terça-feira, 3 de dezembro de 2024

EXPANSÃO

 




 Paulo Cugini


Os astrofísicos nos explicaram que o universo está muito longe de poder ser definido e compreendido com sistemas rígidos e fixos, porque está em movimento contínuo: ele se expande. Após a explosão inicial, segundo a teoria do Big Ben, o universo nunca parou de se expandir. Esta é a natureza da realidade: um movimento constante de expansão que. traduzido em filosofia significa que, quem segue o caminho do desenvolvimento de sistemas rígidos, segue um caminho destinado ao fracasso. O que é rígido, num universo em expansão, quebra. Esta é a triste conclusão da história da narrativa ocidental da realidade. Seu fracasso está, infelizmente, à vista de todos. As repetidas crises do sistema económico são o sintoma de uma interpretação errada, que foi imposta apenas pela força, mas a força não determina a autenticidade de uma verdade. O mesmo se aplica às alterações climáticas em curso, fruto do Antropoceno, daquele mundo criado à imagem e semelhança do homem ocidental que felizmente não é Deus. O que é rígido num universo em movimento se rompe. Esta discussão leva-nos a compreender que a realidade, tal como se manifesta e tal como a ciência nos descreve, não necessita de um pensamento que se deixe guiar pelo instinto de sobrevivência humano, que tende a fixar as coisas, a enrijecê-las para dominá-las. , mas deve ir exatamente na direção oposta. É o caminho da escuta que a energia do universo nos sugere. 

Caminhos de escuta, que se tornam caminhos de descoberta do desconhecido, daquilo que só podemos aprender. Nesta viagem descobrimos povos indígenas com uma visão de mundo oposta à ocidental. Se, de fato, desde o início do desenvolvimento do pensamento lógico-filosófico, o homem sempre se considerou no centro do mundo fechado, separado do resto, que considera como à sua disposição, a perspectiva da cultura indígena em que o homem e mulher sentem-se parte do cosmos. Diferentes visões de mundo que produzem diferentes caminhos, diferentes formas de estar no mundo. Quando nos sentimos parte de algo nós protegemos, cuidamos, nos interessamos por isso. Pelo contrário, quando a realidade é percebida como externa a nós, ela nos interessa na medida em que nos pode ser útil. Concepções de mundo que abrem diferentes horizontes e perspectivas, que deixam uma marca profunda na história, para o bem ou para o mal. Bastaria reler as páginas da astronomia aristotélica em De Coelo ou Física para compreender como se moveu Aristóteles, um dos protagonistas da formação do pensamento ocidental. Um mundo ordenado e finito, estruturado em 55 esferas, com a terra no centro. O movimento só poderia ser esférico, porque a esfera, na mentalidade dos primeiros filósofos, é a forma mais perfeita. O universo é então finito, porque tem um centro, nomeadamente o centro da terra e, na lógica aristotélica, um corpo com centro só pode ser finito. Um universo feito assim pode ser gerenciado pela mente humana, pode ser controlado e, acima de tudo, não gera surpresas. 

O homem ocidental considerava-se o centro de um universo finito com movimentos circulares perfeitos. Do caos desordenado passamos para a ordem do cosmos. Como sabemos, a Igreja adotou este modelo, que foi assimilado ao sistema teológico de São Tomás, que utilizou o sistema filosófico aristotélico para sistematizar os principais mistérios da revelação bíblica de forma clara e ordenada. Existe uma necessidade de ordem que foi impressa no caminho da cultura ocidental, uma necessidade que moldou todas as formas de conhecimento ao longo do tempo, incluindo o conhecimento religioso. Neste caminho de passagem do caos à ordem, a realidade foi compreendida e ordenada a partir de princípios a priori. O mundo que circunda o homem entrou no sistema desenhado pelo homem e respondeu aos propósitos indicados pela cultura. Há, portanto, uma relação de força que orienta o caminho da cultura ocidental na sua relação com um mundo que não é compreendido senão na medida em que é interpretado a partir de esquemas de pré-compressão. Mais uma vez, é possível ler nesta perspectiva o sofrimento do planeta Terra, gradualmente violado por uma cultura que, antes de ouvir a realidade, classificou-a e obrigou-a a enquadrar-se em padrões pré-definidos. 

Nem todas as culturas percorreram o mesmo caminho. Permanecendo no terreno dos povos indígenas acima mencionados, a sua visão de mundo, que não é movida pela necessidade de ordem e controle, mas pela percepção de fazer parte do Todo, produziu uma forma diferente de habitar a terra. Pesquisas recentes de um grupo de antropólogos, arqueólogos e pesquisadores brasileiros identificaram, com as novas ferramentas oferecidas pela tecnologia, que no subsolo da chamada região Pan-Amazônica, que envolve nove países, existem cerca de dez mil sítios arqueológicos, sinal de uma região altamente habitada, ao contrário das estimativas feitas por pesquisas anteriores, muitas vezes ditadas por razões ideológicas e políticas. A característica que permitiu aos arqueólogos identificar estes sítios é a biodiversidade. O fato surpreendente, de fato, é que a presença dos povos indígenas ao longo dos séculos produziu a proteção e o desenvolvimento da biodiversidade no território habitado, exatamente o oposto do que aconteceu no Ocidente onde, os homens chegaram, produziram não apenas a morte e destruição de outras culturas, mas também a deterioração da biodiversidade local. 

Mais uma vez fica claro que a nossa forma de pensar o mundo e a realidade envolvente determina um estilo de vida, uma forma de habitar a realidade. Não se trata de contrastar culturas ou de elogiar umas e desprezar outras, mas simplesmente de realçar a diversidade de percursos culturais e a diferente abordagem ao mundo envolvente que provocam. Há quem gostou de inventar sistemas, rabiscar doutrinas, forçar a realidade a caber nas elucubrações da sua mesa de centro, e quem, em vez disso, passava o tempo em contacto com a natureza, procurando viver em harmonia, percebendo uma certa sacralidade, protegendo e respeitando isso. Diferentes caminhos que produziram diferentes mentalidades e sociedades.


terça-feira, 12 de novembro de 2024

A BÍBLIA UMA ARVORE DAS MUITAS CORES

 



Paolo Cugini


Estamos habituados a pensar e a ler a Bíblia com os olhos da cultura de onde viemos, que durante séculos nos ensinou a anular as diferenças, ou melhor, a considerar a diferença como uma negação. Quem lê a Bíblia com os óculos da cultura linear corre o risco de lê-la superficialmente, ou seja, como uma história escrita do começo ao fim, identificando a verdade de Deus com o que se lê de imediato. Sabemos que a história sempre foi escrita por quem vive nos palácios dos reis e por isso é quase sempre uma história do centro, escrita para justificar e defender um poder. Nessas histórias, como a escola da Nouvelle Histoire nos ensina há décadas, pouco ou nada resta da história real, ou seja, daquela vivida pelas pessoas comuns, pelos agricultores, pelas pessoas simples que permanecem excluídas das construções, por aqueles que na realidade são os verdadeiros protagonistas dos acontecimentos históricos. Mesmo na Bíblia encontramos narrativas históricas que ao longo dos séculos foram relidas, manipuladas, por assim dizer, pelo poder central vigente e que, portanto, são afetadas por essas exclusões.

