quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

MOVIMENTOS SOCIAIS E PODER POLÍTICO: INCONCILIAVEIS POR VOCAÇÃO

 




 

 Paolo Cugini

Não suporto a hipocrisia. Não engulo quem quer ser aquilo que não é, talvez que era no passado, mas que agora não é mais. Não aceito o saudosismo de cômodo de quem não quer assumir a realidade, de quem quer ficar com os pés em dois sapatos. Se você é no poder, não fale de Movimentos sociais, pois são duas realidades antagônicas, que nunca podem se abraçar. Quando isso acontecer quem sofre são os pobres, os excluídos, porque perderam os próprios representantes, que nunca se encontram no poder, mas sim no povo, no povo organizado em Movimento.

Poder político é poder político, Movimento é movimento: são duas realidades totalmente diferentes.  Num debate cultural é importante dar o sentido as palavras, para limpar o campo de qualquer dúvida ou ambiguidade. O dato mais irritante é escutar pessoas que tem histórico de Movimentos Sociais e que, uma vez chegados ao poder, não querem que ninguém os critiquem, como se si sentissem os donos da verdade. Poxa, rapaz, espera ai! Deixa os pobres falarem! Será que esqueceram que alguns anos atrás vocês eram pobres também? Infelizmente esta é a triste realidade: quem chega ao poder vindo das classes mais pobres, tende a fazer de tudo para disfarçar a sua proveniência. É claro que esta não é uma lei universal, pois temos exemplos excelentes que mostram o contrário, mas na maioria dos casos é assim.

Dizia um meu querido amigo, desde sempre lutador crítico contra toda forma de parasitismo político: “Quem quiser ser vidraça deve agüentar as pedradas”. Parece-me esta a metáfora da dialética entre política de governo e movimentos sociais os quais, por antonomásia, por vocação, por instinto natural detonam o poder, aponta os males, indicam o caminho de reformas, alertam a sociedade sobre os males a serem curados.  Do outro lado o poder político, a situação, por vocação, por instinto de sobrevivência deve defender o próprio trabalho, mostrar as mil e uma maravilha realizadas, botar painéis, divulgar para cima e pra baixo tudo o que puder e ainda mais. Esta é a lógica do poder e dos Movimentos Sociais, que nunca ficam do mesmo lado e se sentam na mesma mesa a não ser para cobrar, exigir atenção. É um problema de perspectiva. Quem fica na casa olha o mundo do sofá, pela janela, de cima pra baixo e tem toda uma visão linda, espetacular e acha que todos vejam isso e ficam estarrecidos quando alguém questiona a visão deles. Quem está de fora percebe a casa de fora e sente todo o peso de uma distância, a poeira da rua, a quentura do sol e todo mais. São duas perspectivas totalmente diferente, inconciliáveis. Não tem como alguém convencer o outro da própria realidade. Quem está na casa sentado no sofá acha que esta seja a realidade. Quem está na rua comendo poeira cansa disso e começa a questionar.

É esta a função de um Movimento Social: questionar, exigir os próprios direitos, partir pra cima, cobrar medidas. Do outro lado, um poder político que presta não fica abafando as criticas, controlando a oposição, querendo regular a contestação, mas presta atenção, deixa os Movimentos Sociais se manifestarem e tenta acatar algumas das propostas. Quem assume o poder, embora venha de lutas sociais, não pode ter a pretensão de ter a resposta de todos os problemas – apesar de que ninguém exige isso! – mas deve ter a humildade de escutar, de dar valor a quem fica na rua comendo poeira e se lascando para chegar a noite sem morrer de fome. Este de fato é o problema: toda vez que o poder tenta de abafar as critica, ali vem bomba, pode aguardar!

domingo, 21 de janeiro de 2024

Os Mártires de Abilene: “Sem o Domingo não podemos viver”

 







“Sine dominico non possumus” (= Sem domingo não podemos viver) Esta frase foi pronunciada pelos Mártires de Abilene (Tunísia). Em 303 DC o imperador Diocleciano, depois de anos de relativa calma, desencadeou uma violenta perseguição contra os cristãos ordenando que “os textos sagrados e os santos Testamentos do Senhor e as Escrituras divinas deveriam ser procurados, para que pudessem ser queimados; as basílicas do Senhor tiveram que ser demolidas; era necessário proibir a celebração dos ritos sagrados e das reuniões santíssimas do Senhor” (Atos dos Mártires, I). Em Abitene, um grupo de 49 cristãos, contrariando as ordens do Imperador, reunia-se semanalmente na casa de um deles para celebrar a Eucaristia dominical. É uma comunidade cristã pequena, mas diversificada.

Surpreendidos durante uma reunião na casa de Ottavio Felice, eles são presos e levados a Cartago perante o procônsul Anulinus para serem interrogados. Ao procônsul, que lhes pergunta se têm as Escrituras em casa, os Mártires confessam corajosamente que “as guardam no coração”, revelando assim que não querem de forma alguma separar a fé da vida. O próprio martírio deles se transforma numa liturgia “eucarística”.

Entre os vários testemunhos, é significativo o prestado por Emérito. Ele afirma, sem qualquer receio, que recebeu os cristãos em sua casa para a celebração. O procônsul lhe pergunta: “Por que você acolheu cristãos em sua casa, contrariando assim as disposições imperiais? ”. E aqui está a resposta de Emérito: «Sine dominico non possumus»; isto é, não podemos ser ou mesmo viver como cristãos sem nos reunirmos aos domingos para celebrar a Eucaristia.

Estes 49 mártires de Abitene enfrentaram a morte com coragem, para não negarem a sua fé em Cristo ressuscitado e não deixarem de o encontrar na celebração eucarística dominical. É o que emerge claramente do comentário que o redator dos Atos dos Mártires faz à pergunta feita pelo procônsul ao mártir Félix: “Se você é cristão, não deixe que isso seja conhecido. Em vez disso, responda se você participou das reuniões." E aqui fica o comentário:

Como se o cristão pudesse existir sem celebrar os mistérios do Senhor ou os mistérios do Senhor pudessem ser celebrados sem a presença do cristão! Não sabes então, Satanás, que o cristão vive da celebração dos mistérios e que a celebração dos mistérios do Senhor deve ser realizada na presença do cristão, para que não possam existir separados uns dos outros? Quando você ouvir o nome de cristão, saiba que ele se reúne com seus irmãos diante do Senhor e, quando ouvir falar de reuniões, reconheça nela o nome de cristão”.

Eles foram martirizados em 303. Sua festa é 12 de fevereiro.

