terça-feira, 26 de dezembro de 2023

UMA COMUNIDADE DE IRMÃOS: E AS IRMÃS?

 




 

Paolo Cugini

É indiscutível que a atitude de Jesus em relação às mulheres está livre do paradigma patriarcal das culturas mediterrâneas. É interessante refletir, então, sobre a recepção de seus gestos e palavras com mulheres pela comunidade cristã dos primeiros séculos. O que acontece na comunidade cristã? Como a mensagem de Jesus é recebida, especialmente a sua maneira de pensar e considerar as mulheres num contexto cultural patriarcal e misógino? Como o cristianismo conseguiu conciliar o diálogo com as culturas grega e romana, que não são muito delicadas, como sabemos, com o papel das mulheres na sociedade? O trabalho mais significativo, nessa perspectiva, é sem dúvida o de Elisabeth Schussler Fiorenza (1990), um estudo aprofundado e já amplamente discutido e absorvido no caminho da teologia feminista, tanto por sua abordagem hermenêutica e epistemológica quanto por sua reconstrução histórica. Para o presente trabalho, tendo como pano de fundo o trabalho de Fiorenza, refiro-me ao estudo mais recente da teóloga espanhola Elisa Estévez Lòpez (2016).

No início do Cristianismo, como as cartas de Paulo nos testemunham, a casa desempenha um papel central na evolução das primeiras comunidades. De fato, é nas casas que as pessoas se reúnem para celebrar a Eucaristia e ouvir a mensagem de Jesus. A casa é por excelência, o espaço em que a mulher dirige o trabalho. Não é por acaso, então, que encontramos mulheres que desempenharam funções de liderança nas primeiras comunidades, porque isso poderia ser interpretado como uma extensão de sua atividade doméstica. Esse aspecto simples, porém delicado, que implicava uma gestão igualitária da comunidade, juntamente com o ensino da palavra de Deus, perturbou os valores que fundamentavam a estrutura da antiga sociedade mediterrânea, que via a mulher trancada em casa com a intenção de educar as crianças. Não é por acaso que Tácito e Plínio o Jovem, catalogaram o Cristianismo como um corruptor de costumes e propagador de superstições depravadas e desequilibradas. A conduta da comunidade pela mulher foi interpretada como um desafio à autoridade do pai da família, uma ameaça que poderia levar à desintegração social, à subversão de valores. Por causa dessas tensões, segundo Elisa Lopez:

na organização cristã a matriz familiar não se perdeu, mas se adaptou ao modelo patriarcal e kyriarchal estabelecido, garantindo assim uma adaptação ao meio ambiente e oferecendo uma área de proteção adequada para se defender dos falsos doutores[1].

 Apesar do esforço das mulheres em manter a estrutura igualitária de participação, de acordo com os testemunhos que nos chegam das cartas pastorais (1-2 Timóteo e carta a Tito), as comunidades foram reorganizadas pela designação de autoridades masculinas locais - sacerdotes e bispos (cf. Tt 1,5,7) - que, de acordo com o modelo dos pater familias, precisavam cuidar da sã doutrina e limitar comportamentos ambíguos que pudessem causar desconforto da comunidade em relação ao mundo exterior. Desde o início, portanto, o espaço reservado para as mulheres na comunidade era uma questão crucial, um ponto de passagem fundamental, provocando uma hierarquia de exclusão na vida das igrejas. Mulheres de classes ricas sentiram a atração pelas primeiras comunidades justamente por causa das possibilidades de autonomia que as mulheres exerciam nelas. Para lidar com a crescente independência das mulheres ricas, que se enriqueceram com os muitos homens que morreram na guerra, foi aprovada uma lei para evitar a concentração de riqueza nas mãos femininas. Sêneca e Plutarco haviam enfatizado repetidamente a necessidade de as mulheres permanecerem submissas aos maridos, de cultivar as virtudes típicas das mulheres, ou seja, boas esposas e mães, caladas e afastadas da vida pública. A nova religião, portanto, com o espaço que oferecia às mulheres nos lares, tornou-se uma fonte de atração, por um lado, de preocupação por outro, que exigia uma intervenção firme, que será um dos principais temas das cartas pastorais.