Portanto, não é por acaso que há teólogas que há anos releem a Escritura a partir de uma perspectiva diferente, nomeadamente a das mulheres, para captar uma palavra diferente nos silêncios impostos às mulheres. Quem se escandaliza com este tipo de percurso diferente, com esta tentativa de ler nas entrelinhas, de ouvir o silêncio daqueles que sempre foram silenciados é porque são dominados pela sua própria cultura linear, que no caso da cultura ocidental é também a expressão de um pensamento forte, muitas vezes arrogante e opressivo. O que dizer então daquela forma de ler a Palavra de Deus a partir dos pobres - outra grande categoria de pessoas silenciadas pelo poder político e religioso - que a Igreja latino-americana nos ensinou desde os anos posteriores ao Concílio? Uma coisa é, de fato, ler a Palavra de Deus de chinelos, num acolhedor apartamento ocidental. Outra coisa é ler a mesma Palavra entre as pessoas que vivem nas favelas ou nos bairros pobres de uma cidade. São vozes diferentes, olhos diferentes e mentalidades diferentes que não são mutuamente exclusivas, mas podem ser harmonizadas. É este olhar diferente que lê a Palavra de diferentes ângulos que desconstrói as certezas, não porque, como se poderia argumentar superficialmente, relativiza os conteúdos, mas porque muito mais simplesmente os contextualiza. É então importante sublinhar, neste ponto da discussão, como este processo de desestruturação, de polifonia de vozes diferentes, ocorre dentro de um mesmo texto bíblico, que é tudo menos uma história linear. Na verdade, encontramos, lado a lado, conteúdos que provêm de diferentes tradições culturais, não só no tempo, mas também na geografia. O que podemos dizer, por exemplo, sobre a forma de compreender a monarquia na história de Israel? Por que existem textos que se manifestam a favor da monarquia e outros que expressam todo o seu desconforto com esta instituição?

Existem muitas vozes diferentes que o leitor atento encontra nas Escrituras. Ouvir a voz das diferenças que encontramos no texto bíblico sem procurar imediatamente formas de sintetizar, de silenciar a inquietação da nossa consciência, é um dos mais belos desafios que a Escritura nos chama a enfrentar. Libertar-nos das nossas certezas que, se olhadas em profundidade, não passam de durezas, isto é, verdades às quais confiamos, sem nunca as questionar, a solidez da nossa vida espiritual, é um dos grandes dons que a Palavra de Deus nos dá ofertas. Entrar no mundo da pluralidade de vozes, de modos de sentir e de ser, sem a necessidade de reduzi-los todos a uma só voz, mas simplesmente aprendendo a habitar a diferença: esta é a beleza da vida espiritual que brota da Bíblia. É assim que descobrimos que não basta ler a Bíblia, mas o que importa é como nos deixamos olhar por ela, como nos deixamos mudar pela sua pluralidade de vozes. Nesta perspectiva, compreendemos como a conversão do coração anunciada pelos profetas e solicitada por Jesus não significa tanto a entrada num caminho particular, mas consiste na disponibilidade para alargar os nossos horizontes, o nosso coração, na possibilidade que se dá gratuitamente. para abrirmos nossa mente para sermos mais livres. A verdade e, ao mesmo tempo, a necessidade de um círculo bíblico deve ser visíveis na mente aberta daqueles que dele participam. O esforço missionário da Igreja para anunciar o Evangelho ao mundo vai exatamente nesta direção, ou seja, na possibilidade de criar homens e mulheres livres, pessoas capazes de ouvir as diferenças porque aprenderam a acolher a diferença dos outros, habitar a complexidade, viver na pluralidade de pontos de vista.


segunda-feira, 11 de novembro de 2024

MARIA MÃE DE JESUS ​​​​- INTERVENÇÃO DE SELENE ZORZI

 





Tradução: Paolo Cugini





Para nos aproximarmos de Maria devemos limpar nossos óculos. Maria se tornou uma personagem complicada na vida das mulheres. Maria é uma personagem onipresente na vida de fé.
Nome comum de Maria: Maria se tornou um nome comum. No imaginário coletivo, Maria representa todas as mulheres. A universalização do patriarcado é notada. Tudo o que não é masculino é neutro.

Naturalização As mulheres são acima de tudo mães, são importantes como mães, esquecendo que também têm cérebro.
Estereótipos Generalizamos para ver e querer um certo tipo de mulher. Também ideolizamos Maria .

A mentalidade católica é androcêntrica, produzindo uma forte idealização em relação às mulheres. Maria é a bem-aventurada entre as mulheres, mas é só ela e esta singularidade a separa das outras mulheres. É daí que vem a ideologia das mulheres. Maria torna-se problemática como presença entre as mulheres. Nenhuma mulher poderá ser como ela e, portanto, ela se torna um modelo esmagador.
Maria foi o ponto de referência das homilias e falavam de Maria e do corpo da mulher ligados à ideia de pecado. A virgindade adquire um significado social e seu papel teológico se perde nas moralizações.

Antropologia dualista : divide os dois sexos como pólos opostos, como complementares. Esta antropologia de oposição criou a personagem de Maria que, para muitas mulheres, é demasiado incómoda. A antropologia dualista, ao ler Maria, cria o eterno feminino, um arquétipo que olha para Maria como uma encarnação do ideal da essência do feminino. Aqui o homem sempre vem em primeiro lugar. A mulher é funcional para o homem e as mulheres são servas.

A virgindade pode ser interpretada como a autonomia da mulher. Pode ser interpretado em um sentido moralista. Ajuda o homem saber que o primeiro filho será dele.
Mãe: função biológica. A função de mãe pertence a cada crente, porque todos devemos dar à luz a Deus na nossa vida de fé.