 

sábado, 20 de janeiro de 2024

A MULHER NA IGREJA: DECOSTRUINDO O PATRIARCADO

 



 

Paolo Cugini

 

Folheando as notícias diárias, é impressionante ver quantas mulheres ainda são assassinadas: é um verdadeiro feminicídio. Elas não são mortas apenas nas ruas, mas também dentro dos muros de suas casas. Segundo as estatísticas, é precisamente no contexto familiar que as mulheres sofrem mais violência. Paradoxalmente, a mulher é mais vulnerável precisamente no lugar onde deveria estar mais protegida. As coisas não mudam muito quando analisamos a condição das mulheres na religião. Apesar do progresso industrial, tecnológico e cultural, as mulheres ainda hoje sofrem maus tratos, como a circuncisão, a imposição de regras que indicam uma situação de inferioridade, a impossibilidade de assumir papéis iguais aos homens. É preciso identificar, em primeiro lugar, os motivos do silêncio das mulheres na religião e na Bíblia e, em segundo lugar, a necessidade da Igreja de se deixar contaminar pela presença das mulheres, por seus pensamentos, por seu modo de ser e de experimentar Deus. O perigo, como afirma a teóloga Elisabeth Green, é o da irrelevância.

“O cristianismo concentrado em um idioma, o masculino, corre o risco de ser completamente irrelevante para a experiência das mulheres, incapaz de responder às nossas necessidades espirituais mais profundas e infiéis, portanto, a missão de pregar o Evangelho à toda criatura” (Green, 2015, p. 97).

Como, então, o cristianismo pode ser libertado do ídolo masculino manifestado na cultura patriarcal, que se apropriou de textos e tradições sagradas, para que as mulheres também se sintam bem-vindas e não excluídas? Se nos perguntarmos o porquê dessa discriminação evidente entre mulheres e homens, a resposta não a encontramos nos textos oficiais. É necessário realizar um trabalho heurístico duplo, indicado por duas correntes de pensamento do século passado. A primeira, consiste no lento trabalho de desconstrução dos paradigmas culturais que se estratificaram ao longo do tempo na cultura ocidental, para apreender a origem dos preconceitos e qualquer forma de conhecimento estereotipado, o que nos impede de compreender a realidade das coisas. Desconstrução, ao invés de ser um processo de destruição do passado, é um processo de historicização e relativização do conhecimento, um trabalho hermenêutico e catártico que afeta os níveis de entendimento. Desconstrução significa, então, o esforço para entender melhor o problema em questão, para remover as construções culturais postas em prática no passado, não a serviço da verdade objetiva, mas no interesse de alguém. Nessa perspectiva, a desconstrução anda de mãos dadas com o esforço hermenêutico que tenta interpretar os textos contextualizando-os, fazê-los falar, permitir-lhes expressar verdades ocultas pelo peso das estratificações culturais. Muitos trabalhos foram realizados por algumas teólogas, que tentaram desconstruir, acima de tudo, os textos bíblicos das construções da cultura patriarcal, para compreender o conteúdo do silêncio das mulheres, mas também para colocar em evidência as diferentes camadas do antropomorfismo que não respeita a identidade de IHWH.

A outra escola de pensamento que pode nos ajudar neste trabalho de redescoberta do mundo feminino na história da religião é a Nouvelle Historie, construída no início da década de 1920 e reunida em torno da revista Les Annales, ainda presente no panorama cultural atual. Os principais protagonistas dessa corrente de pensamento historiográfico sustentavam que toda vez que se pretende conhecer uma história do passado, é necessário prestar muita atenção à maneira como se lê os textos. É, de fato, material desenvolvido pelo centro, ou seja, por aqueles que dominaram o poder naquela época em particular. Para obter as notícias mais confiáveis ​​sobre pessoas ou eventos, precisamos sair do centro, procurar outros documentos marginais, outras fontes não controladas pelo poder do momento, como achados arqueológicos, indicações geográficas e etnológicas, diários. Outros estudiosos da mesma corrente destacaram a importância de estudar mentalidades, pedindo a ajuda da psicanálise. Neste trabalho de busca de verdades sobre as mulheres na sociedade e na religião, os estudos de etnologia e antropologia também podem ser úteis.

O trabalho de descentralização da recuperação de material histórico sobre o papel da mulher na sociedade e na Bíblia foi abordado por várias estudiosas. A Nouvelle Historie ensina a nos colocarmos num ponto de vista diferente para melhor observar o objetivo, ou melhor, a nos colocarmos simultaneamente em diferentes pontos de vista, porque o mesmo evento histórico tem facetas diferentes a partir do ponto em que nós decidimos observá-lo. Tirar o único ponto de vista elaborado por quem dominava o poder, para ver melhor o papel da mulher na sociedade e as razões do seu silêncio, é a grande contribuição do pensamento feminino e da teologia das mulheres. De fato, foram algumas teólogas que nos alertaram que, toda vez que nos aproximamos dos textos sagrados, é necessária uma saudável suspeita para realizar as operações necessárias ao fim de libertar o sagrado de todas as reconstruções culturais, que com frequência e de bom grado, fecharam a palavra de Deus a um olhar diferente, impedindo-a de dizer o que queria dizer.

Afinal, o próprio Jesus nos ensinou esta atitude de suspeita quando, na controvérsia com os fariseus sobre o puro e impuro, os acusou de terem substituído a palavra de Deus por preceitos de homens, por tradições humanas. Para entender o que a palavra de Deus nos diz sobre as mulheres, além de andar na ponta dos pés neste mundo delicado, é necessário suspeitar de tudo, porque, na realidade, a cultura patriarcal cobriu todas as linhas do texto sagrado com uma espessa camada cultural. Embora, infelizmente, elas raramente sejam levadas em consideração pela teologia oficial, muitas são as contribuições da teologia feminista e, em algumas delas, pretendo focar minha atenção.

 

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

QUANDO A POLÍTICA SE TORNA IDOLATRIA

 






Reflexões sobre o fenômeno da política transformada em bandidagem

Paolo Cugini

 

 A política é algo de sério, pois visa o cuidado para com tudo aquilo que concerne a vida na polis, ou seja, na cidade. O grande filosofo grego Platão dizia que pode ser político somente quem na vida se esforçou de alcançar o bem, pois somente a pessoa que vive bem, que é justa, pode ajudar os outros a viverem bem. O político deveria ser uma pessoa livre, que exerce o poder para o bem do povo e não visa o lucro pessoal. Infelizmente aquilo que nós assistimos é exatamente o contrário. Quem chega ao poder muitas vezes não visa o bem do povo, mas sim o próprio interesse pessoal. Talvez este tipo de político começou com as melhores intenções do mundo, animado pelo desejo de fazer bem, ou seja, de servir o povo. A falta de espessura espiritual e moral, porém, típica de quem chega hoje na política, faz com que estas lindas intenções se derretem como a neve ao sol, logo que o político da vez cheira o fedor irresistível do dinheiro e o do poder. O problema é que este jeito interesseiro de fazer política atrai pessoas do mesmo estilo, pessoas que aprendem a fazer da política não o espaço para ajudar na realização de um mundo mais justo, mas para se abastar. Por isso, quando estas pessoas chegam perto do poder grudam nele criando a lógica perversa do parasitismo. Neste contexto, que injustamente é chamado de política, porque de política tem bem pouco, a ideologia some e deixa o espaço para o mero interesse material. É este o grave prejuízo que décadas de politicagem descarada infligiram ao crescimento social do povo. Aquilo que nós assistimos inermes é o verdadeiro massacre do espaço publico que, longe de ser o campo do debate civil e da projetação de medidas de crescimento social, tornou-se o campo onde se exerce de forma descarada a busca de um crescimento material pessoal.