Elisa Lopez sustenta que, para entender melhor a dinâmica cultural implementada nas cartas pastorais, também é importante usar os princípios enfatizados pela sociologia do desvio: “Os rótulos usados ​​para relatar as categorias de desvio manifestam a estrutura de poder da sociedade e informam quem são os responsáveis pela elaboração e imposição de certas regras que apresentem outras como desviantes” (Lopez, p. 30). As cartas pastorais são escritas por aqueles que vivem no centro, por representantes da sã doutrina, por aqueles que têm interesses específicos a defender. 1 Tim 4,3 e 2 Tim 3,6 indicam como desviante um grupo de mulheres, principalmente viúvas, que reivindicam um papel mais ativo na comunidade e optam por viver como ascetas, promovendo esse estilo de vida. A resposta muito dura, sem meias medidas, encontrada em 1 Tm 2,8-15, diz de uma adaptação das comunidades por seus líderes ao ethos patriarcal preocupado em manter as diferenças sociais entre homens e mulheres, entre os que comandam e os que devem ficar submissos e devem obedecer. O autor das cartas pastorais pretende silenciar aquelas mulheres que ousaram ensinar aos homens publicamente, quebrando um pilar da cultura patriarcal que governa a ordem das coisas. Por esse motivo: "A mulher aprenda em silêncio, em plena submissão" (1 Tim 2, 9). Uma pergunta torna-se necessária a essa altura: essas declarações estão em continuidade com o Evangelho? Jesus teria dito as mesmas coisas? Ele também se curvaria ao padrão patriarcal em algum momento ou produziria uma subversão de valores? Pessoalmente, acho que a última opção é a certa.

Segundo Lopez, embora as comunidades cristãs vivessem em um clima cultural muito crítico em relação a elas por causa do comportamento das mulheres, “o autor das cartas compartilhava amplamente as crenças e as convicções do ambiente circunstante sobre a primazia masculina na organização social e religiosa” (Lopez, p. 34). As preocupações de definir adequadamente os novos limites sociais e religiosos refletem-se na ansiedade de que as mulheres usem roupas apropriadas, comportando-se com responsabilidade, conforme for conveniente (1 Tim 2,10). Essas mesmas questões polêmicas contra os maus trajes das mulheres, o excesso de ostentação da fisicalidade, as críticas ao uso de joias, roupas caras e sinais de riqueza também encontramos na leitura pagã do segundo século, especialmente em Políbio e Juvenal. Sublinhar esse aspecto literário é ajudar a entender as afirmações encontradas nas cartas pastorais, que não deixam dúvidas sobre a origem da cultura patriarcal generalizada. Nesses autores latinos do século II, que não apenas representam o conteúdo cultural de sua época, e que influenciarão a reflexão nas comunidades cristãs do segundo século, encontramos argumentos sobre o tema das mulheres que serão retomadas na reflexão patrística e que, em muitos casos, influenciará o pensamento cristão posterior.

A sociedade androcêntrica e patriarcal identifica nas características do corpo feminino a prova da inferioridade da mulher, sendo irracional, instável e incapaz de se dominar. Pelo contrário, os homens são vistos como magros e quentes, e consequentemente racionais, com habilidades de autocontrole superiores e completamente perfeitas. A crença compartilhada nas sociedades mediterrâneas antigas é que uma mulher precisa da intervenção de um homem. A autoridade masculina, à qual as mulheres devem se submeter em silêncio, garante seu autocontrole. É nesse contexto que é possível entender o significado das palavras de 1 Tim 2, 11s, nas quais o autor convida as mulheres a se submeterem totalmente ao homem e ao silêncio.

Embora sempre represente uma ameaça à ordem social, o poder de dar à luz, controlado pelos homens, e a autoridade exercida sobre elas no casamento, capacitam as mulheres como membros que se adaptam à organização social e, de acordo com a carta a Timóteo, também à organização eclesial (Lopez, p. 50).