A teologa italiana Selene Zorzi



Como isso aconteceu?
Nos primeiros séculos já existia a ideia da deusa mãe. Ísis, Deméter, etc. São deusas que possuem aspecto maternal. Os Padres da Igreja comparam Maria a estas figuras. Encontramos a nossa Maria Católica nas montanhas, grutas e muito mais, locais típicos das deusas mediterrânicas. São locais que indicam contato com a força da terra.

Os Padres da Igreja pegaram títulos de deusas e os atribuíram a Maria. As primeiras Marias são mulheres que amamentam. As primeiras representações verdadeiras de Maria amamentando como divindade são encontradas no Egito, nos mosteiros, que a herdam das deusas egípcias. Os padres adaptaram a figura de Maria à deusa materna, fizeram um trabalho de inculturação. Ao assumir essas características, Maria se diviniza cada vez mais e se torna uma divindade. Na Idade Média, todas as funções cristológicas e pneumatológicas eram atribuídas a Maria. Maria é co-redentora, no mesmo nível do Deus masculino.

Elisabeth Jonson: relação entre a figura de Maria e Jesus e não há distinção entre os dois. De alguma forma, a imagem religiosa de um Deus masculino sente a necessidade de ter feminilidade. Precisamos limpar os nossos copos deste desperdício cultural que confundiu a Maria do Evangelho. A questão é que não temos uma linguagem feminina para dizer Deus. Ninguém pode dizer Deus no feminino, dizer Deusa. Desde Gen 1 acreditamos que as mulheres são criadas à imagem de Deus, existem metáforas femininas para falar de Deus.

No AT a palavra ruah, que indica o Espírito, é uma palavra feminina e tem funções femininas. Crie espaço, faça as pessoas viverem. Shekinah, a tenda de Deus entre nós: é uma metáfora feminina.

Os teólogos têm procurado metáforas nas quais Deus é chamado de mãe. Entranhas de misericórdia, Deus tem um ventre que ama como uma mãe. Isaías 49: A mãe não se esquece do filho.
Fio da sabedoria divina . A Sabedoria do AT é um personagem. O Logos está ao lado de Deus. A sabedoria que quebra estereótipos porque fala nas ruas. Deus aqui tem características femininas.
Existem duas parábolas : drama e fermento. É um mundo que se expressa no feminino. Jesus se inspirou nas ações de sua mãe. Entenda como Jesus de Nazaré viveu uma mulher, com sua mãe.

O estudo das teólogas ajuda a aproximar-nos de Maria.
A divinização de Maria ocorreu lentamente, também devido ao ambiente cultural, ao modelo patriarcal. O único espaço que o cristianismo deixou para as mulheres foi o corpo de Maria.
Se Cristo assumiu a masculinidade, ele não salva as mulheres, mas Cristo assume a humanidade. Maria tornou-se também o esquema social do papel que a mulher deveria desempenhar numa determinada cultura então espiritualizada.
No sim de Maria está o respeito de Deus pelas mulheres, porque Maria também poderia dizer não.


sábado, 19 de outubro de 2024

O nome do Mistério

 




 

Paolo Cugini

Sempre o chamamos assim: Deus. O nome Deus resolve problemas há séculos, milênios. Tudo o que não pode ser explicado de forma racional ou razoável pode ser imediatamente transferido para a palavra Deus. Tudo o que é misterioso, que se apresentou ao ser humano ao longo dos séculos, foi resolvido recorrendo a esta palavra simples: Deus. Quando os acontecimentos são misteriosos, incompreensíveis, difíceis de compreender. explicar, então basta nos refugiarmos em Deus. Acontece assim também hoje. Invocamos a Deus para nos ajudar numa determinada situação da nossa vida que se tornou complicada. Deus é um nome que, se for verdade, como veremos, pertence à esfera religiosa, mas é igualmente verdade que está na boca de muitas pessoas que não se identificam com uma religião específica. Invocar o nome de Deus é um aspecto tão normal e espontâneo que alguns filósofos chegaram ao ponto de argumentar que se trata de uma ideia inata, que encontramos dentro de nós no momento do nascimento. Também pode ser que, ao pronunciar o nome de Deus durante milhares de anos, ele tenha se tornado algo tão presente em nossa consciência que o tornou real.

Porém, não existe apenas uma experiência externa do misterioso que nos impele a invocar Deus. Existem também viagens internas da alma humana, que experimenta a percepção de uma realidade que não pode ser classificada com os critérios habituais que implementamos. vida diária. Acontece, por exemplo, quando a doença passa perto de pessoas que amamos e que nos impulsionam a invocar aquela força que parece capaz de intervir na realidade, modificando o seu horizonte. São os acontecimentos extremos que nos levam a pensar que existe uma força amiga que pode consertar as coisas, uma força no universo que nos conhece, sabe o que pensamos e o que sentimos. Chamamos essa força de Deus porque é o nome que encontramos em nossa cultura e que é usado justamente nestes casos.

O problema é que esse nome sofreu uma tal cobertura de significados ao longo dos séculos que não conseguimos mais compreender sua essência. Pergunto-me então: é possível dizer Deus sem Deus? Parece um jogo de palavras, mas expressa uma realidade muito profunda. É possível tentar dizer o que expressa o conteúdo da palavra deus, deixando de lado o que as religiões dizem sobre Deus? Existe uma força no universo que, como tal, é imanente, ou seja, não está no céu como pensavam os antigos. O céu, de fato, pertence à realidade imanente, porque faz parte do universo. É possível dizer Deus sem recorrer à dimensão transcendente? Tal operação pode parecer uma blasfêmia também porque Deus sempre foi pensado desta forma: um ser transcendente que habita o céu. Famosas são as palavras de Aristóteles que chegou ao ponto de definir Deus como a causa de tudo, o motor imóvel, que move o mundo com a força da atração. Um Deus, o de Aristóteles, tão fora do mundo e da perspectiva imanente que não consegue pensar o que lhe é inferior e é considerado como pensamento do pensamento. É interessante notar que precisamente esta estrutura filosófica, que veio a elaborar uma concepção tão monstruosa de Deus, foi utilizada pela Igreja Católica para definir sistematicamente o conteúdo da sua própria experiência de Deus: São Tomás docet.