 Neste desqualificante patamar de politicagem de baixo nível, encontramos todos os partidos, seja eles de esquerda que de direita. Este me parece o dado mais preocupante porque marca o fim da ideologia e a vitoria – tomara que seja só momentânea! – do interesse imediato. Quando se fala de ideologia se entende o leque de valores que sustentam um grupo político, valores que norteiam todo um conjunto de medidas e posições coerente entre elas, pois inspiradas do mesmo conteúdo ideológico. Desaparecendo o quadro ideológico de referência, sobra somente o cinismo maquiavélico que leva as pessoas a entrarem na esfera da política partidária, para enxugar o que puder e levar para casa. E, assim, assistimos a discursos enfeitados de ideologia, mas a verdade da substância aparece imediatamente: o interesse pessoal.

Este estilo descarado de exercer o poder exige, para se manter, de um tipo de pessoa especial: o puxa saco. Os centros governamentais das prefeituras e dos estados são lotados deste gênero de pessoa inqualificável, porque não têm identidade própria, mas vive daquilo que encontram e que oferece sustento no imediato. O dato lastimável é que é mesmo este tipo de pessoa que, ao longo ou breve prazo, se torna a causa da morte do grupo político que apóia. É a lógica do parasita que gruda naquilo que pode oferecer o alimento momentâneo e fica ali até provocar a morte do mesmo. É a lógica do bandido que fica na espreita para aguardar o momento certo e dar o golpe fatal. A política hoje está cheia de bandidos de terno e de parasitas sem escrúpulo. Aquilo que está faltando é a capacidade crítica, a honestidade intelectual que permite de rever as falhas de um projeto político e, assim, de levar o projeto na direção da atualidade. Talvez, seja esta a falha maior do sistema político que está tomando conta da realidade, ou seja, a incapacidade crônica, devido ao sistema interesseiro, de produzir um pensamento critico, a capacidade reflexiva que ajuda a analisar os problemas colocando-os no leque de valores altos.

 Isso acontece quando a ideologia, que por definição é algo que tem uma fundamentação teórica, se torna idolatria. A idolatria é a absolutização de uma parte de um todo, a radicalização, a extremização de um fragmento de uma totalidade e, por isso se torna mentira. De fato, sendo a verdade totalidade, um seu fragmento absolutizado se torna mentira. O idolatra é a pessoa que enxerga somente uma parte e a absolutiza, menosprezando todos aqueles que pensam de uma forma diferente. A política hoje, aquela coisa esquisita que estamos assistindo, precisa de idolatras para se sustentar. Sendo que a política perdeu o seu referencial ideológico aquilo que sobra são fragmentos de ideologia que, separados do seu contexto, gera a incapacidade de vislumbrar o todo, de colher a verdade das coisas, confundindo o particular com o universal.  Reverter o quadro que décadas de politicagem realizaram é árduo e talvez difícil, mas não impossível. O sistema político parasitário é destinado a morrer de morte própria. Enquanto estamos aguardando esta morte que esperamos seja a mais rápida possível, precisamos articular novamente a sociedade, principalmente os jovens, para que saibam olhar o futuro com um olhar diferente, um olhar mais crítico e desinteressado.

 

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

A MULHER: IMAGEM DE DEUS?

 




 

Paolo Cugini

Para entendermos como uma tradição cultural como a cristã passa a ler dados bíblicos na direção patriarcal, fortalecendo gradualmente os estereótipos androgénicos, é necessário analisar o período patrístico, passando brevemente por consideração o período medieval e moderno. Existe um primeiro modelo antropológico válido até o século IV d. C., que indica a perfeição humana constituída pelo homem-Adão[1]. As mulheres, por outro lado, que não são criadas à imagem de Deus, podem alcançar a salvação se tornando homens honorários em Cristo. Há um processo de defeminilização, ou seja, um processo de negação das características femininas, que encontra sua realização na escolha da virgindade ou na aceitação da viuvez, o que implica claramente inatividade sexual. Esse padrão sobrevive na tipologia Adão-Cristo, Eva-Maria / Igreja, que reproduz a assimetria de gênero, ou seja, a designação de tarefas sociais a partir da compreensão da sexualidade entendida em um sentido diferenciado e binário. A teóloga italiana Selene Zorzi traça esse padrão arcaico a partir de Justin e Irineu. Em particular, este último, através do paralelismo mencionado acima, reproduz uma condição subordinada da mulher resultado de uma teoria arbitrária, em vez de uma reflexão sobre a realidade da mulher.

O segundo modelo se desenvolveu entre os séculos III e V e também se estendeu a toda a Idade Média. Nesse modelo antropológico, homem e mulher devem alcançar uma imagem assexuada de Deus, que pressupõe um Deus sem sexo. Portanto, é necessário abandonar tudo o que pertence ao corpo e à sexualidade e tornar-se como anjos. As passagens bíblicas mais citadas pelos autores que seguem esse modelo, ou seja, Clemente Alexandrino e Orígenes, são Gal 3,28 e Lc 20,36, além de Mc 12,25 e Mt 22,30. Clemente é a expressão patrística daquele platonismo retrabalhado na primeira fase do cristianismo que, a partir do dualismo de corpo e alma, convidava os cristãos a fugirem do mundo e, portanto, refugiarem-se no deserto. Clemente, Zorzi nos lembra, é o primeiro pai da Igreja que conecta Gen 1,27b (homem e mulher que ele os criou) a Gen 1,26-27a (à imagem de Deus) usando Gal 3,28 (não há mais homens ou mulheres) como chave interpretativa. Essa leitura permite afirmar e atribuir a imagem de Deus à mulher, mesmo que considere apenas as habilidades espirituais que, segundo ele, são assexuadas. A razão dessa limitação deriva da abordagem platônica de Clemente e, por causa disso, se recusa a considerar o corpo e as diferenças corporais como imagem de Deus. Sempre na base do texto Gal 3,28, Clemente afirma que a imagem de Deus não é masculina, nem feminina. Sendo que somente Cristo realizou completamente a palavra dita por Deus em Gênesis 1:26, significa que todos os outros seres humanos são uma imagem da imagem, isto é, do Logos. Embora Clemente, observa Zorzi (2015, p.99), seja um dos pais da Igreja em que o uso de metáforas femininas para falar de Deus é mais abundante, a terminologia da feminilidade é usada para indicar fraqueza.

