sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

A MULHER: IMAGEM DE DEUS?

 




 

Paolo Cugini

Para entendermos como uma tradição cultural como a cristã passa a ler dados bíblicos na direção patriarcal, fortalecendo gradualmente os estereótipos androgénicos, é necessário analisar o período patrístico, passando brevemente por consideração o período medieval e moderno. Existe um primeiro modelo antropológico válido até o século IV d. C., que indica a perfeição humana constituída pelo homem-Adão[1]. As mulheres, por outro lado, que não são criadas à imagem de Deus, podem alcançar a salvação se tornando homens honorários em Cristo. Há um processo de defeminilização, ou seja, um processo de negação das características femininas, que encontra sua realização na escolha da virgindade ou na aceitação da viuvez, o que implica claramente inatividade sexual. Esse padrão sobrevive na tipologia Adão-Cristo, Eva-Maria / Igreja, que reproduz a assimetria de gênero, ou seja, a designação de tarefas sociais a partir da compreensão da sexualidade entendida em um sentido diferenciado e binário. A teóloga italiana Selene Zorzi traça esse padrão arcaico a partir de Justin e Irineu. Em particular, este último, através do paralelismo mencionado acima, reproduz uma condição subordinada da mulher resultado de uma teoria arbitrária, em vez de uma reflexão sobre a realidade da mulher.

O segundo modelo se desenvolveu entre os séculos III e V e também se estendeu a toda a Idade Média. Nesse modelo antropológico, homem e mulher devem alcançar uma imagem assexuada de Deus, que pressupõe um Deus sem sexo. Portanto, é necessário abandonar tudo o que pertence ao corpo e à sexualidade e tornar-se como anjos. As passagens bíblicas mais citadas pelos autores que seguem esse modelo, ou seja, Clemente Alexandrino e Orígenes, são Gal 3,28 e Lc 20,36, além de Mc 12,25 e Mt 22,30. Clemente é a expressão patrística daquele platonismo retrabalhado na primeira fase do cristianismo que, a partir do dualismo de corpo e alma, convidava os cristãos a fugirem do mundo e, portanto, refugiarem-se no deserto. Clemente, Zorzi nos lembra, é o primeiro pai da Igreja que conecta Gen 1,27b (homem e mulher que ele os criou) a Gen 1,26-27a (à imagem de Deus) usando Gal 3,28 (não há mais homens ou mulheres) como chave interpretativa. Essa leitura permite afirmar e atribuir a imagem de Deus à mulher, mesmo que considere apenas as habilidades espirituais que, segundo ele, são assexuadas. A razão dessa limitação deriva da abordagem platônica de Clemente e, por causa disso, se recusa a considerar o corpo e as diferenças corporais como imagem de Deus. Sempre na base do texto Gal 3,28, Clemente afirma que a imagem de Deus não é masculina, nem feminina. Sendo que somente Cristo realizou completamente a palavra dita por Deus em Gênesis 1:26, significa que todos os outros seres humanos são uma imagem da imagem, isto é, do Logos. Embora Clemente, observa Zorzi (2015, p.99), seja um dos pais da Igreja em que o uso de metáforas femininas para falar de Deus é mais abundante, a terminologia da feminilidade é usada para indicar fraqueza.

A teologa italiana Selene Zorzi, citada no artigo


Orígenes também se move nessa esteira platônica, indicando que o homem feito à imagem de Deus é o interior, porque Deus não tem corporeidade, e os antropomorfismos das Escrituras em referência a Deus devem ser entendidos alegoricamente. É interessante notar a dificuldade de abandonar um modelo filosófico como, neste caso, o platonismo, para seguir a coerência de um pensamento que se esforça para permanecer atento ao ouvir a Palavra. É isso que Zorzi destaca quando Orígenes propõe um caminho espiritual. Embora sejam ideias que:

suponham a feminilidade da alma perfeita, elas não implicam em Orígenes nenhuma repercussão nos papéis sociais e nenhuma mudança desses padrões de gênero. Para ele também, de fato, a mulher em casamento deve ser submissa ao marido [...] Ele compartilha com a cultura tradicional de seu tempo a ideia de que a mulher da geração é completamente passiva (Zorzi, p. 115).

Também neste período, há uma linha neoplatônica de pensamento patrístico levada a cabo na tradição latina por Tertuliano que, como sabemos, não tem uma visão muito positiva das mulheres. De fato, ele sustenta que “toda mulher deve andar como Eva em penitência de luto, para que, com o disfarce de penitência, ela expie completamente o que deriva de Eva - ignomínia, digo, do primeiro pecado, e o ódio inerente a ela, a causa da perdição humana”. O estereótipo sexista de que toda mulher é a Mulher Eva é evidente nesta curta passagem. Como Zorzi aponta, todo processo de estereotipagem traz não apenas generalização, mas também deformação. Nesse caso, Eva é culpada pela queda de toda a humanidade. Também sobre o tema das virgens, que diferiam das mulheres casadas que usavam o véu nas celebrações litúrgicas, Tertuliano usa e aplica o esquema matrimonial patriarcal ao impor o véu às virgens.