Ainda. É possível dizer Deus desvinculando-o da perspectiva metafísica desenvolvida pela filosofia grega? Há um desejo de libertação, isto é, de libertar Deus da prisão do ser. Só assim, talvez, seja possível iniciar uma pesquisa que consiga não tanto dar um nome, mas um conteúdo àquelas experiências que podemos definir como espirituais, que são imediatamente associadas a uma religião e, desta forma, interpretado pelos sistemas de conceitos implementados durante séculos. Para este tipo de investigação não se pode confiar em livros de teologia, mas sim em livros de misticismo e espiritualidade, mesmo que também estes possam ser contaminados negativamente pelas escolas de pensamento teológico da época em que foram escritos. E se fôssemos sozinhos em busca do significado de Deus? E se tentássemos nos libertar de uma só vez de todas as estantes de livros que falam sobre ele e procurássemos dizer o que percebemos com nossas próprias palavras, sem medo de sermos julgados? Só de pensar nisso me dá uma emoção intelectual assustadora.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

COMO FALAR DO MISTÉRIO




 

Paolo Cugini

 

Os problemas surgem quando se pensa de ter identificado o método para contar o Mistério e a possibilidade de transmiti-lo uniformemente. Esta tentativa metodológica não é obra de quem a experimentou, mas de quem deseja organizar e ordenar a realidade em todas as suas manifestações. Este aspecto de uma forma única de expressar o Mistério numa grelha conceptual rígida e uniforme ocorreu particularmente no Ocidente e diz a respeito à religião cristã na sua versão católica. Segundo Ratzinger, o encontro entre o cristianismo e o pensamento grego foi providencial e não foi simplesmente fruto do acaso. Através das categorias da filosofia grega, o Cristianismo pensou em explicar o que nunca teria sido capaz de alcançar com as simples ferramentas oferecidas pela Bíblia.

O problema é que o Mistério não pode ser contado de uma só maneira e com um só método. Justamente porque nos encontramos diante de uma realidade muito mais complexa do que os dados que encontramos na realidade e que somos capazes de explicar com as ferramentas oferecidas pela lógica e pelo discurso racional, é necessário deixar o campo aberto a outras formas de narrando o Mistério. O Cristianismo transmitiu uma forma única de falar do Mistério, autorizando uma única proposta de pensamento, a filosofia clássica, para fornecer os instrumentos hermenêuticos capazes de explicar os aspectos revelados do Mistério na experiência cristã específica. Para quem olha o fenômeno de fora e de forma desapegada, percebe-se uma identificação entre o Mistério e a forma de expressá-lo. Ao identificar o Mistério com o ser dos filósofos, ele fica, por assim dizer, acorrentado, aprisionado, com a agravante de que quem aprisionou o Mistério ao identificá-lo com o ser sente-se o único garante da sua interpretação.

Há, portanto, uma narrativa e uma descrição do Mistério, que não permite alternativas. A doutrina produzida para explicar detalhadamente a natureza do Mistério, valendo-se das ferramentas oferecidas pela filosofia clássica, é tão unívoca e rígida que não permite a menor divergência. A doutrina, ao ter a presunção de contar o Mistério de uma determinada maneira, ao mesmo tempo deslegitima qualquer outro tipo de pesquisa.

sábado, 28 de setembro de 2024

Setembro Amarelo: Campanha de conscientização sobre o tema suicídio

 




Paulo Cugini

 

Na tarde de sábado, 28 de setembro, a paróquia de San Vincenzo de Paoli, que acompanho há cerca de um ano, realizou uma ação de sensibilização para as pessoas que tentam o suicídio. O evento contou com o apoio de algumas entidades da Arquidiocese e, em especial, do SAPFAM (serviço de assistência psicológica da Arquidiocese), do Projeto Vida Ativa e do nosso Projeto Margens. As sete comunidades participaram preparando faixas, cartazes e muita animação.

10 de setembro é oficialmente o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. Em 2024 o lema é “Se precisar, peça ajuda!”.

O suicídio é uma triste realidade que afeta o mundo inteiro. De acordo com a última pesquisa realizada pela Organização Mundial da Saúde – OMS em 2019, foram registrados mais de 700 mil suicídios em todo o mundo. No Brasil ocorrem aproximadamente 14 mil casos por ano, ou seja, em média 38 pessoas cometem suicídio por dia.

Embora os números estejam a diminuir em todo o mundo, os países das Américas estão a contrariar esta tendência, com as taxas a continuarem a aumentar, de acordo com a OMS. Sabe-se que praticamente 100% dos casos de suicídio estão ligados a doenças mentais, em sua maioria não diagnosticadas ou tratadas inadequadamente. Portanto, a maioria dos casos poderia ter sido evitada se esses pacientes tivessem acesso a cuidados e informações psiquiátricas de qualidade.



O bairro Compensa de Manaus é tristemente famoso neste assunto, devido à ponte construída em 2011 sobre o Rio Negro e de onde várias pessoas tentam o suicídio saltando do ponto mais alto. Ainda hoje, dia da manifestação, de manhã um homem atirou-se da ponte e, à tarde, uma jovem de 26 anos foi parada a tempo pela polícia, que foi chamada ao local.

A paróquia de San Vincenzo de Paoli é muito sensível ao problema e, por isso, há anos ativa um serviço psicológico gratuito com duas psicólogas. A Arquidiocese de Manaus também está muito atenta ao tema, especialmente na figura de Monsenhor Hudson, recém-eleito bispo auxiliar de Manaus e, á dois anos, Reitor da Faculdade Católica do Amazonas. Don Hudson, sendo psicólogo entre outras coisas, criou um grupo de pessoas que estão em rede com psicólogos que trabalham nas paróquias, para acompanhar o grande sofrimento mental encontrado na região.



Dados de suicídio

O suicídio é um importante problema de saúde pública, com implicações para a sociedade como um todo. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde – OMS, todos os anos morrem mais pessoas por suicídio do que por VIH, malária ou cancro da mama – ou por guerras e assassinatos.

Entre os jovens de 15 a 29 anos, o suicídio foi a quarta principal causa de morte, depois de acidentes de trânsito, tuberculose e violência interpessoal. Trata-se de um fenômeno complexo, que pode afetar indivíduos de diferentes origens, gênero, cultura, classe social e idade.

Segundo dados da Secretaria de Vigilância em Saúde divulgados pelo Ministério da Saúde em setembro de 2022, entre 2016 e 2021 houve aumento de 49,3% nas taxas de mortalidade de adolescentes de 15 a 19 anos, chegando a 6,6 por 100 mil, e 45% entre adolescentes de 15 a 19 anos. de 10 a 14, chegando a 1,33 por 100 mil.

