Paolo
Cugini
Para
entendermos como uma tradição cultural como a cristã passa a ler dados bíblicos
na direção patriarcal, fortalecendo gradualmente os estereótipos androgénicos,
é necessário analisar o período patrístico, passando brevemente por
consideração o período medieval e moderno. Existe um primeiro modelo
antropológico válido até o século IV d. C., que indica a perfeição humana
constituída pelo homem-Adão[1].
As mulheres, por outro lado, que não são criadas à imagem de Deus, podem
alcançar a salvação se tornando homens honorários em Cristo. Há um processo de
defeminilização, ou seja, um processo de negação das características femininas,
que encontra sua realização na escolha da virgindade ou na aceitação da viuvez,
o que implica claramente inatividade sexual. Esse padrão sobrevive na tipologia
Adão-Cristo, Eva-Maria / Igreja, que reproduz a assimetria de gênero, ou seja,
a designação de tarefas sociais a partir da compreensão da sexualidade
entendida em um sentido diferenciado e binário. A teóloga italiana Selene Zorzi
traça esse padrão arcaico a partir de Justin e Irineu. Em particular, este
último, através do paralelismo mencionado acima, reproduz uma condição
subordinada da mulher resultado de uma teoria arbitrária, em vez de uma
reflexão sobre a realidade da mulher.
O
segundo modelo se desenvolveu entre os séculos III e V e também se estendeu a
toda a Idade Média. Nesse modelo antropológico, homem e mulher devem alcançar
uma imagem assexuada de Deus, que pressupõe um Deus sem sexo. Portanto, é
necessário abandonar tudo o que pertence ao corpo e à sexualidade e tornar-se
como anjos. As passagens bíblicas mais citadas pelos autores que seguem esse
modelo, ou seja, Clemente Alexandrino e Orígenes, são Gal 3,28 e Lc 20,36, além
de Mc 12,25 e Mt 22,30. Clemente é a expressão patrística daquele platonismo
retrabalhado na primeira fase do cristianismo que, a partir do dualismo de
corpo e alma, convidava os cristãos a fugirem do mundo e, portanto,
refugiarem-se no deserto. Clemente, Zorzi nos lembra, é o primeiro pai da Igreja
que conecta Gen 1,27b (homem e mulher que ele os criou) a Gen 1,26-27a (à
imagem de Deus) usando Gal 3,28 (não há mais homens ou mulheres) como chave
interpretativa. Essa leitura permite afirmar e atribuir a imagem de Deus à
mulher, mesmo que considere apenas as habilidades espirituais que, segundo ele,
são assexuadas. A razão dessa limitação deriva da abordagem platônica de
Clemente e, por causa disso, se recusa a considerar o corpo e as diferenças
corporais como imagem de Deus. Sempre na base do texto Gal 3,28, Clemente
afirma que a imagem de Deus não é masculina, nem feminina. Sendo que somente
Cristo realizou completamente a palavra dita por Deus em Gênesis 1:26,
significa que todos os outros seres humanos são uma imagem da imagem, isto é,
do Logos. Embora Clemente, observa Zorzi (2015, p.99), seja um dos pais da
Igreja em que o uso de metáforas femininas para falar de Deus é mais abundante,
a terminologia da feminilidade é usada para indicar fraqueza.
A teologa italiana Selene Zorzi, citada no artigo
Orígenes
também se move nessa esteira platônica, indicando que o homem feito à imagem de
Deus é o interior, porque Deus não tem corporeidade, e os antropomorfismos das
Escrituras em referência a Deus devem ser entendidos alegoricamente. É
interessante notar a dificuldade de abandonar um modelo filosófico como, neste
caso, o platonismo, para seguir a coerência de um pensamento que se esforça
para permanecer atento ao ouvir a Palavra. É isso que Zorzi destaca quando
Orígenes propõe um caminho espiritual. Embora sejam ideias que:
suponham a feminilidade da
alma perfeita, elas não implicam em Orígenes nenhuma repercussão nos papéis
sociais e nenhuma mudança desses padrões de gênero. Para ele também, de fato, a
mulher em casamento deve ser submissa ao marido [...] Ele compartilha com a
cultura tradicional de seu tempo a ideia de que a mulher da geração é
completamente passiva (Zorzi, p. 115).
Também
neste período, há uma linha neoplatônica de pensamento patrístico levada a cabo
na tradição latina por Tertuliano que, como sabemos, não tem uma visão muito
positiva das mulheres. De fato, ele sustenta que “toda mulher deve andar como
Eva em penitência de luto, para que, com o disfarce de penitência, ela expie
completamente o que deriva de Eva - ignomínia, digo, do primeiro pecado, e o
ódio inerente a ela, a causa da perdição humana”. O estereótipo sexista de que
toda mulher é a Mulher Eva é evidente nesta curta passagem. Como Zorzi aponta,
todo processo de estereotipagem traz não apenas generalização, mas também
deformação. Nesse caso, Eva é culpada pela queda de toda a humanidade. Também
sobre o tema das virgens, que diferiam das mulheres casadas que usavam o véu
nas celebrações litúrgicas, Tertuliano usa e aplica o esquema matrimonial
patriarcal ao impor o véu às virgens.