Na tradição antioquena, que foi afirmada no século IV, Giovanni Crisóstomo afirma que homem e mulher compartilham o typos, mas não a mesma morphé. É o anthropos, portanto, a participar da imagem de Deus e não a morphé. Para ele, a imagem indica dominação e, portanto, é apenas no homem e não na mulher. De fato, o homem não é submisso a ninguém, enquanto a mulher é submissa ao homem. Segundo Crisóstomo, o homem tem uma superioridade natural sobre a mulher, porque Cristo é a cabeça dos homens e os homens das mulheres; porque como os homens são a glória de Deus, as mulheres são dos homens. É por isso que, numa família, apenas um pode comandar. Segundo Zorzi:

toda a tradição antioquena atribui a Paulo a ideia de que a mulher não é criada à imagem de Deus. [...] Os antioquenos não acreditam que essa submissão da mulher seja uma consequência do pecado: seu androcentrismo é diretamente justificado como vontade de Deus, claramente uma sacralização dos modelos sociais (Zorzi, p. 122).

Os mesmos padrões androcêntricos que veem o homem liderando a mulher, ainda que mais sutis, aparecerão nos capadócios. Agostinho, considerado o epígono do pensamento patrístico ocidental, elabora sua reflexão profundamente marcada pelo platonismo do século VI. Segundo ele, a imagem de Deus reside na alma e, consequentemente, as mulheres, em seu corpo, não são capazes de simbolizar essa imagem de Deus e, portanto, são prescritas para se cobrirem com o véu. A mulher em seu corpo não é criada à imagem de Deus, mesmo que ela não seja excluída da imagem redimida. Agostinho acredita que a distinção sexual diz respeito apenas à corporeidade, porque a alma não tem sexo. Zorzi ressalta que Agostinho apenas no final de sua vida percebe que o corpo é uma parte estrutural da pessoa e, portanto, também a sexualidade pode não apenas ter uma função ligada à procriação, mas deve ser parte integrante da estrutura pessoal humana.

No contexto do debate sobre a possibilidade de uma mulher ter uma alma ou se ela participa da imagem de Deus, um contexto explicitado no Concílio de Macon de 585, significativas tornam-se as considerações de um autor anônimo renomeado por estudiosos como Ambrosiaster, que acreditava que as mulheres não haviam sido criadas à imagem de Deus. O fato histórico de que, mesmo no século VI da era cristã, alguém se perguntava sobre um tema como esse, já é significativo. O mesmo acontecerá no século XVI, quando será a vez dos índios e mais uma vez será um documento papal que estabelecerá que eles também têm uma alma[2]. Para Ambrosiaster, portanto, a mulher não pode ter a imagem de Deus porque esta é ligada ao poder e ao domínio. Um só Deus pode ter criado apenas um homem, e consequentemente todos os outros seres carnais, incluindo a mulher, derivam dele. Zorzi ressalta que essas posições misóginas tiveram uma influência significativa no canonismo da Idade Média. O Decretum de Graziano do século XII afirmava: “Essa imagem de Deus está no homem, que pode ser o único do qual todos os outros que têm poder divino derivam, quase seus vigários, porque somente ele tem a imagem de Deus. Isto é, a mulher não é feita à imagem de Deus” (Zorzi, p. 141). O Decretum também estabeleceu que mulheres, como menores, não tinham o direito de acusar alguém em tribunal, não podiam testemunhar, nem interceder por ninguém, eram excluídas do papel de juízes e de todos as demais funções relacionadas à advocacia. Zorzi concorda com o estudo de Gary Macy[3], que argumenta que o agravamento na discussão sobre as mulheres se tornou misógino desde a reforma gregoriana e as leis concomitantes sobre o celibato obrigatório do clero (Pisa, 1135). Para incentivar a continência e o celibato, as mulheres são cada vez mais marginalizadas, denegridas, e a sexualidade cada vez mais considerada algo impuro. Por essas razões, os canonistas dos séculos seguintes insistirão no tema da impureza cultual das mulheres, sustentando, com Rufino de Bolonha (1150-1191), que as mulheres menstruadas não podem entrar na Igreja. E assim a igreja, em vez de progredir, remonta dramaticamente ao tempo do Levítico. Sempre Gary Macy sustenta que os tons misóginos da Igreja do século XII em relação às mulheres contribuíram para considerar o estado matrimonial como uma vocação de segunda classe, enquanto o celibato é cada vez mais considerado o caminho certo para a santidade. Também, neste período verdadeiramente nefasto, não apenas para as mulheres, mas por toda a caminhada da igreja, haverá aqueles que argumentarão que as mulheres são menos inteligentes que os homens, que são menos constantes e sábias que os homens, além de serem claramente fracas[4].