Segundo dados divulgados no site do evento Setembro Amarelo, no Brasil, 12,6% de cada 100 mil homens morrem por suicídio, em comparação com 5,4% de cada 100 mil mulheres. As taxas entre os homens são geralmente mais elevadas nos países de rendimento elevado (16,6% por 100.000). Para as mulheres, as taxas de suicídio mais elevadas registam-se nos países de baixo e médio rendimento (7,1% por 100.000).

Atualmente, apenas 38 países possuem uma estratégia nacional de prevenção do suicídio.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

PORQUE O POVO SE ENTREGA TÃO FACIL E POR TÃO POUCO?

 




Análise da sociedade dos urubus

 

 Paolo Cugini

 

 

A pergunta é daquelas de tirar o sono. Pelas pessoas que lutam pela justiça, que não engolem tamanha corrupção, por todos aqueles e aquelas que buscam a realização de um mundo mais justo e mais fraterno, não dá pra entender o porquê do comportamento do povo, que entrega as prefeituras a um bando de incompetentes e sem vergonha, que saqueiam o cofre publico com a maior cara de pau, beneficiando a si mesmo e os próprios familiares, não se importando do sofrimento do povo.  Pesquisando na internet sobre a situação sócio-política das cidades das regiões do Norte e do Nordeste brasileiro, tão massacrado e humilhado por um grupo de políticos corruptos e sem escrúpulo percebe-se que é raro encontrar um município dirigido por pessoas competentes e que trabalham para servir o povo e não para encher o próprio bolso (estou falando somente dos políticos corruptos, pois, graças a Deus, temos também políticos de grande competência e moral),.

 De um lado, então, temos todo um povo que não pensa dois minutos para vender o próprio voto ao primeiro oferente, do outro temos toda uma turma esquisita de políticos (?) que não têm receio nenhum a comprar o voto do povo pra depois fazer o que quiser com o dinheiro publico. A pergunta simples é esta: por quê? Porque o povo não pensa as conseqüências da própria entrega aos corruptos? Porque o povo fica satisfeito por um brinde, que não dura três dias e passando depois necessidade pelo resto dos quatro anos? Porque o povo acha legal ganhar uma mixaria, entregando na bandeja o Município a um bando de corruptos?

De fato, aquilo que assistimos neste ano de eleições é uma verdadeira loucura. É festa pra lá, churrasco pra cá, argolinha, jogo de bola, carreatas, ou seja, toda uma serie de atividade que, de uma certa forma, não tem nada a ver com a política. O objetivo claríssimo é juntar gente naquilo que o povo mais gosta, ou seja, uma festa com muita cerveja e cachaça, e ali esbanjar sorrisos, fazer uma média com um povo alienado, acostumado a viver das migalhas que o poder espertamente, aprendeu a distribuir nas horas certas. E ali vai se perpetuando todo um costume, todo um estilo de vida que deixa todo um povo com o gostinho na boca de algo de bom, mas que depois, acordando na segunda feira, percebe que de bom tem somente a lembrança daquilo que foi.

 A pergunta nessa altura é esta: como é possível passar a vida toda mergulhados neste nada? Como é possível não enxergar o engano que está por trás da palhaçada das eleições? Paciência ser enganado uma vez, mas como é possível que o povo se deixe enganar sempre e, sobretudo, com alegria, como se fosse algo de legal? Como é possível não enxergar que atrás do candidato da vez, está escondido um lobo, que está visando nada mais que o cofre publico e cujo pensamento é saber o quanto poderá botar no seu bolso com a aprovação do povo? Como é possível depois de tantas décadas, não entender que atrás das inaugurações realizadas nos últimos meses antes das eleições, existe todo um projeto, existe todo um esquema, existe todo um pensamento negativo que visa botar fumaça nos olhos do povo, para que não lembre nada, para que não recorde o nada que foi realizado nos anos anteriores?

Do outro lado, podemos perguntar pensando aos falsos políticos (isso quer dizer que temos também bons políticos, graças a Deus): como é possível ficar tão insensíveis roubando o dinheiro do povo pobre? Come é possível permanecer com o coração tão duro e ruim, a ponto de não sentir nada roubando o dinheiro que deveria servir para comprar alimentos para crianças carentes? Como pode acontecer que uma pessoa não sinta absolutamente nada tirando da boca o pão do pobre, para satisfazer os próprios vícios? Que cara de pau é esta?



É todo um sistema podre se perpetuando no tempo, com pobres acostumados a cobrar aos políticos migalhas para sobreviver e festas para esquecer a sensação péssima de não ser nada e, do outro lado, pessoas sem escrúpulos, que exigem e adoram de serem chamadas de políticos ou doutores, que vivem da carniça do povo pobre. É a sociedade dos urubus, uma sociedade que fede, uma sociedade que, na realidade, sociedade não é, pois pra ser sociedade um povo precisa pelo menos se respeitar, que é aquilo que não está acontecendo. A “sociedade” dos urubus é o sistema da não vida, do costume de viver sem futuro, sem sonhos, entregando esta nobre atividade para um grupo de pessoas acostumadas a pisar sobre os direitos do povo com a maior cara de pau do mundo. Na “sociedade” dos urubus o tempo parece eterno porque é sempre a mesma coisa, porque não tem nada pra fazer. É só esperar a morte chegando e os urubus se aproximando. Na “sociedade” dos urubus o povo vale na medida que engorda pra depois morrer e servir como alimento dos urubus que pairam no ar na espera da refeição.

 

Problema: é possível sair da “Sociedade” dos urubus? É possível transformar a “sociedade” dos urubus em sociedade de gente? O que precisa fazer pra sair dessa?

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

O vergonhoso espetáculo da politicagem nos anos de eleições municipais

 




 

 

Paolo Cugini

 

Nos anos das eleições municipais não importam as ideologias, os programas, os projetos: que nada! Importa é ganhar e acabou.

Sabemos como acontece a compra de voto. O candidato passa nas casas e pede para o povo pegar uma cesta básica naquele mercadinho cujo dono já sabe de tudo. Às vezes a mercadoria é levada de antemão num lugar, numa casa de noite para o povo buscar. Procuramos o povo para testemunhar o ato de corrupção, mas se negam para este ato de justiça civil. O desastre social e moral que este tipo de porcaria política está provocando é arrasador. E pior ainda perceber que os “políticos” não estão nem ai: querem ganhar a qualquer preço, seja o que for.