Na
tradição antioquena, que foi afirmada no século IV, Giovanni Crisóstomo afirma
que homem e mulher compartilham o typos, mas não a mesma morphé.
É o anthropos, portanto, a participar da imagem de Deus e não a morphé.
Para ele, a imagem indica dominação e, portanto, é apenas no homem e não na
mulher. De fato, o homem não é submisso a ninguém, enquanto a mulher é submissa
ao homem. Segundo Crisóstomo, o homem tem uma superioridade natural sobre a
mulher, porque Cristo é a cabeça dos homens e os homens das mulheres; porque
como os homens são a glória de Deus, as mulheres são dos homens. É por isso
que, numa família, apenas um pode comandar. Segundo Zorzi:
toda a tradição antioquena
atribui a Paulo a ideia de que a mulher não é criada à imagem de Deus. [...] Os
antioquenos não acreditam que essa submissão da mulher seja uma consequência do
pecado: seu androcentrismo é diretamente justificado como vontade de Deus,
claramente uma sacralização dos modelos sociais (Zorzi, p. 122).
Os
mesmos padrões androcêntricos que veem o homem liderando a mulher, ainda que
mais sutis, aparecerão nos capadócios. Agostinho, considerado o epígono do
pensamento patrístico ocidental, elabora sua reflexão profundamente marcada
pelo platonismo do século VI. Segundo ele, a imagem de Deus reside na alma e,
consequentemente, as mulheres, em seu corpo, não são capazes de simbolizar essa
imagem de Deus e, portanto, são prescritas para se cobrirem com o véu. A mulher
em seu corpo não é criada à imagem de Deus, mesmo que ela não seja excluída da
imagem redimida. Agostinho acredita que a distinção sexual diz respeito apenas
à corporeidade, porque a alma não tem sexo. Zorzi ressalta que Agostinho apenas
no final de sua vida percebe que o corpo é uma parte estrutural da pessoa e,
portanto, também a sexualidade pode não apenas ter uma função ligada à
procriação, mas deve ser parte integrante da estrutura pessoal humana.
No
contexto do debate sobre a possibilidade de uma mulher ter uma alma ou se ela
participa da imagem de Deus, um contexto explicitado no Concílio de Macon de
585, significativas tornam-se as considerações de um autor anônimo renomeado
por estudiosos como Ambrosiaster, que acreditava que as mulheres não haviam
sido criadas à imagem de Deus. O fato histórico de que, mesmo no século VI
da era cristã, alguém se perguntava sobre um tema como esse, já é
significativo. O mesmo acontecerá no século XVI, quando será a vez dos índios e
mais uma vez será um documento papal que estabelecerá que eles também têm uma
alma[2].
Para Ambrosiaster, portanto, a mulher não pode ter a imagem de Deus porque esta
é ligada ao poder e ao domínio. Um só Deus pode ter criado apenas um homem, e
consequentemente todos os outros seres carnais, incluindo a mulher, derivam
dele. Zorzi ressalta que essas posições misóginas tiveram uma influência
significativa no canonismo da Idade Média. O Decretum de Graziano do
século XII afirmava: “Essa imagem de Deus está no homem, que pode ser o único
do qual todos os outros que têm poder divino derivam, quase seus vigários,
porque somente ele tem a imagem de Deus. Isto é, a mulher não é feita à imagem
de Deus” (Zorzi, p. 141). O Decretum também estabeleceu que mulheres,
como menores, não tinham o direito de acusar alguém em tribunal, não podiam
testemunhar, nem interceder por ninguém, eram excluídas do papel de juízes e de
todos as demais funções relacionadas à advocacia. Zorzi concorda com o estudo
de Gary Macy[3],
que argumenta que o agravamento na discussão sobre as mulheres se tornou
misógino desde a reforma gregoriana e as leis concomitantes sobre o celibato
obrigatório do clero (Pisa, 1135). Para incentivar a continência e o celibato,
as mulheres são cada vez mais marginalizadas, denegridas, e a sexualidade cada
vez mais considerada algo impuro. Por essas razões, os canonistas dos séculos
seguintes insistirão no tema da impureza cultual das mulheres, sustentando, com
Rufino de Bolonha (1150-1191), que as mulheres menstruadas não podem entrar na
Igreja. E assim a igreja, em vez de progredir, remonta dramaticamente ao tempo
do Levítico. Sempre Gary Macy sustenta que os tons misóginos da Igreja do
século XII em relação às mulheres contribuíram para considerar o estado
matrimonial como uma vocação de segunda classe, enquanto o celibato é cada vez
mais considerado o caminho certo para a santidade. Também, neste período
verdadeiramente nefasto, não apenas para as mulheres, mas por toda a caminhada
da igreja, haverá aqueles que argumentarão que as mulheres são menos
inteligentes que os homens, que são menos constantes e sábias que os homens,
além de serem claramente fracas[4].
