para a integração na sociedade. É isso que nós encontramos já na antiguidade grega com a experiência da Paideia da Polis, onde as crianças aprendiam as virtudes necessárias para uma vida socialmente digna. Nesta primeira parte do artigo, queremos oferecer algumas chaves de leitura para entendermos a origem da estrutura do pensamento ocidental que se desenvolveu ao redor de algumas contraposições e, entre elas, vale a pena destacar o dualismo de harmonia e caos que desemboca no dualismo entre razão e sentimento de um lado e o contraste entre espírito e matéria que desemboca no dualismo de corpo e alma do outro. É a partir destas contradições que é possível entender a fonte dos valores e normas éticas que moldaram a cultura ocidental e, em seguida, compreender a crise da sociedade pós-moderna.

A experiência da cultura grega tem na tragédia um ponto de referência incomparável. Segundo Friedrich Nietzsche, o nascimento da Tragédia Grega deve-se sobretudo à dicotomia do apolíneo e do dionisíaco (NIETZSCHE, 2007). O termo dionisíaco vem da figura do deus grego Dioniso, cuja presença deriva da influência das tradições orientais. As festas dionisíacas comportavam danças compulsivas ao fim de alcançar uma forte emoção e a superação do próprio eu, para que pudesse emergir o mesmo si natural, típico do impulso vital, da criatividade, do desejo no seu aspecto mais instintivo. Foi desta maneira que o dionisíaco foi se identificando com instinto, emoção, irracionalidade, sensualidade e criatividade. Por outro lado, o apolíneo é a tentativa de captar a realidade através de construções mentais ordenadas, negando o caos, que é um aspecto típico da realidade, bloqueando desta forma o essencial dinamismo da vida. O espírito apolíneo expressa o componente racional do indivíduo, que vem se contrapondo ao espírito dionisíaco que, por isso, representa o seu contraste. A filologia clássica ao tempo de Nietzsche era convencida de que o mundo da civilização grega fosse caracterizado por um espírito de equilíbrio entre dionisíaco e apolíneo. Enquanto o apolíneo dominava na arte e na escultura, o dionisíaco prevalecia na música e na poesia lírica. Também a religião não ficou fora deste dinamismo. De fato, enquanto no Olimpo reinava a harmonia entre os deuses, do outro lado aconteciam ritos dionisíacos caracterizados pelas emoções e a exaltação entusiástica do sexo.

É possível distinguir na história grega três períodos: no primeiro acontece o milagre da convivência do espírito apolíneo com o dionisíaco, separados entre eles como aparece nas tragédias de Esquilo e Sófocles; no segundo os dois espíritos se harmonizam e no terceiro momento, com Eurípides e Sócrates, o espírito apolíneo prevalece sempre mais. (KERÉNVI, 1992)

Para compreendermos o pessimismo grego, que Nietzsche percebia forte e enraizado mas, ao mesmo tempo, não decadente, Nietzsche reconhece como o homem grego percebe em profundeza a negatividade e a caducidade da existência, mas também como consegue, através do espírito dionisíaco, superar o niilismo que esta atitude comportava para erguer-se através o pessimismo da coragem (FIGAL, 2002). Aquilo que levará a tragédia à decadência será a derrota do dionisíaco. Para Nietzsche os maiores culpados são Eurípides e Sócrates pois exasperam a interpretação racional do mundo, sustentando a compreensibilidade junto com uma otimística positividade – ambos elementos que acabam com o dionisíaco – levando à decadência da tragédia com Eurípides. 

Em suas duas divindades artísticas, Apolo e Dionísio, baseiam-se em nossa teoria de que no mundo grego existe um enorme contraste, enorme para a origem e o propósito, entre a arte figurativa, a de Apolo, e a arte não figurativa de música, que é propriamente a de Dionísio. Os dois instintos, tão diferentes um do outro, andam lado a lado, principalmente em discórdia aberta, mas também se estimulam mutuamente para partes novas e cada vez mais vigorosas, a fim de transmitir e perpetuar o espírito desse contraste, que a palavra comum "arte" resolve apenas na aparência; até que, em virtude de um milagre metafísico da "vontade" helênica, pareçam finalmente acoplados entre si, e nesse acoplamento final eles geram a obra de arte, tão dionisíaca quanto apolínia, que é a tragédia grega. (NIETZSCHE, 2007, p. 79)