A literatura latina antiga enfatiza a diversidade de corpos entre homens e mulheres para justificar a diversidade dos espaços sociais ocupados por eles. Além de Sêneca, Xenofonte e Plutarco, é sobretudo Filone Alexandrino a explicar como o espaço público é para os homens, enquanto os espaços domésticos para as mulheres. Como já vimos, o autor das cartas pastorais conta com essa cultura patriarcal generalizada, recorrendo também ao apoio dos dados das Escrituras, especialmente em dois pontos. A primeira carta a Timóteo afirma que, na ordem da criação, o primeiro a ser formado foi Adão e somente mais tarde Eva. Por esse motivo, as mulheres não podem ter a pretensão de ensinar aos homens. O segundo argumento das escrituras sustenta que não foi Adão quem foi enganado pela cobra, mas Eva. As consequências desses testemunhos bíblicos são imediatas. De fato, “na própria natureza feminina está escrito que estas são mais inclinadas que os homens a pecar e, portanto, a se ligarem a falsos mestres, dando fé a doutrinas que as distanciam dos deveres que tradicionalmente pertencem a elas como esposas e mães” (Lopez, p. 50).. É com argumentos semelhantes, apoiados pelos textos das Escrituras e pelos autores latinos competentes, que as mulheres são proibidas de ensinar em público e, portanto, o silêncio absoluto lhes é imposto na comunidade cristã.

Apresentando os Atos de Paulo e Tecla[2], Elisa Lopez mostra que as Pastorais não foram a única resposta da comunidade cristã ao mundo cultural circunstante sobre o papel das mulheres. Tecla, como Paulo, é uma missionária itinerante dotada do ministério da Palavra. Desde o início, ela aderiu à prática da continência como um caminho de perfeição na vida cristã. Segundo o texto, esse foi o principal motivo que provocou a acusação de agitador e corruptor de costumes contra Paulo, cuja culpa teria sido impor a escolha do celibato a outras mulheres, impedindo-as de acessar ao casamento. Tecla enfrentará o martírio duas vezes, na expulsão de sua cidade natal e entrando em conflito com sua mãe, que decidirá sua sentença de morte. A pregação de Tecla desperta grande alegria na casa de Trifena e fortalece os ouvintes na casa de Hermes. Não é a primeira vez que Tecla ensina diante de uma comunidade: isso já aconteceu em Antioquia. A palavra feminina proferida em público por Tecla se afirma como uma virtude, contradizendo, como vimos, a cultura dominante. Precisamente por esse motivo, porém, ela é condenada à tortura e Tecla se proclama serva, mas apenas de Deus. A história apresenta Tecla como uma mulher forte:

capaz de opor-se à pressão social e demonstrar com fatos que essa visibilidade no espaço público e na virtude não são incompatíveis entre si, que autonomia e exemplaridade são companheiros de viagem, que ascetismo e integridade apertam as mãos (Lopez, p. 61).

Lopez também destaca como as mulheres emancipadas e ricas que reivindicaram um papel mais ativo nas comunidades cristãs, encontraram em Tecla um paradigma de discipulado muito sugestivo. Além disso, Elisa Lopez destaca como a história aumenta a solidariedade das mulheres, vinculando a Tecla a diferentes grupos de referência que a apoiam e incentivam. Com ela e suas servas, ela parece constituir uma pequena comunidade cristã no estilo de muitas outras que existiam. Tecla, que iniciou seu trabalho em estreita conexão com Paulo, se caracterizará cada vez mais como uma mulher autônoma e ativa, independente da autoridade apostólica. Ela será batizada por si mesma, decidirá continuar pregando antes de Paulo sugerir, enfrentará os perigos com coragem, incentivará espaços alternativos da vida feminina em comum. Diferentemente do que é descrito nas cartas pastorais, a experiência religiosa de Tecla se tornou uma fonte de aquisição de autoridade. “Ao desafiar a ordem cívica sacralizada - diz Elisa Lopez - ela se tornou um sujeito individual no processo de equiparar os homens” (Lopez, p. 65). Processo que, como sabemos, será recompensado com a vida.