A interpretação patrística fornecerá o esquema de referência também para os séculos seguintes. Argumentos misóginos serão enriquecidos com elementos sexofóbicos. É interessante notar que, justamente neste período em que a mulher é cada vez mais denegrida com qualquer tipo de denominação negativa, a reflexão sobre a exaltação devocional da mulher-anjo é elaborada e difundida, e o que hoje é chamado de princípio mariano adquire valor. Isso pode ser visto, por exemplo, na pregação de Bernardo Chiaravalle que, embora não poupe adjetivos depreciativos em relação à mulher, indicando-a como fraca, saco de lixo, incapaz de assumir tarefas, por outro lado, exalta o ideal da feminilidade de Maria, o único representante perfeito do gênero feminino.

A modernidade não acrescentará nada de novo aos argumentos negativos sobre as mulheres desenvolvidos nos tempos medievais. Zorzi ressalta que a única diferença será uma mudança de método: “A motivação antropológica e teológica começa a perder importância e o argumento baseado em papéis sociais se torna central. Essas discussões terão como objetivo justificar a exclusão da ordenação sacerdotal” (Zorzi, p. 147). A caça às bruxas e a elaboração da demonologia devem ser atribuídas ao processo de as mulheres assumirem funções e papéis cada vez mais emergentes, “especialmente aqueles que se tornaram prerrogativas exclusivas do ministério ordenado”[5]. Como a ordem sagrada implicaria uma condição de superioridade para as mulheres, para todas as séries de argumentos medievais de sua suposta inferioridade, elas devem ser excluídas. Além disso, cresce a ideia de que nenhuma mulher no Antigo Testamento ou na história da Igreja jamais teria assumido um cargo ministerial e, portanto, a possível ordenação de mulheres causaria uma interrupção da tradição. Essa ideia, como podemos ver, que é tão importante no atual debate sobre a ordenação de mulheres no mundo católico, surge aqui, em um contexto que compreende mal os dados bíblicos e também uma hermenêutica mais aprofundada. O sexo feminino é, portanto, considerado um impedimento em si, uma vez que a sexualidade feminina indica a submissão de natureza. Todas declarações que hoje não encontram sustentação em nenhum lugar. A partir do século XVII, são considerados hereges todos aqueles que permitiam que as mulheres tivessem acesso ao altar. No século XVIII, quando a lei hereditária começou a permitir papéis do governo para as mulheres, autores eclesiásticos argumentam que a lei natural o proíbe. “Está claro que a antropologia formulada na Patrística e retrabalhada na Escolástica continua estruturando o argumento sobre a posição da mulher até a modernidade”, conclui Selene Zorzi.

 



[1] Cf. Selene Zorzi, Al di là del “genio femminile”. Donne e genere nella storia della teologia cristiana. (Roma: Carocci, 2015).

[2] Trata-se da bula papal Sublimis Deus emitida em 29 de maio de 1537, pelo Papa Paulo III, em que afirma que os índios são homens, capazes de compreender a fé cristã e condena explicitamente a escravidão.

[3] Gary Macy, The Hidden for History of Women’s Ordination: Female Clergy in the Medieval West (Oxford: OUP, 2008), 139.

[4] Um certo Bernardo di Botone (m. 1226), canonista de Parma, atinge o ápice da estupidez literária desse período, quando chega a dizer: "O que é mais leve que a fumaça? A brisa. O que mais do que a brisa? O vento. O que mais do que o vento? Uma mulher. O que mais do que uma mulher? Nada" (relatado por Macy, The Hidden, 118).

[5] Kari Elizabeth Borresen e Adriana Valerio, Donne e bibbia nel Medioevo (secoli XII-XV). Tra ricezione e interpretazione. (Trapani: il Pozzo di Giacobbe, 2011), 57. 

Um comentário:

  1. A violência contra a mulher por conta de escritos baseado na sociedade patriarca vêm perdendo forças,a Igreja católica está reconhecendo que todo somos iguais afinal o celibato é uma forma de castramente quando imposto por uma instituição, porém, Jesu é fruto de uma mãe solteira que foi regeitada ao noivo.Se as mulheres não forem Divinas como Cristo iria ser Deus se frutos feminino?O divino não têm gênero, agora aqui pra nós qual sexo de Deus? Existe? Existem situações adiversas entre ambos sexualidade já está explícito na almas dos seres humanos iluminandos.

    ResponderExcluir