A lenta e irrestringível vitória da racionalidade apolínea sobre o sentimento dionisíaco marca de forma contundente a estruturação da cultura ocidental. De agora em diante, podemos dizer que o caos foi ordenado, mas pagando um preço muito alto, ou seja, o desrespeito da realidade assim como ela se manifesta, em favor de um sistema racional tranquilizador. O ocidente moldou-se sobre a escolha arrogante de ter a pretensão de controlar a natureza, de dominar a realidade, identificando de agora em diante o sentimento e as paixões humanas como algo de negativo, sem dúvida inferior se comparado com a força da racionalidade. A tranquilidade oferecida por sistemas racionais que, antecipando a realidade, orientam o destino do mundo, pagou o preço caríssimo de uma vida paralela, na qual as forças criativas são poupadas por serem consideradas perigosas e, sobretudo, nocivas ao sistema. Uma vida tranquila é considerada melhor para as pessoas de uma vida insegura dominada pelos sentidos: essa é a escolha e uma característica fundamental da cultura que se impôs no ocidente.  Assim, essa maneira de pensar a realidade se estruturou desde a época de Platão, se esforçando em dar razão ao caos do mundo fenomênico, elaborando um sistema que permita a firme distinção entre a matéria e o espírito, o céu e a terra, o mundo sensível e o mundo suprassensível (REALE, 2003). De agora em diante, é o espírito que guia a matéria, são as ideias perfeitas e imóveis que alicerçam a existência dos fenômenos móveis e, por isso, carentes e perecíveis. A força dos sistemas filosóficos elaborados no mundo ocidental está toda num pensamento metafísico que molda a realidade móvel a partir de ideias imóveis. Nesse sentido tipicamente ocidental, os valores, as virtudes e a mesma verdade pertencem ao mundo suprassensível, que é imóvel, fixo, eterno, rígido, único, indivisível. A vida moral humana consiste no esforço de traduzir na vida humana sensível os valores eternos imóveis, que norteiam a vida cotidiana e oferecem um sentido. Poucos filósofos se questionaram sobre um ponto fundamental: a realidade na qual mergulham é assim mesmo? Não estamos perante uma grande contrafação? São os valores morais que são eternos ou não são nada mais que o fruto de complicados sistemas racionais produzidos por homens?

Essa estrutura metafísica bastante rígida, toda a detrimento do mundo material, considerado como um produto imperfeito de ideias perfeitas, é a base da antropologia dualista de matiz platônica, que considera o corpo como prisão da alma. A fuga do mundo e o desprezo do corpo, culpado para dificultar a vida da alma, foram elementos que marcaram a espiritualidade do cristianismo ocidental que, desde o começo, foi marcado por uma profunda absorção da filosofia platônica na forma do neoplatonismo plotiniano (REALE, 2008).  A reflexão dos Padres da Igreja dos primeiros séculos do cristianismo está tão imbuída de platonismo, ao ponto que é impossível abordar os textos destes autores sem ter um conhecimento prévio do neoplatonismo que se afirmou no terceiro século da hera cristã. Se é verdade que o ocidente é profundamente marcado pelo pensamento cristão, é também verdade que não existe cristianismo na sua forma filosófica sem levar em conta os grandes sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles. Enquanto o primeiro foi a base da elaboração filosófica de Agostino, que a partir do quinto século dominou a cena cultural por oito séculos, a metafísica aristotélica foi o pano de fundo do grande sistema teológico elaborado por Thomas de Aquino no XIII século, que se impôs até os nossos dias[1]. Tudo isso pra dizer o quanto o ocidente cristão foi moldado pelos sistemas filosóficos gregos, influenciando de forma contundente os conteúdos do Evangelho. Se de fato a ressurreição de Jesus Cristo deveria ter deixado passar uma nova forma de monismo antropológico, no sentido que o corpo vive o mesmo destino da alma, não foi este o anúncio do cristianismo. O menosprezo do corpo foi acompanhado pela desvalorização da sexualidade ao ponto de considerar o matrimônio como uma proposta de segundo nível se comparada com o celibato dos religiosos. Não é por acaso que no livro dos santos canonizados pela Igreja católica a maioria esmagadora é de religiosos. A necessidade dos sacrifícios corporais que, em alguns casos, chegam até o ponto de machucar o corpo para aliviar a alma, constitui um conteúdo importante da pregação católica por muitos séculos. A contraposição entre céu, entendido como verdadeira e autêntica morada do homem, e a terra, percebida como castigo e âmbito de grandes tentações que atrapalham a vida autêntica que busca a perfeição, produziu a espiritualidade da fuga do mundo, que grande influência teve nos primeiros séculos da Igreja. Ao longo dos séculos, o mundo material no seu conjunto, como matéria, corpo, paixões humanas e sexualidade, foi sacrificado no altar da racionalidade, ou pelo menos, na maneira de entendê-la. O homem e a mulher virtuosa sempre foram pessoas que sacrificaram a própria sexualidade, o próprio corpo, os próprios sentimentos para uma aparente harmonia oferecida pela estrutura racional. Até guerras foram feitas pela afirmação dos presunçosos valores ocidentais cristãos. Também o encontro com culturas alheias, como aconteceu a partir do século XVI, elaborou um julgamento de inferioridade, que até justificou a escravidão e a matança de miliares de pessoas (TODOROV, 2010).