 



[2] Os Atos de Paulo e Tecla são um texto cristão escrito em grego que narra os atos e a pregação de Paulo de Tarso e seu discípulo Tecla de Icônio.

domingo, 24 de dezembro de 2023

O PASSADO COMO PRETEXTO

 




 

Paolo Cugini

Estava falando o outro dia com um meu amigo por telefone e me chamou atenção uma coisa. Enquanto eu estava partilhando a minha vida presente, os trabalhos pastorais na nova paroquiam, o trabalho como professor na faculdade, ele ficou lembrando somente os velhos tempos que foram. Logo não percebi o teor do diálogo, mas depois, pensando a esta conversa, fiquei matutando dentro de mim e me questionando: porque será que esta cara falou somente do seu passado? Será que não tem nada de bom no seu presente? Qual é o seu problema?

Ainda hoje assistimos a situações deste tipo não apenas em conversas entre amigos, mas também em situações políticas e sociais. Lembro o papo furado de um candidato a prefeito de uma das cidades em que passei nestes anos de Bahia. Toda vez que pegava no microfone, seja ele qual for o contexto, sempre fazia questão de citar a construção daquilo que ele pomposamente chamava de “O maior prédio escolar da Bahia”. Anos de administração publica pífia e amiúde corrupta, eram justificados somente com a referência a um passado glorioso que não existia mais, conseguindo a enganar o presente do povo pobre, com um discurso vazio feito de lembranças passadas. Quanta gente vive desfrutando o próprio passado de glória! Quanta gente se sentou sobre as cinzas quentinhas deu um passado glorioso, ou até heroico, mas que depois não correspondeu a um presente do mesmo teor. Quanta gente se acomodou sobre os heroísmos da própria juventude, sobre as conquistas realizadas no passado, mas que depois não tiveram continuidade, acomodando-se no sofá da vida, vivendo de lembranças do tempo que foi e que nunca será mais. Quantas pessoas encontrei que estufam o peito falando das lutas sociais realizadas no passado quando eram pobres lascados e hoje estão com o bolso cheio! Quantos fantasmas encontramos nas praças das nossas cidades, fantasmas de pessoas que já eram e que não são mais, pelo simples fato que renunciaram a lutar, a viver o próprio presente, satisfeitos das migalhas que ganharam com o passado de glória. Quantas pessoas aprenderam a preencher o vazio da própria vida com as lembranças do tempo que foi renunciando a viver o próprio presente, a saborear a novidade da vida!

O problema é que o passado não volta e, sobretudo, não existe, pois existe somente o presente. Quem vive só de lembranças não consegue saborear a força e a novidade do presente e, em outras palavras, não consegue viver uma vida autêntica. Esta reflexão tem também um sentido evangélico. De fato, já o profeta Isaias convidava o povo a esquecer do passado para se concentrarem na vida presente, que Deus estava querendo realizar. O mesmo Paulo na carta aos Filipenses dizia: “Por causa de Cristo tudo o que eu considerava como lucro, agora considero como perda” (Fil 3,8). É no presente da nossa vida que Deus vem ao nosso encontro. A atenção aos sinais dos tempos que o Senhor coloca na nossa vida para nos mostrar o Caminho, exige uma constante atenção ao presente da história. Quem vive com a mente constantemente virada ao passado, não consegue perceber a passagem do Senhor no presente da vida e, assim, fica endurecendo o coração, se tornando resistente à Palavra de Deus, insensível à ação do Espírito Santo. Sobretudo, porém, quem vive fora do tempo, perde uma ocasião propicia para se converter e colocar a própria vida na trilha que o Senhor traçou.