A teologa italiana Selene Zorzi, citada no artigo


Orígenes também se move nessa esteira platônica, indicando que o homem feito à imagem de Deus é o interior, porque Deus não tem corporeidade, e os antropomorfismos das Escrituras em referência a Deus devem ser entendidos alegoricamente. É interessante notar a dificuldade de abandonar um modelo filosófico como, neste caso, o platonismo, para seguir a coerência de um pensamento que se esforça para permanecer atento ao ouvir a Palavra. É isso que Zorzi destaca quando Orígenes propõe um caminho espiritual. Embora sejam ideias que:

suponham a feminilidade da alma perfeita, elas não implicam em Orígenes nenhuma repercussão nos papéis sociais e nenhuma mudança desses padrões de gênero. Para ele também, de fato, a mulher em casamento deve ser submissa ao marido [...] Ele compartilha com a cultura tradicional de seu tempo a ideia de que a mulher da geração é completamente passiva (Zorzi, p. 115).

Também neste período, há uma linha neoplatônica de pensamento patrístico levada a cabo na tradição latina por Tertuliano que, como sabemos, não tem uma visão muito positiva das mulheres. De fato, ele sustenta que “toda mulher deve andar como Eva em penitência de luto, para que, com o disfarce de penitência, ela expie completamente o que deriva de Eva - ignomínia, digo, do primeiro pecado, e o ódio inerente a ela, a causa da perdição humana”. O estereótipo sexista de que toda mulher é a Mulher Eva é evidente nesta curta passagem. Como Zorzi aponta, todo processo de estereotipagem traz não apenas generalização, mas também deformação. Nesse caso, Eva é culpada pela queda de toda a humanidade. Também sobre o tema das virgens, que diferiam das mulheres casadas que usavam o véu nas celebrações litúrgicas, Tertuliano usa e aplica o esquema matrimonial patriarcal ao impor o véu às virgens.

Na tradição antioquena, que foi afirmada no século IV, Giovanni Crisóstomo afirma que homem e mulher compartilham o typos, mas não a mesma morphé. É o anthropos, portanto, a participar da imagem de Deus e não a morphé. Para ele, a imagem indica dominação e, portanto, é apenas no homem e não na mulher. De fato, o homem não é submisso a ninguém, enquanto a mulher é submissa ao homem. Segundo Crisóstomo, o homem tem uma superioridade natural sobre a mulher, porque Cristo é a cabeça dos homens e os homens das mulheres; porque como os homens são a glória de Deus, as mulheres são dos homens. É por isso que, numa família, apenas um pode comandar. Segundo Zorzi:

toda a tradição antioquena atribui a Paulo a ideia de que a mulher não é criada à imagem de Deus. [...] Os antioquenos não acreditam que essa submissão da mulher seja uma consequência do pecado: seu androcentrismo é diretamente justificado como vontade de Deus, claramente uma sacralização dos modelos sociais (Zorzi, p. 122).

Os mesmos padrões androcêntricos que veem o homem liderando a mulher, ainda que mais sutis, aparecerão nos capadócios. Agostinho, considerado o epígono do pensamento patrístico ocidental, elabora sua reflexão profundamente marcada pelo platonismo do século VI. Segundo ele, a imagem de Deus reside na alma e, consequentemente, as mulheres, em seu corpo, não são capazes de simbolizar essa imagem de Deus e, portanto, são prescritas para se cobrirem com o véu. A mulher em seu corpo não é criada à imagem de Deus, mesmo que ela não seja excluída da imagem redimida. Agostinho acredita que a distinção sexual diz respeito apenas à corporeidade, porque a alma não tem sexo. Zorzi ressalta que Agostinho apenas no final de sua vida percebe que o corpo é uma parte estrutural da pessoa e, portanto, também a sexualidade pode não apenas ter uma função ligada à procriação, mas deve ser parte integrante da estrutura pessoal humana.

No contexto do debate sobre a possibilidade de uma mulher ter uma alma ou se ela participa da imagem de Deus, um contexto explicitado no Concílio de Macon de 585, significativas tornam-se as considerações de um autor anônimo renomeado por estudiosos como Ambrosiaster, que acreditava que as mulheres não haviam sido criadas à imagem de Deus. O fato histórico de que, mesmo no século VI da era cristã, alguém se perguntava sobre um tema como esse, já é significativo. O mesmo acontecerá no século XVI, quando será a vez dos índios e mais uma vez será um documento papal que estabelecerá que eles também têm uma alma[2]. Para Ambrosiaster, portanto, a mulher não pode ter a imagem de Deus porque esta é ligada ao poder e ao domínio. Um só Deus pode ter criado apenas um homem, e consequentemente todos os outros seres carnais, incluindo a mulher, derivam dele. Zorzi ressalta que essas posições misóginas tiveram uma influência significativa no canonismo da Idade Média. O Decretum de Graziano do século XII afirmava: “Essa imagem de Deus está no homem, que pode ser o único do qual todos os outros que têm poder divino derivam, quase seus vigários, porque somente ele tem a imagem de Deus. Isto é, a mulher não é feita à imagem de Deus” (Zorzi, p. 141). O Decretum também estabeleceu que mulheres, como menores, não tinham o direito de acusar alguém em tribunal, não podiam testemunhar, nem interceder por ninguém, eram excluídas do papel de juízes e de todos as demais funções relacionadas à advocacia. Zorzi concorda com o estudo de Gary Macy[3], que argumenta que o agravamento na discussão sobre as mulheres se tornou misógino desde a reforma gregoriana e as leis concomitantes sobre o celibato obrigatório do clero (Pisa, 1135). Para incentivar a continência e o celibato, as mulheres são cada vez mais marginalizadas, denegridas, e a sexualidade cada vez mais considerada algo impuro. Por essas razões, os canonistas dos séculos seguintes insistirão no tema da impureza cultual das mulheres, sustentando, com Rufino de Bolonha (1150-1191), que as mulheres menstruadas não podem entrar na Igreja. E assim a igreja, em vez de progredir, remonta dramaticamente ao tempo do Levítico. Sempre Gary Macy sustenta que os tons misóginos da Igreja do século XII em relação às mulheres contribuíram para considerar o estado matrimonial como uma vocação de segunda classe, enquanto o celibato é cada vez mais considerado o caminho certo para a santidade. Também, neste período verdadeiramente nefasto, não apenas para as mulheres, mas por toda a caminhada da igreja, haverá aqueles que argumentarão que as mulheres são menos inteligentes que os homens, que são menos constantes e sábias que os homens, além de serem claramente fracas[4].

A interpretação patrística fornecerá o esquema de referência também para os séculos seguintes. Argumentos misóginos serão enriquecidos com elementos sexofóbicos. É interessante notar que, justamente neste período em que a mulher é cada vez mais denegrida com qualquer tipo de denominação negativa, a reflexão sobre a exaltação devocional da mulher-anjo é elaborada e difundida, e o que hoje é chamado de princípio mariano adquire valor. Isso pode ser visto, por exemplo, na pregação de Bernardo Chiaravalle que, embora não poupe adjetivos depreciativos em relação à mulher, indicando-a como fraca, saco de lixo, incapaz de assumir tarefas, por outro lado, exalta o ideal da feminilidade de Maria, o único representante perfeito do gênero feminino.