A interpretação
patrística fornecerá o esquema de referência também para os séculos seguintes.
Argumentos misóginos serão enriquecidos com elementos sexofóbicos. É
interessante notar que, justamente neste período em que a mulher é cada vez
mais denegrida com qualquer tipo de denominação negativa, a reflexão sobre a
exaltação devocional da mulher-anjo é elaborada e difundida, e o que hoje é
chamado de princípio mariano adquire valor. Isso pode ser visto, por
exemplo, na pregação de Bernardo Chiaravalle que, embora não poupe adjetivos
depreciativos em relação à mulher, indicando-a como fraca, saco de lixo,
incapaz de assumir tarefas, por outro lado, exalta o ideal da feminilidade de
Maria, o único representante perfeito do gênero feminino.
A modernidade não acrescentará nada de novo aos argumentos negativos
sobre as mulheres desenvolvidos nos tempos medievais. Zorzi ressalta que a
única diferença será uma mudança de método: “A motivação antropológica e
teológica começa a perder importância e o argumento baseado em papéis sociais
se torna central. Essas discussões terão como objetivo justificar a exclusão da
ordenação sacerdotal” (Zorzi, p. 147). A caça às bruxas e a elaboração da
demonologia devem ser atribuídas ao processo de as mulheres assumirem funções e
papéis cada vez mais emergentes, “especialmente aqueles que se tornaram
prerrogativas exclusivas do ministério ordenado”[5].
Como a ordem sagrada implicaria uma condição de superioridade para as mulheres,
para todas as séries de argumentos medievais de sua suposta inferioridade, elas
devem ser excluídas. Além disso, cresce a ideia de que nenhuma mulher no Antigo
Testamento ou na história da Igreja jamais teria assumido um cargo ministerial
e, portanto, a possível ordenação de mulheres causaria uma interrupção da
tradição. Essa ideia, como podemos ver, que é tão importante no atual debate
sobre a ordenação de mulheres no mundo católico, surge aqui, em um contexto que
compreende mal os dados bíblicos e também uma hermenêutica mais aprofundada. O
sexo feminino é, portanto, considerado um impedimento em si, uma vez que a
sexualidade feminina indica a submissão de natureza. Todas declarações que hoje
não encontram sustentação em nenhum lugar. A partir do século XVII, são
considerados hereges todos aqueles que permitiam que as mulheres tivessem
acesso ao altar. No século XVIII, quando a lei hereditária começou a permitir
papéis do governo para as mulheres, autores eclesiásticos argumentam que a lei
natural o proíbe. “Está claro que a antropologia formulada na Patrística e
retrabalhada na Escolástica continua estruturando o argumento sobre a posição
da mulher até a modernidade”, conclui Selene Zorzi.
[1] Cf. Selene Zorzi, Al di là del “genio femminile”. Donne e genere
nella storia della teologia cristiana. (Roma: Carocci, 2015).
[2] Trata-se da bula papal Sublimis
Deus emitida em 29 de maio de 1537, pelo Papa Paulo III, em que afirma que
os índios são homens, capazes de compreender a fé cristã e condena
explicitamente a escravidão.
[3] Gary Macy, The Hidden for History of Women’s
Ordination: Female Clergy in the Medieval West (Oxford: OUP, 2008), 139.
[4] Um certo Bernardo di Botone (m. 1226), canonista de Parma, atinge o ápice
da estupidez literária desse período, quando chega a dizer: "O que é mais
leve que a fumaça? A brisa. O que mais do que a brisa? O vento. O que mais do
que o vento? Uma mulher. O que mais do que uma mulher? Nada" (relatado por Macy, The Hidden,
118).
[5] Kari Elizabeth Borresen e Adriana Valerio, Donne
e bibbia nel Medioevo (secoli XII-XV). Tra ricezione e interpretazione.
(Trapani: il Pozzo di Giacobbe, 2011), 57.
A violência contra a mulher por conta de escritos baseado na sociedade patriarca vêm perdendo forças,a Igreja católica está reconhecendo que todo somos iguais afinal o celibato é uma forma de castramente quando imposto por uma instituição, porém, Jesu é fruto de uma mãe solteira que foi regeitada ao noivo.Se as mulheres não forem Divinas como Cristo iria ser Deus se frutos feminino?O divino não têm gênero, agora aqui pra nós qual sexo de Deus? Existe? Existem situações adiversas entre ambos sexualidade já está explícito na almas dos seres humanos iluminandos.
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