Quantas vezes nas paróquias em que passei, nas comunidades que encontrei, deparei com situações como esta! Quantas vezes nas paroquias e nas comunidades de base encontrei pessoas com a cabeça virada no passado, incapazes de colher a novidade da presença do Senhor na história! Quantas discussões, incompreensões por causa disso, pela incapacidade crônica de escutar a novidade, amarrados num passado que, graças a Deus, nunca irá voltar. Somos humanos e humano é o medo da novidade presente. A vida espiritual deveria servir a isso, ou seja, a caminhar de cabeça erguida, fitando a glória do Senhor ressuscitado que está na nossa frente, para que no nosso presente possamos colocar sinais da sua presença. A vida espiritual se realiza no diálogo cotidiano como o Senhor da vida e da história que aponta a novidade do caminho que precisamos percorrer. Que o grito do Senhor que encontramos no livro da Apocalipse: “Eis que faço nova todas as coisas” possam encontrar discípulos e discípulas acordados e não dormindo sobre os sonhos do passado, mas atentos para os novos desafios que o Senhor coloca na nossa frente.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

AKEDIA: O MAL OBSCURO

 





Paolo Cugini

 

Lembrei nestes dias de um livro de espiritualidade que li alguns meses atrás e que falava de um mal obscuro chamado akedia (é uma palavra grega que, em português, poderia se traduzir com preguiça), que seria uma tristeza profunda da alma, que se manifesta quando a pessoa perdeu o sabor da vida. Esta situação existencial se transforma em preguiça, na falta de vontade de qualquer coisa, levando a vida do jeito que vier. A akedia é a incapacidade de ver no horizonte algo que possa valer a pena de lutar para alcança-lo. Segundo Gabriel Bunge – um mestre espiritual contemporâneo e estudioso da vida monástica - na raiz da acedia está a frustração para um desejo não realizado. E assim a akedia vai se insinuando devagarzinho na alma da pessoa ao ponto de se tornar um estado de vida permanente, imobilizando a pessoa. Este mal espiritual se manifesta na aversão à tudo aquilo que tem a disposição e, ao mesmo tempo, um desejo por tudo aquilo que não é ao seu alcance. Esta situação da alma se manifesta seja na vida matrimonial que religiosa. É o detestar aquilo que se tem – marido, mulher, filhos, etc. - e o desejar aquilo que não tem (outra mulher, marido, casa, situação financeira, trabalho, etc.).  Acontece quando a pessoa não consegue mais vislumbrar no seu presente algo de estimulante e, ao mesmo tempo, se torna incapaz de formular novas motivações, transferindo a própria tensão emotiva em desejos inalcançáveis, fora da realidade e, por isso, a situação se torna frustrante ao ponto da criar um círculo vicioso que amiúde desemboca nas formas depressivas. A akedia é a consequência deste processo de desmanche do eu consciente, pois a frustração chega ao ponto de aniquilar até a capacidade onírica da pessoa, deixando-a totalmente esmagada num presente no qual não se percebe mais nenhum sentido da vida. Segundo Gabriel Bunge não é raro que a akedia, nas suas formas mais agudas, chega até ao ponto do suicídio.

É possível sair desta situação lastimável? A akedia, este mal obscuro da alma, tem remédio? Segundo Gabriel Bunge sim. O primeiro remédio é resistir. Durante o período em que se sente forte a tentação da fuga, da mudança da situação existencial, o primeiro remédio é ficar ai, permanecer com paciência e esperar tempos melhores. Pode ser um remédio ridículo, mas não é. Um dado importante na vida espiritual é a necessidade de suspender qualquer tipo de decisão nos momentos de crise, de instabilidade. Perseverar na própria situação de vida, derrubando toda fantasia de fuga é um grande exercício de ascese, que deve ser acompanhado do esforço constante de levar em frente os compromissos assumidos, também se a vontade é fraca. O trabalho é sem duvido um grande instrumento nos períodos em que a preguiça – akedia penetra na alma. Nestas situações precisa fazer de tudo para não deixar a tristeza tomar conta da alma e, assim, o trabalho é um caminho de saída significativo. A pessoa que vive a akedia precisa de um grande autodomínio, que é um dom do Espírito Santo, que permite à pessoa de não deixar o barco da vida desandar. Nesta perspectiva, percebe-se que a akedia, enquanto ameaça a alma no sentido profundo das suas aspirações, ao mesmo tempo se torna instrumento para aprimorar a própria vontade e reorganizar as motivações da vida andando em busca de novos sentidos, mais conforme à nova situação existencial.