A modernidade não acrescentará nada de novo aos argumentos negativos sobre as mulheres desenvolvidos nos tempos medievais. Zorzi ressalta que a única diferença será uma mudança de método: “A motivação antropológica e teológica começa a perder importância e o argumento baseado em papéis sociais se torna central. Essas discussões terão como objetivo justificar a exclusão da ordenação sacerdotal” (Zorzi, p. 147). A caça às bruxas e a elaboração da demonologia devem ser atribuídas ao processo de as mulheres assumirem funções e papéis cada vez mais emergentes, “especialmente aqueles que se tornaram prerrogativas exclusivas do ministério ordenado”[5]. Como a ordem sagrada implicaria uma condição de superioridade para as mulheres, para todas as séries de argumentos medievais de sua suposta inferioridade, elas devem ser excluídas. Além disso, cresce a ideia de que nenhuma mulher no Antigo Testamento ou na história da Igreja jamais teria assumido um cargo ministerial e, portanto, a possível ordenação de mulheres causaria uma interrupção da tradição. Essa ideia, como podemos ver, que é tão importante no atual debate sobre a ordenação de mulheres no mundo católico, surge aqui, em um contexto que compreende mal os dados bíblicos e também uma hermenêutica mais aprofundada. O sexo feminino é, portanto, considerado um impedimento em si, uma vez que a sexualidade feminina indica a submissão de natureza. Todas declarações que hoje não encontram sustentação em nenhum lugar. A partir do século XVII, são considerados hereges todos aqueles que permitiam que as mulheres tivessem acesso ao altar. No século XVIII, quando a lei hereditária começou a permitir papéis do governo para as mulheres, autores eclesiásticos argumentam que a lei natural o proíbe. “Está claro que a antropologia formulada na Patrística e retrabalhada na Escolástica continua estruturando o argumento sobre a posição da mulher até a modernidade”, conclui Selene Zorzi.

 



[1] Cf. Selene Zorzi, Al di là del “genio femminile”. Donne e genere nella storia della teologia cristiana. (Roma: Carocci, 2015).

[2] Trata-se da bula papal Sublimis Deus emitida em 29 de maio de 1537, pelo Papa Paulo III, em que afirma que os índios são homens, capazes de compreender a fé cristã e condena explicitamente a escravidão.

[3] Gary Macy, The Hidden for History of Women’s Ordination: Female Clergy in the Medieval West (Oxford: OUP, 2008), 139.

[4] Um certo Bernardo di Botone (m. 1226), canonista de Parma, atinge o ápice da estupidez literária desse período, quando chega a dizer: "O que é mais leve que a fumaça? A brisa. O que mais do que a brisa? O vento. O que mais do que o vento? Uma mulher. O que mais do que uma mulher? Nada" (relatado por Macy, The Hidden, 118).

[5] Kari Elizabeth Borresen e Adriana Valerio, Donne e bibbia nel Medioevo (secoli XII-XV). Tra ricezione e interpretazione. (Trapani: il Pozzo di Giacobbe, 2011), 57. 

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

DAS COISAS SIMPLES DA VIDA

 




Paolo Cugini

 

Recebi nestes dias de uma minha amiga uma imagem que retrai um pai olhando seu filho pequeno enquanto trabalha a madeira. Chama atenção nesta imagem o olhar cheio de ternura do pai, que observa com atenção o próprio filho com o desejo de deixá-lo livre para que desenvolva as próprias potencialidades e, ao mesmo tempo, a preocupação para que não aconteça nada. É bonito também ver a criança que trabalha com interesse aquele pedaço de madeira, despreocupado com o mundo como deveria ser por cada criança, porque sabe no seu coração que seu pai está vigiando e não deixará que ninguém mexa com ele.  Olhando a imagem viajei com a mente pensando no mistério de Deus que se fez carne e viveu escondido numa família. São relações humanas que, no mistério da família de Nazareth, são ressaltadas como fundamentais no crescimento da pessoa humana. Se quisermos, então, nos tornarmos mais humanos, precisamos valorizar este dato simples e profundo que é constituído pelas relações humanas que acontecem no lar. Respirando a ternura dos nossos pais crescemos sadios, assimilando os valores da vida que se transmitem de uma forma natural, com gestos naturais e singelos. Proteger o próprio filho, desejar que ele cresça sadio, almejar para ele uma vida autêntica: só estes sentimentos naturais produzem por si mesmos toda uma seria de atitudes vitais que moldam positivamente a nossa história.

 

Nos momentos críticos da nossa vida de adultos muitas vezes quem fornece o material existencial para sairmos bem, não são as nossas forças físicas ou mentais, mas sim as nossas lembranças que levemos nos nossos corações. A lembrança daquele abraço cheio de amor e de sorriso de nossa mãe ou a lembrança da caricia do nosso pai, de um conselho paterno na hora certa, são as vitaminas espirituais que nos sustentam ao longo dos anos.  Passamos a vida enxugando os neurônios na busca de algo que possa nos realizar e amiúde não encontramos nada, porque andamos longe demais e esquecemos de olhar dentro de nós. Sobretudo esquecemos o dom vital dos nossos pais, da nossa família. Talvez achemos que isso é coisa do passado e que agora não serve mais. Pensamos que o nosso futuro é feito somente daquilo que nós mesmos conseguimos, tentando e nos libertar daquilo que foi.

 

A nossa vida é tecida com os fios sutis da ternura e do amor dos nossos pais, dos nossos irmãos, parentes. Crescemos nos alimentandos dos relacionamentos corriqueiros familiares. São estes elementos implícitos, não pensados por nós, que encontramos ali no momento do nascimento, que nos são oferecidos gratuitamente que mais influenciam a nossa estrutura pessoal no bem e no mal. Bem por nós se tivemos a sorte de nascer num lar sadio, com pessoas boas. A nossa vida não se decide pelas coisas conseguimos conquistar, mas sim com a qualidade dos nossos relacionamentos, da nossa humanidade. A que adianta ser não sei o que, mas depois totalmente incapazes de valorizar as pessoas que vivem perto de nós no trabalho, na família, no dia a dia. É nos pequenos gestos de atenção, de escuta do outro, de interesse pelas pessoas que estão ao nosso redor que conseguimos mudar nós mesmo e, de reflexo, levar um pouco de amor no mundo. Tudo isso não se aprende na escola o na rua, mas o se recebe de forma implícita e singela nas atitudes dos nossos pais no lar familiar. 

 

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Mensagem do Santo Padre Francisco para o 57º Dia Mundial da Paz (1º de janeiro de 2024)

 




 

Inteligência artificial e paz

No início do novo ano, tempo de graça concedido pelo Senhor a cada um de nós, quero dirigir-me ao Povo de Deus, às nações, aos Chefes de Estado e de Governo, aos Representantes das diversas religiões e da sociedade civil, a todos os homens e mulheres do nosso tempo para lhes expressar os meus votos de paz.