A percepção nietzschiana do niilismo ocidental, como processo de desmascaramento da construção cultural dos valores religiosos e morais, revela que o sentido profundo da identidade do homem ocidental sempre foi alicerçado sobre uma estrutura forte de valores. Analisar como se formou a identidade no ocidente ajudará a entender a dificuldade do homem e a mulher pós-moderna de viver dentro de uma estrutura fictícia e, ao mesmo tempo, a tentação de fugir dela. É exatamente a este nível que se encaixa a análise de Charles Taylor. Segundo ele, “o fato de viver dentro desses horizontes altamente qualificados é essencial para a ação humana e evitar esses limites significaria deixar de parecer integral, ou seja, pessoas humanas completas” (TAYLOR, 1998, p. 43). A antropologia filosófica taylorista nos devolve a imagem do homem como um ser constitutivamente moral, porque na base de suas escolhas, de suas ações, há sempre a referência às diferenças intrínsecas de valores, às fortes avaliações, que constituem os pontos de referência crucial do horizonte moral em que todo indivíduo, digno desse nome,  se encontra localizado. Por isso, segundo Taylor, a construção da identidade no ocidente, longe de ser um ato individualista, é um fato social. É na sociedade que o sujeito encontra um patamar de saberes e de valores que o norteiam. "Viver em sociedade é uma condição necessária para o desenvolvimento da racionalidade, em um dos sentidos possíveis dessa propriedade, ou para a transformação em um agente moral, no sentido pleno do termo, ou em um ser autônomo totalmente responsável" (TAYLOR, 2004, 191). Por isso, a identidade do indivíduo é sempre uma identidade dialógica, nunca monológica, pois nasce e se desenvolve numa sociedade.  Mesmo quando é a identidade de um individualista radical, ainda deve haver um horizonte de significado que permitiu que esse indivíduo pensasse nesses termos. Nesse sentido, a antissociabilidade também é intrinsecamente social justamente porque o homem é, segundo Taylor, um animal constitutivamente social. A racionalidade ocidental exige a sociabilidade e a mesma identidade subjetiva molda-se neste âmbito imprescindível.

A descoberta da interioridade por parte de Santo Agostinho no século V de um lado, e a redução da realidade ao cogito individual operada por Descartes no século XVI, leva progressivamente a cultura ocidental a elaborar um modelo de identidade humana, que exige uma autenticidade entendida como autorrealização subjetiva. Segundo Taylor:

A ética da autenticidade é algo relativamente novo e peculiar à cultura moderna. Nascida no final do século XVIII, desenvolveu-se de formas anteriores do individualismo, como o individualismo da racionalidade desengajada, iniciado por Descartes, no qual a exigência é de que cada pessoa pense de maneira autorresponsável por si mesma, ou o individualismo político de Locke, que pretendia tornar a pessoa e sua vontade anterior às obrigações sociais. (TAYLOR, 2011, p.35)

A grande novidade desta virada moderna consiste no fato que, enquanto na época anterior dominada pela moral cristã, o conceito de autenticidade subjetiva era estritamente ligado ao patamar de valores que tinham Deus como referência final, agora, a fonte que oferece autenticidade a cada pessoa está no fundo de nós mesmos. Claramente, como nos lembra Taylor, esta nova fonte da interioridade não exclui o nosso ser relacionado a Deus ou às ideias de cunho platônico. Trata-se do desenvolvimento da intuição agostiniana que aponta o caminho para Deus como passagem, através da interioridade da pessoa humana. Assistimos, assim, na modernidade a uma virada subjetiva massiva, uma nova maneira de interioridade, na qual chegamos a pensar em nós mesmos como seres de profundidade interior. A grande novidade desta virada está na mudança do quadro de referência. De fato, de agora em diante, a fonte dos valores que norteiam a vida das pessoas, não é mais Deus, mas a natureza. Jean Jacques Rousseau é o testemunho desta passagem.

Rousseau frequentemente apresenta o problema da moralidade como aquele em que nós seguimos uma voz da natureza dentro de nós. Esta voz costuma ser abafada pelas paixões induzidas por nossa dependência das demais, das quais a paixão chave é o amor próprio ou orgulho. Nossa salvação moral advém da recuperação do contato moral autêntico com nós mesmos. (TAYLOR, 2001, p. 36-37)

A ideia de natureza, que já se encontrava conceitualmente elaborada, sobretudo na teologia de Santo Thomas de Aquino, assume neste novo cenário teórico um novo e mais profundo alcance, pois vem substituindo o lugar que em antecedência pertencia a Deus. É importante salientar que nos encontramos sempre no âmbito da metafísica, ou seja, de uma forma de pensar que antecipa a realidade e que determina o rumo da história na qual é inserido o sujeito.



[1] É importante lembrar que o papa João Paulo II na encíclica Fides et Ratio do 1998 considerou a teologia tomista como o ponto referencial ainda valido da teologia católica. 

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