Que povo é este que vende o próprio voto por uma cesta básica? São os pobres coitados acostumados a viver recebendo de graça as migalhas do governo o do político da vez. Na realidade, não se trata de uma pobreza apenas material, mas, sobretudo cultural e espiritual. Cultural porque, o estilo de político corrupto que ganha as eleições comprando votos, coloca na cabeça deste povo que a vida para os pobres é assim mesma, uma vida feita de nada e uma sociedade na qual existe quem tem e quem não tem nada. Os poucos que têm algumas coisas se alimentam com a multidão que não tem nada. Os pobres são essenciais por estes parasitas de políticos que ganham um dinheiro bravo sem fazer nada. É também uma pobreza espiritual porque dificilmente uma pessoa que tem Deus no coração, que ama a Deus aceitaria de vender o próprio voto, a própria liberdade por algo de material. E aqui vem o grande paradoxo: num País lotado de igrejas, assistimos à maior desigualdade do planeta. É verdadeiramente estranho este dato, que deveria provocar uma reflexão. Que tipo de espiritualidade estamos gerando nas nossas capelas se não somos capazes, nos anos das eleições municipais, reverter esta lógica da compra de voto, que gera corrupção?

Que mundo é este? Estamos nas mãos de quem? Quem é que está tomando conta do povo? Pessoas sem escrúpulos sedentas de dinheiro e de poder, que para alcançar isso são dispostas a tudo, passam por cima de tudo, dos sentimentos, da moral, de Deus.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

MIGUEL CALMON História de uma experiência pastoral na Bahia

 


Paolo Cugini junto ao bispo de Reggio Emilia, dom Adriano, visitando Miguel Calmon no ano 2000


Paulo Cugini

 

Cheguei em Miguel Calmon no dia 11 de fevereiro de 2000 à tarde. Era uma sexta-feira. Entrei na igreja onde estava acontecendo um casamento com algumas pessoas. No domingo celebrei a missa da manhã e da tarde. Fiquei impressionado com o pequeno número de presenças. Na segunda-feira comecei a visitar os bairros de Miguel Calmon: queria perceber aonde tinha chegado. Fiquei imediatamente impressionado com a situação de pobreza e abandono dos bairros. Foi como se ninguém, ao longo do tempo, tivesse pensado a estas famílias que encontrei. Afinal, eu estava no Brasil há pouco tempo e ainda estava atordoado com a grande desigualdade que percebi. Em poucos metros avistavam-se casas muito pobres e, do outro lado da rua, bairros muito bonitos e bem cuidados. Miguel Calmon não fugiu à regra. A poucas centenas de metros ficava o bairro muito bem estruturado onde moravam o médico, o comerciante e o prefeito e, do outro lado da rua, o bairro Populares, muito pobre e desolado. Com meu amigo Gianluca, a quem liguei para vir me ajudar, decidimos ir morar no bairro Populares. Queríamos seguir os passos de Jesus, que, de rico, tornou-se pobre, como nos lembra São Paulo (2 Cor 9,10), e compreender a cidade não a partir do centro, onde se situava a casa paroquial, mas a partir da periferia, como fizera Jesus, que não nasceu em Jerusalém, mas na periferia, em Belém. É a partir deste observatório particular, vivendo por cinco anos sem luz e com água racionada, como os habitantes do bairro, que fizemos as nossas escolhas pastorais, que seguiram em três direções.

Saudade desta turma


Em primeiro lugar, a atenção aos pobres, o que significou uma visita sistemática e constante a mais de sessenta comunidades da zona rural e onze comunidades dos bairros da cidade. No segundo ano da minha estadia em Miguel Calmon, dividi a zona rural em oito regiões. Isso me permitiu visitar cada comunidade uma vez a cada dois meses. Saia na segunda à tarde e voltava na sexta à noite. Foi uma verdadeira imersão na vida das pessoas das comunidades. Cada dia visitava uma comunidade da região onde passava a semana. Comia e dormia em suas casas, compartilhava suas experiências. Na verdade, perguntei-me como era possível celebrar a Eucaristia, que na perspectiva de Jesus é uma refeição entre amigos, se não houvesse um mínimo de aproximação com as pessoas com quem celebrava. Viver em comunidades permitiu-me, ao longo do tempo, compreender os reais problemas das pessoas e das comunidades e sentir que estava em caminho com elas. Nas experiências pastorais realizadas na Itália sempre abri as portas da casa paroquial aos pobres, especialmente aos estrangeiros de origem africana. No Brasil foi o contrário: deixei que me hospedassem. Foi um verdadeiro banho de humanidade.

Olha a dupla em ação


A segunda escolha feita junto com Gianluca foram os jovens. Não poderia ser diferente. O bairro Populares, onde morávamos, estava lotado de crianças e adolescentes. Gianluca sempre teve o dom de saber lidar com crianças e isso também aconteceu no Brasil. No bairro onde morávamos e onde construímos uma das 14 capelas construídas nos cinco anos passados ​​em Miguel Calmon, considerando as construídas nos bairros da cidade e as da zona rural, Gianluca criou vários projetos voltados especialmente para os adolescentes. Na cidade o projeto mais significativo foi o coral. Em poucos meses Gianluca montou um coral com cerca de 150 crianças e adolescentes, que se reuniam duas vezes por semana, não só para ensaiar as músicas, mas também para treinar, auxiliados por um grupo de jovens. De minha parte, trabalhei na formação de grupos de jovens tanto nos bairros como na zona rural. Aos poucos, foi sendo visível a presença dos jovens na vida da paróquia. Lembro-me que no domingo, a missa da noite estava lotada de gente e de muitos jovens. Foram alguns deles, que naquela época estudavam na Universidade Jacobina, que nos pediram de comprar alguns livros. Os pobres não têm dinheiro para comprar as coisas necessárias, muito menos para comprar livros. A ideia de uma biblioteca para satisfazer as necessidades culturais dos jovens de famílias pobres, nasceu exatamente assim. Lembro-me das jornadas de estudo realizadas nos novos espaços da biblioteca, situada no primeiro andar do centro paroquial de São José, construída com a contribuição de amigos italianos. Também foram muito bonitos e intensos os dias de espiritualidade realizados na casa paroquial de Tapiranga, que enchi de beliches, justamente para acolher os jovens que vinham participar destas experiências espirituais.