1. O progresso da ciência e da tecnologia como caminho para a paz

A Sagrada Escritura atesta que Deus deu aos homens o seu Espírito a fim de terem «sabedoria, inteligência e capacidade para toda a espécie de trabalho» (Ex 35, 31). A inteligência é expressão da dignidade que nos foi dada pelo Criador, que nos fez à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26) e nos tornou capazes, através da liberdade e do conhecimento, de responder ao seu amor. Esta qualidade fundamentalmente relacional da inteligência humana manifesta-se de modo particular na ciência e na tecnologia, que são produtos extraordinários do seu potencial criativo.

Na Constituição pastoral Gaudium et spes, o Concílio Vaticano II reafirmou esta verdade, declarando que «sempre o homem procurou, com o seu trabalho e engenho, desenvolver mais a própria vida».[1] Quando os seres humanos, «recorrendo à técnica», se esforçam por que a terra «se torne habitação digna para toda a humanidade»,[2] agem segundo o desígnio divino e cooperam com a vontade que Deus tem de levar à perfeição a criação e difundir a paz entre os povos. Assim o próprio progresso da ciência e da técnica – na medida em que contribui para uma melhor organização da sociedade humana, para o aumento da liberdade e da comunhão fraterna – leva ao aperfeiçoamento do homem e à transformação do mundo.

Justamente nos alegramos e sentimos reconhecidos pelas extraordinárias conquistas da ciência e da tecnologia, graças às quais se pôs remédio a inúmeros males que afligiam a vida humana e causavam grandes sofrimentos. Ao mesmo tempo, os progressos técnico-científicos, que permitem exercer um controle – até agora inédito – sobre a realidade, colocam nas mãos do homem um vasto leque de possibilidades, algumas das quais podem constituir um risco para a sobrevivência humana e um perigo para a casa comum.[3]

Deste modo os progressos notáveis das novas tecnologias da informação, sobretudo na esfera digital, apresentam oportunidades entusiasmantes mas também graves riscos, com sérias implicações na prossecução da justiça e da harmonia entre os povos. Por isso torna-se necessário interrogar-nos sobre algumas questões urgentes: quais serão as consequências, a médio e longo prazo, das novas tecnologias digitais? E que impacto terão elas sobre a vida dos indivíduos e da sociedade, sobre a estabilidade e a paz?

2. O futuro da inteligência artificial, por entre promessas e riscos

Os progressos da informática e o desenvolvimento das tecnologias digitais, nas últimas décadas, começaram já a produzir profundas transformações na sociedade global e nas suas dinâmicas. Os novos instrumentos digitais estão a mudar a fisionomia das comunicações, da administração pública, da instrução, do consumo, dos intercâmbios pessoais e de inúmeros outros aspetos da vida diária.

Além disso as tecnologias que se servem duma multiplicidade de algoritmos podem, dos vestígios digitais deixados na internet, extrair dados que permitem controlar os hábitos mentais e relacionais das pessoas para fins comerciais ou políticos, muitas vezes sem o seu conhecimento, limitando o exercício consciente da sua liberdade de escolha. De facto, num espaço como a web caraterizado por uma sobrecarga de informações, pode-se compor o fluxo de dados segundo critérios de seleção nem sempre enxergados pelo utente.

Devemos recordar-nos de que a pesquisa científica e as inovações tecnológicas não estão desencarnadas da realidade nem são «neutrais»,[4] mas estão sujeitas às influências culturais. Sendo atividades plenamente humanas, os rumos que tomam refletem opções condicionadas pelos valores pessoais, sociais e culturais de cada época. E o mesmo se diga dos resultados que alcançam: enquanto fruto de abordagens especificamente humanas do mundo envolvente, têm sempre uma dimensão ética, intimamente ligada às decisões de quem projeta a experimentação e orienta a produção para objetivos particulares.

Isto aplica-se também às formas de inteligência artificial. Desta, até ao momento, não existe uma definição unívoca no mundo da ciência e da tecnologia. A própria designação, que já entrou na linguagem comum, abrange uma variedade de ciências, teorias e técnicas destinadas a fazer com que as máquinas, no seu funcionamento, reproduzam ou imitem as capacidades cognitivas dos seres humanos. Falar de «formas de inteligência», no plural, pode ajudar sobretudo a assinalar o fosso intransponível existente entre estes sistemas, por mais surpreendentes e poderosos que sejam, e a pessoa humana: em última análise, aqueles são «fragmentários» já que têm possibilidades de imitar ou reproduzir apenas algumas funções da inteligência humana. Além disso o uso do plural destaca que tais dispositivos, muito diferentes entre si, devem ser sempre considerados como «sistemas sociotécnicos». Com efeito o seu impacto, independentemente da tecnologia de base, depende não só da projetação, mas também dos objetivos e interesses de quem os possui e de quem os desenvolve, bem como das situações em que são utilizados.

Por conseguinte a inteligência artificial deve ser entendida como uma galáxia de realidades diversas e não podemos presumir a priori que o seu desenvolvimento traga um contributo benéfico para o futuro da humanidade e para a paz entre os povos. O resultado positivo só será possível se nos demonstrarmos capazes de agir de maneira responsável e respeitar valores humanos fundamentais como «a inclusão, a transparência, a segurança, a equidade, a privacidade e a fiabilidade».[5]

E não é suficiente presumir, por parte de quem projeta algoritmos e tecnologias digitais, um empenho por agir de modo ético e responsável. É preciso reforçar ou, se necessário, instituir organismos encarregados de examinar as questões éticas emergentes e tutelar os direitos de quantos utilizam formas de inteligência artificial ou são influenciados por ela.[6]

Assim, a imensa expansão da tecnologia deve ser acompanhada por uma adequada formação da responsabilidade pelo seu desenvolvimento. A liberdade e a convivência pacífica ficam ameaçadas, quando os seres humanos cedem à tentação do egoísmo, do interesse próprio, da ânsia de lucro e da sede de poder. Por isso temos o dever de alargar o olhar e orientar a pesquisa técnico-científica para a prossecução da paz e do bem comum, ao serviço do desenvolvimento integral do homem e da comunidade.[7]

A dignidade intrínseca de cada pessoa e a fraternidade que nos une como membros da única família humana devem estar na base do desenvolvimento de novas tecnologias e servir como critérios indiscutíveis para as avaliar antes da sua utilização, para que o progresso digital possa verificar-se no respeito pela justiça e contribuir para a causa da paz. Os avanços tecnológicos que não conduzem a uma melhoria da qualidade de vida da humanidade inteira, antes pelo contrário agravam as desigualdades e os conflitos, nunca poderão ser considerados um verdadeiro progresso.[8]

A inteligência artificial tornar-se-á cada vez mais importante. Os desafios que coloca não são apenas de ordem técnica, mas também antropológica, educacional, social e política. Deixa esperar, por exemplo, poupança de esforços, produção mais eficiente, transportes mais fáceis e mercados mais dinâmicos, bem como uma revolução nos processos de recolha, organização e verificação de dados. Precisamos de estar conscientes das rápidas transformações em curso e geri-las de forma a salvaguardar os direitos humanos fundamentais, respeitando as instituições e as leis que promovem o progresso humano integral. A inteligência artificial deveria estar ao serviço dum melhor potencial humano e das nossas mais altas aspirações, e não em competição com eles.

3. A tecnologia do futuro: máquinas que aprendem sozinhas

Nas suas múltiplas formas, a inteligência artificial, baseada em técnicas de aprendizagem automática (machine learning), embora ainda numa fase pioneira, já está a introduzir mudanças notáveis no tecido das sociedades, exercendo uma influência profunda nas culturas, nos comportamentos sociais e na construção da paz.

Desenvolvimentos como a aprendizagem automática (machine learning) ou a aprendizagem profunda (deep learning) levantam questões que transcendem os âmbitos da tecnologia e da engenharia e têm a ver com uma compreensão intimamente ligada ao significado da vida humana, aos processos basilares do conhecimento e à capacidade que tem a mente de alcançar a verdade.

A capacidade de alguns dispositivos produzirem textos sintática e semanticamente coerentes, por exemplo, não é garantia de fiabilidade. Diz-se que podem «alucinar», isto é, gerar afirmações que à primeira vista parecem plausíveis, mas na realidade são infundadas ou preconceituosas. Isto coloca um sério problema quando a inteligência artificial é utilizada em campanhas de desinformação que espalham notícias falsas e levam a uma desconfiança crescente relativamente aos meios de comunicação. A confidencialidade, a posse dos dados e a propriedade intelectual são outros âmbitos em que as tecnologias em questão comportam graves riscos, aos quais se vêm juntar outras consequências negativas ligadas a um uso indevido, como a discriminação, a interferência nos processos eleitorais, a formação duma sociedade que vigia e controla as pessoas, a exclusão digital e a exacerbação dum individualismo cada vez mais desligado da coletividade. Todos estes fatores correm o risco de alimentar os conflitos e obstaculizar a paz.

4. O sentido do limite, no paradigma tecnocrático

O nosso mundo é demasiado vasto, variado e complexo para ser completamente conhecido e classificado. A mente humana nunca poderá esgotar a sua riqueza, nem sequer com a ajuda dos algoritmos mais avançados. De facto, estes não oferecem previsões garantidas do futuro, mas apenas aproximações estatísticas. Nem tudo pode ser previsto, nem tudo pode ser calculado; no fim de contas, «a realidade é superior à ideia»[9] e, por mais prodigiosa que seja a nossa capacidade de calcular, haverá sempre um resíduo inacessível que escapa a qualquer tentativa de quantificação.

Além disso, a grande quantidade de dados analisados pelas inteligências artificiais não é, por si só, garantia de imparcialidade. Quando os algoritmos extrapolam informações, correm sempre o risco de as distorcer, replicando as injustiças e os preconceitos dos ambientes onde têm origem. Quanto mais rápidos e complexos eles se tornam, mais difícil é compreender por que produziram um determinado resultado.

As máquinas inteligentes podem desempenhar as tarefas que lhes são atribuídas com uma eficiência cada vez maior, mas a finalidade e o significado das suas operações continuarão a ser determinados ou capacitados por seres humanos com o seu próprio universo de valores. O risco é que os critérios subjacentes a certas escolhas se tornem menos claros, que a responsabilidade de decisão seja ocultada e que os produtores possam subtrair-se à obrigação de agir para o bem da comunidade. Em certo sentido, isto é favorecido pelo sistema tecnocrático, que alia a economia à tecnologia e privilegia o critério da eficiência, tendendo a ignorar tudo o que não esteja ligado aos seus interesses imediatos.[10]

Isto deve fazer-nos refletir sobre um aspeto transcurado frequentemente na atual mentalidade tecnocrática e eficientista, mas decisivo para o desenvolvimento pessoal e social: o «sentido do limite». Com efeito o ser humano, mortal por definição, pensando em ultrapassar todo o limite mediante a técnica, corre o risco, na obsessão de querer controlar tudo, de perder o controle sobre si mesmo; na busca duma liberdade absoluta, de cair na espiral duma ditadura tecnológica. Reconhecer e aceitar o próprio limite de criatura é condição indispensável para que o homem alcance ou, melhor, acolha a plenitude como uma dádiva; ao passo que, no contexto ideológico dum paradigma tecnocrático animado por uma prometeica presunção de autossuficiência, as desigualdades poderiam crescer sem medida, e o conhecimento e a riqueza acumular-se nas mãos de poucos, com graves riscos para as sociedades democráticas e uma coexistência pacífica.[11]

5. Temas quentes para a ética

No futuro, a fiabilidade de quem solicita um mútuo, a idoneidade dum indivíduo para determinado emprego, a possibilidade de reincidência dum condenado ou o direito a receber asilo político ou assistência social poderão ser determinados por sistemas de inteligência artificial. A falta de níveis diversificados de mediação que tais sistemas introduzem está particularmente exposta a formas de preconceito e discriminação: os erros do sistema podem multiplicar-se facilmente, gerando não só injustiças em casos individuais, mas também, por efeito dominó, verdadeiras formas de desigualdade social.

Além disso, por vezes, as formas de inteligência artificial parecem capazes de influenciar as decisões dos indivíduos através de opções predeterminadas associadas a estímulos e dissuasões, ou então através de sistemas de regulação das opções pessoais baseados na organização das informações. Estas formas de manipulação ou controle social requerem atenção e vigilância cuidadosas, implicando uma clara responsabilidade legal por parte dos produtores, de quem os contrata e das autoridades governamentais.

O ato de se confiar a processos automáticos que dispõem os indivíduos por categorias, por exemplo, através dum uso invasivo da vigilância ou da adoção de sistemas de crédito social, poderia ter repercussões profundas também no tecido civil, estabelecendo classificações inadequadas entre os cidadãos. E estes processos artificiais de classificação poderiam levar também a conflitos de poder, envolvendo não apenas destinatários virtuais, mas também pessoas de carne e osso. O respeito fundamental pela dignidade humana requer a rejeição de que a unicidade da pessoa seja identificada com um conjunto de dados. Não se deve permitir que os algoritmos determinem o modo como entendemos os direitos humanos, ponham de lado os valores essenciais da compaixão, da misericórdia e do perdão, ou eliminem a possibilidade de um indivíduo mudar e deixar para trás o passado.

Neste contexto, não podemos deixar de considerar o impacto das novas tecnologias no âmbito laboral: trabalhos, que outrora eram prerrogativa exclusiva da mão-de-obra humana, acabam rapidamente absorvidos pelas aplicações industriais da inteligência artificial. Também neste caso, há substancialmente o risco duma vantagem desproporcionada para poucos à custa do empobrecimento de muitos. A Comunidade Internacional, ao ver como tais formas de tecnologia penetram cada vez mais profundamente nos locais de trabalho, deveria considerar como alta prioridade o respeito pela dignidade dos trabalhadores e a importância do emprego para o bem-estar económico das pessoas, das famílias e das sociedades, a estabilidade dos empregos e a equidade dos salários.