Na frente da casa no bairro das Populares


A terceira escolha que marcou minha presença em Miguel Calmon foi a formação. Gosto de ajudar as pessoas que encontro no meu caminho, a compreender melhor o Mistério em que acreditamos: Deus que veio entre nós. Assim que cheguei em Miguel Calmon, encontrei um estudo bíblico semanal na cidade, que estruturei e incentivei. Foi impressionante descobrir, quando voltava das comunidades nas noites de sexta-feira, quase uma centena de pessoas dos bairros da cidade reunidas no salão paroquial, para meditar sobre um capítulo da Bíblia. Além deste momento semanal fundamental, tinha criado um mensal, aos domingos, para a formação teológica de leigos e leigas que, de diferentes formas, se empenharam no serviço às comunidades, tanto na cidade como na zona rural. Sempre fiquei muito impressionado com a grande participação nesses momentos de formação. Juntos estudamos os artigos do Credo, a história e a teologia dos sacramentos, os principais documentos do Concílio Vaticano II e muito mais. Caminhamos juntos ouvindo a Palavra de Deus e o Magistério da Igreja. É por isso que, depois de cinco anos de caminhada, havia tanta harmonia entre nós. Momentos formativos de grande importância foram os retiros espirituais com adultos e jovens, nos tempos fortes da igreja, nomeadamente o Advento e a Quaresma. O curso de formação política de 2003, tanto para candidatos como para cidadãos, foi fundamental neste processo de formação. Os jovens do Movimento Fé e Política foram uma presença maravilhosa no processo eleitoral de 2004, demonstrando com grande entusiasmo o desejo por um mundo mais justo e menos desigual.

Encerro esta breve narração com uma experiência pessoal. Só Deus sabe quanta alegria provocavam em mim as missas dominicais celebradas na igreja de Miguel Calmon. Todos os domingos à noite, durante a missa, parecia colher os frutos do trabalho pastoral realizado nas comunidades, encontrando muitas pessoas e muitos jovens. Era lindo olhar para os muitos rostos presentes e descobrir que, lentamente, domingo após domingo, eles foram passando do anonimato à identidade, porque os reconhecia um por um e ainda hoje os carrego todos no coração.

domingo, 15 de setembro de 2024

Quando a religião mexe com sociedade e a política

 





A ROMARIA MARIAL DE IPIRÁ


Paolo Cugini

 

 

A caminhada da Igreja Católica no Brasil, desde os anos ’70 do século passado e, sobretudo, depois do Concilio Vaticano II (1962-65), se caracteriza por uma busca da ligação entre fé e vida. As Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) foram o berço de uma experiencia de igreja incarnada na realidade, caminhando perto do povo, sobretudo os mais pobres e excluídos. É verdade que a caminhada atual da Igreja do Brasil, mudou o foco, tornando-se mais carismáticas, renunciando ao compromisso sociopolítico que a caracterizou no começo da caminhada. Apesar disso, as características principais das Cebs, como o engajamento dos leigos, a ministerialidade, a centralidade da Palavra permanece ainda hoje como um estímulo pela Igreja do mundo todo.

As grandes manifestações religiosas, como as romarias, sempre foram eventos e ainda hoje são, que envolvem não apenas o povo das comunidades, mas também pessoas que manifestam a própria religiosidade de forma espontânea, sem ser necessariamente ligada a uma caminhada de Cebs ou de paróquia. Romarias como de Padre Cicero ou de Bom Jesus da Lapa, que reúnem milhares de fiéis, atraem pessoas simples cuja devoção os leva a buscar lugares considerados sagrados, ponto de referência dos caminhos espirituais dos fiéis das mais variadas proveniência e pertença.

A Romaria Marial de Ipirá, sendo um evento organizado pela equipe paroquial, envolve quase exclusivamente o povo das comunidades, aliás é o evento que marca o caminho anual das Cebs desta paróquia. Este evento nasceu nos anos ’80, numa época de grandes tensões sociais, ligadas sobretudo ao problema da terra, do latifúndio. A diocese de Ruy Barbosa dos anos ’80, era muito sensível ao grito do povo das comunidades, que clamava por um pedaço de terra, numa região castigada pela seca e pela corrupção política. Padre Riccardo Camellini, um padre italiano que, naquele período, era pároco de Ipirá, em linha com a caminhada da diocese, abraçou a causa e orientou a Romaria Marial como um evento que, envolvendo as Cebs da paróquia, representasse, também, um grito pela terra. Como se deram os eventos não cabe a mim narrar. Aquilo que importa é o marco de luta social e política que, uma manifestação religiosa de grandes proporções, como a Romaria Marial, tomava naquela época, manifestando publicamente que, a capela da comunidade não era um lugar fechado em si mesmo, mas sabia traduzir em lutas sociais aquilo que escutava no Evangelho.

Com a virada carismática da Igreja do Brasil, também a Romaria Marial de Ipirá mudou de sentido, focando exclusivamente na dimensão religiosa. Sem dúvida esta mudança de rumo, afetou a caminhada das Cebs, que perderam o marco importante do profetismo visualizado nas denúncias contra o poder político corrupto e a arrogância dos latifundiários locais, totalmente insensíveis no que concernia a pobreza do povo. Dava até medo, nos dias de Romaria, ver caminhões lotados de fiéis, com bandeira, faixas e cartaz, manifestando a própria indignação contra uma desigualdade, que não permitia uma vida digna para a maioria das pessoas. Maria, mãe de Jesus, mãe pobre e exilada quando Jesus era criança, era identificada como protetora, pois ela mesma tinha passado pelo sofrimento da humilhação dos poderosos. Não a caso, o cântico Magnificat, lembra que Deus: Manifestou o poder do seu braço: desconcertou os corações dos soberbos.  Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes.  Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos (Lc 51-53). Existe uma espiritualidade bem fundamentada na Bíblia, que não precisava de grandes explicações exegéticas, porque o povo simples das Cebs, pela maioria camponeses, agricultores, entendia muito bem que Maria era com eles, apoiava a causa dos pobres e humilhados. A Romaria Marial dos primeiros tempos, em Ipirá, representava esta grande intuição evangélica: Deus está sempre do lado dos pobres, dos injustiçados.

Não é um caso que, no mesmo Brasil, depois da experiencia negativa da ditadura militar, no 1989 nasceu o Movimento Nacional Fé e Política com o objetivo de alimentar a dimensão ética e espiritual que deve animar a atividade política. Deixar-se animar pelo Espírito de vida, é a essência do Movimento Fé e Política, “que não propõe diretrizes para ação política dos cristãos, nem se comporta como se fosse uma tendência político-partidária, mas que luta pela superação do capitalismo por meio da construção de um sistema sócio-econômico solidário e respeitoso da vida do Planeta”.[1] Este Movimento, que se espalhou em todo o território Nacional e até mesmo na Bahia, ajudou bastante e continua a formar as consciências dos cristão[2] que desejam levar na sociedade as indicações assimiladas na leitura do Evangelho feita na comunidade. É isso que falou Frei Betto, um dos fundadores e assessores do Movimento que, no último encontro afirmou que: “O Reino de Deus é a proposta para o futuro da humanidade. Jesus não estava falando lá de cima, mas aqui na terra. Que o seu reino venha até nós. O Reino para Jesus indica a relação no amor e na partilha dos bens. Compartilhar os bens da terra e os frutos do trabalho humano. Até que a humanidade compartilhe os bens da terra, não realizaremos o Reino de Deus”[3].