6. Transformaremos as espadas em relhas de arado?

Nestes dias, contemplando o mundo que nos rodeia, não se pode ignorar as graves questões éticas relacionadas com o setor dos armamentos. A possibilidade de efetuar operações militares através de sistemas de controle remoto levou a uma perceção menor da devastação por eles causada e da responsabilidade da sua utilização, contribuindo para uma abordagem ainda mais fria e destacada da imensa tragédia da guerra. A pesquisa sobre as tecnologias emergentes no setor dos chamados «sistemas de armas letais autónomas», incluindo a utilização bélica da inteligência artificial, é um grave motivo de preocupação ética. Os sistemas de armas autónomos nunca poderão ser sujeitos moralmente responsáveis: a exclusiva capacidade humana de julgamento moral e de decisão ética é mais do que um conjunto complexo de algoritmos, e tal capacidade não pode ser reduzida à programação duma máquina que, por mais «inteligente» que seja, permanece sempre uma máquina. Por esta razão, é imperioso garantir uma supervisão humana adequada, significativa e coerente dos sistemas de armas.

Também não podemos ignorar a possibilidade de armas sofisticadas caírem em mãos erradas, facilitando, por exemplo, ataques terroristas ou intervenções visando desestabilizar instituições legítimas de Governo. Em resumo, o mundo não precisa realmente que as novas tecnologias contribuam para o iníquo desenvolvimento do mercado e do comércio das armas, promovendo a loucura da guerra. Ao fazê-lo, não só a inteligência, mas também o próprio coração do homem, correrá o risco de se tornar cada vez mais «artificial». As aplicações técnicas mais avançadas não devem ser utilizadas para facilitar a resolução violenta dos conflitos, mas para pavimentar os caminhos da paz.

Numa ótica mais positiva, se a inteligência artificial fosse utilizada para promover o desenvolvimento humano integral, poderia introduzir inovações importantes na agricultura, na instrução e na cultura, uma melhoria do nível de vida de inteiras nações e povos, o crescimento da fraternidade humana e da amizade social. Em última análise, a forma como a utilizamos para incluir os últimos, isto é, os irmãos e irmãs mais frágeis e necessitados, é a medida reveladora da nossa humanidade.

Um olhar humano e o desejo dum futuro melhor para o nosso mundo levam à necessidade dum diálogo interdisciplinar voltado para um desenvolvimento ético dos algoritmos – a algor-etica -, em que sejam os valores a orientar os percursos das novas tecnologias.[12] As questões éticas deveriam ser tidas em consideração desde o início da pesquisa, bem como nas fases de experimentação, projetação, produção, distribuição e comercialização. Esta é a abordagem da ética da projetação, na qual as instituições educativas e os responsáveis pelo processo de decisão têm um papel essencial a desempenhar.

7. Desafios para a educação

O desenvolvimento duma tecnologia que respeite e sirva a dignidade humana tem implicações claras para as instituições educativas e para o mundo da cultura. Ao multiplicar as possibilidades de comunicação, as tecnologias digitais permitiram encontrar-se de novas formas. Todavia continua a ser necessária uma reflexão contínua sobre o tipo de relações para onde nos estão encaminhando. Os jovens estão a crescer em ambientes culturais impregnados de tecnologia, o que não pode deixar de pôr em causa os métodos de ensino e formação.

A educação para o uso de formas de inteligência artificial deveria visar sobretudo a promoção do pensamento crítico. É necessário que os utentes das várias idades, mas principalmente os jovens, desenvolvam uma capacidade de discernimento no uso de dados e conteúdos recolhidos na web ou produzidos por sistemas de inteligência artificial. As escolas, as universidades e as sociedades científicas são chamadas a ajudar os estudantes e profissionais a assumir os aspetos sociais e éticos do progresso e da utilização da tecnologia.

A formação no uso dos novos instrumentos de comunicação deveria ter em conta não só a desinformação, as notícias falsas, mas também a recrudescência preocupante de «medos ancestrais (...) que souberam esconder-se e revigorar-se por detrás das novas tecnologias».[13] Infelizmente, encontramo-nos mais uma vez a combater «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os muros (…), para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas»[14] e o desenvolvimento duma coexistência pacífica e fraterna.

8. Desafios para o desenvolvimento do direito internacional

O alcance global da inteligência artificial deixa claro que, juntamente com a responsabilidade dos Estados soberanos de regular a sua utilização internamente, as Organizações Internacionais podem desempenhar um papel decisivo na obtenção de acordos multilaterais e na coordenação da sua aplicação e implementação.[15] A este respeito, exorto a Comunidade das Nações a trabalhar unida para adotar um tratado internacional vinculativo, que regule o desenvolvimento e o uso da inteligência artificial nas suas variadas formas. Naturalmente o objetivo da regulamentação não deveria ser apenas a prevenção de más aplicações, mas também o incentivo às boas aplicações, estimulando abordagens novas e criativas e facilitando iniciativas pessoais e coletivas.[16]

Em última análise, na busca de modelos normativos que possam fornecer uma orientação ética aos criadores de tecnologias digitais, é indispensável identificar os valores humanos que deveriam estar na base dos esforços das sociedades para formular, adotar e aplicar os quadros legislativos necessários. O trabalho de elaboração de diretrizes éticas para a produção de formas de inteligência artificial não pode prescindir da consideração de questões mais profundas relativas ao significado da existência humana, à proteção dos direitos humanos fundamentais, à busca da justiça e da paz. Este processo de discernimento ético e jurídico pode revelar-se preciosa ocasião para uma reflexão compartilhada sobre o papel que a tecnologia deveria ter na nossa vida individual e comunitária e sobre a forma como a sua utilização possa contribuir para a criação dum mundo mais equitativo e humano. Por este motivo, nos debates sobre a regulamentação da inteligência artificial, dever-se-ia ter em conta as vozes de todas as partes interessadas, incluindo os pobres, os marginalizados e outros que muitas vezes permanecem ignorados nos processos de decisão globais.

 

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Espero que esta reflexão encoraje a fazer com que os progressos no desenvolvimento de formas de inteligência artificial sirvam, em última análise, a causa da fraternidade humana e da paz. Não é responsabilidade de poucos, mas da família humana inteira. De facto, a paz é fruto de relações que reconhecem e acolhem o outro na sua dignidade inalienável, e de cooperação e compromisso na busca do desenvolvimento integral de todas as pessoas e de todos os povos.

No início do novo ano, a minha oração é que o rápido desenvolvimento de formas de inteligência artificial não aumente as já demasiadas desigualdades e injustiças presentes no mundo, mas contribua para pôr fim às guerras e conflitos e para aliviar muitas formas de sofrimento que afligem a família humana. Possam os fiéis cristãos, os crentes das várias religiões e os homens e mulheres de boa vontade colaborar harmoniosamente para aproveitar as oportunidades e enfrentar os desafios colocados pela revolução digital, e entregar às gerações futuras um mundo mais solidário, justo e pacífico.

Vaticano, 8 de dezembro de 2023.

FRANCISCO