 

 



[2] O XII0 encontro Nacional do Movimento Fé e Política aconteceu em Belo Horizonte no mês de abril 2024: https://fepolitica.org.br/12-encontro-nacional-2/

[3] ´possível encontrar um relatório do XII encontro do Movimento Fé e Politica neste site: https://matutan.blogspot.com/2024/04/12-encontro-nacional-de-fe-e-politica.html

sábado, 14 de setembro de 2024

PROJETO MARGENS A que ponto se encontra?

 




 

Paulo Cugini

Cerca de seis meses após a apresentação da proposta, consideramos importante fazer uma avaliação inicial. A razão do nome. Margens em português significa margens e refere-se ao Rio do Amazonas e a todos os rios que atravessam o território amazônico. Nas margens desses rios vivem muitas pessoas, os chamados ribeirinhos, que se encontram dentro de comunidades que surgem às margens dos rios. A paróquia de São Vicente de Paulo, que administro há cerca de um ano, é formada por sete comunidades, três das quais fazem fronteira com o Rio Negro, grande afluente do Rio Amazonas, e as outras quatro são muito perto. Possui uma população de aproximadamente 35 mil habitantes. O bairro Compensa é famoso por estar localizado em uma das chamadas áreas vermelhas de Manaus, vermelha porque é perigosa. A situação geral de pobreza aliada aos problemas de segurança, levou-nos a desenvolver, com um querido amigo italiano, um projeto à longo praz, que pode intervir a vários níveis para a promoção cultural e social da população local.

Um primeiro nível de intervenção é o apoio a projetos de sensibilização sociopolítica já presentes no território paroquial, mas pouco incentivados. Nos últimos meses acompanhamos quatro deles:

a.      Faça bonito. É um evento de conscientização contra o abuso infantil, uma verdadeira praga por aqui. Ajudamos em algumas despesas – camisetas, banners, panfletos – para viabilizar o evento. O evento contou com o envolvimento de crianças, jovens e adultos das sete comunidades

 


b.      Movimento de fé e cidadania. Quando cheguei esse movimento, nascido na década de 1980, estava desativado há duas décadas. Tendo em conta as eleições municipais, que se realizam neste ano e que provocam muitos conflitos nas próprias comunidades e muitas vezes divisões no seio das famílias, devido à corrupção política, que entra nas classes pobres, oferecendo de tudo para comprar o voto dos pobres, temos decidido reativar o Movimento. O projeto Margens veio com financiamento significativo, pagando camisetas, 5 mil exemplares da lei 9.840 contra a corrupção eleitoral, ônibus para movimentação de integrantes do Movimento. Além de um curso de formação, realizamos cinco eventos em que membros do Movimento foram de casa em casa para distribuir o texto da lei e realizar teatro de rua sobre o tema em questão.

 


c.       Setembro amarelo. É um projeto brasileiro de prevenção ao suicídio. A paróquia está muito atenta ao tema, até porque, após a construção da ponte sobre o Rio Negro, os suicídios aumentaram dramaticamente. Há um grande sofrimento mental na região. Dom Hudson decidiu que a nossa paróquia realizará um evento diocesano no último sábado de setembro, para sensibilizar a população sobre o tema. O projeto Margens entra com financiamento para suportar alguns custos do projeto.

 

d.      PASCOM: é o nome da pastoral que ajuda a divulgar os acontecimentos das sete comunidades. O projeto Margens interveio através da aquisição de uma máquina fotográfica, que também será utilizada para ativar cursos de fotografia, quando os espaços estiverem prontos.

 


e.       PJ: é a sigla da Pastoral Juvenil. Com a Margens intervimos com bolsas de estudo para permitir aos jovens o ingresso nos cursos de teatro, música e dança ativados pela paroquia, e adquirir parte do material que foi utilizado nos bailes juvenis (quadrilhas) realizados nos meses festivos de Junho e Julho. .

 


f.        Projeto de assistência psicológica. A situação precária da região levou-nos a decidir envolver duas psicólogas - Vanessa e Wanilda - para atender às necessidades de muitas pessoas que pediam ajuda. Margens juntou-se ao projeto para arrumar o quarto e comprar alguns livros e jogos para os menores que são acompanhados.

 

As psicologas Vanessa e Wanilda

Outro tipo de intervenção foi financiar algumas ferramentas que poderiam ser utilizadas pela comunidade para realizar um serviço social específico.

1.      Comunidade São Pedro. Situado na zona mais perigosa da paróquia, com o projeto Margens contribuímos para a compra de uma cerca de arame farpado para colocar no portão. Além disso, financiamos a compra de um bebedouro que é utilizado quando a comunidade recebe funcionários municipais, que realizam jornadas com enfermeiros e médicos para vacinar a população e outros tipos de serviços médicos gratuitos.

 


2.      Santo Inácio. Precisáva de uma fritadeira para vender alimentos e arrecadar fundos e por isso intervimos para adquiri-la.

 


3.      ão Vicente. Substituímos a antiga cozinha por uma nova, que serve para preparar comida dos eventos da comunidade e da paróquia.

 


Um terceiro nível em que intervimos e continuaremos a intervir é a disposição de alguns espaços. A intuição dos colaboradores do projeto Margens não foi construir nada específico, mas sim consertar estruturas já existentes para envolver as comunidades locais. Pedimos às comunidades que desenvolvessem projetos sociais a partir do seu observatório específico e, a partir do que vão apresentando, criamos um calendário de intervenções.

a.       Salão Paroquial. A primeira intervenção, que envolveu boa parte dos fundos da Margens, foi um salão que, até então, se encontrava sem utilização e, portanto, em condições verdadeiramente precárias. As obras de remodelação permitiram recuperar um espaço onde já começámos a organizar encontros com jovens e agendamos projetos de dança, música e teatro.

 



b.      Próximas intervenções. As comunidades de Santo Ignácio, Rosário e San Sebastião apresentaram uma série de projetos sociais e culturais que incluirão intervenções nas estruturas.