Sem dúvida nenhuma para quem é tomado pela akedia, a oração constante e profunda se torna o clima espiritual propicio que permite a alma não apenas de respirar nestes momentos de sufoco, mas, sobretudo, de captar a presença consoladora do Senhor. “Pesada é a tristeza –dizia o padre Evagrio, grande e profundo pai espiritual do IVº século d. C. – e insuportável a akedia, mas as lagrimas dirigidas à Deus dom mais poderosas de ambas”. As lagrimas são o reconhecimento silencioso da nossa necessidade de sermos salvos. Famosas são as lagrimas de Pedro, ou da mulher pecadora. Pedimos ao Senhor a humildade de derramarmos lagrimas de misericórdia para acolhermos a sua salvação. 

sábado, 2 de dezembro de 2023

COMO FALAR DE DEUS NO MUNDO PÓS-MODERNO?

 



Paolo Cugini

 

 

Mudando a cultura e o contexto cultural deve mudar também a maneira de falar de Deus. Aquilo que aparece com sempre mais evidência é uma cultura da indiferença pela qual todas as posições são iguais, e nenhuma tem o direito de se impor as outras. É a Koiné da tolerância que está sempre mais se difundindo no quadro cultural do relativismo. Se os valores Ocidentais foram varridos pelo fracasso das grandes narrações da modernidade, então agora não existe mais nenhuma autoridade que possa se impor aos outros. Se Deus é colocado no ângulo das pertenças parciais e se é considerado relativo à uma cultura ou tradição, então tudo é colocado no mesmo patamar. Neste novo quadro cultural relativista que abre o caminho a toda forma de pluralismo os grandes problemas da sociedade se resolvem de forma democrática, no redor de uma mesa. A teoria da comunicação de Jürgen Habermas indica que, num debate tipicamente pós-moderno, onde nenhuma autoridade tem moral para impor aos outros a própria posição, o único caminho a ser percorrido consiste no dialogo da forma tal que tudo aquilo que é colocado deve ser entendido por todos. Isso quer dizer que, neste diálogo pós-moderno na busca de uma solução a um problema, qualquer discurso tipicamente religioso deve ser traduzido para que fique inteligível para todos os interlocutores.  

Aprender a dialogar de maneira não autoritária e agressiva, talvez seja um dos grandes desafios que a cultura pós-moderna está levando para o cristianismo, ou melhor, para o catolicismo. Vinte séculos de conversa arrogante exige uma conversão muito dura e difícil, mas necessária e possível, pois não se muda de um dia para o outro. Quem é acostumado a dialogar dando ordens de cima para baixo, tem dificuldade de fazer o pequeno exercício importante da escuta do outro.  É difícil porque por trás do catolicismo estão séculos de intolerância, da incapacidade atávica de lidar com o diferente, com ideias diferentes, com culturas diferentes. A história da Igreja Católica, nesta perspectiva, é assombradora porque é alastrada de paginas terríveis, de imposições de uma fé que exigiria a adesão pessoal, imposições amiúde violentas. Esta violência se tornou ao longo dos séculos herança maldita, forma cultural, mentalidade que moldou a maneira da Igreja se relacionar com o mundo. O filosofo italiano Gianni Vattimo, ao longo da sua obra, dedica diversas páginas para argumentar sobre a maneira da Igreja fazer teologia e como esta seja marcada por um cunho violento, devida a mesma metafisica assumida como esquema referencial. Um pensamento forte não pode que gerar argumentos agressivos e absolutistas, saindo de uma entidade que se acha dona da verdade e pouco disponível ao confronto. Passar séculos alimentando este estilo autoritário, esta maneira unilateral de considerar as coisas, cria um costume que se transforma em mentalidade, em jeito de ser.

A cultura pós-moderna está criando um clima onde não tem muito espaço por posturas arrogantes e autoritárias. Neste clima novo até uma instituição como a Igreja é destinada a mudar de tom se quiser veicular os próprios conteúdos. Hoje em dias não é mais possível falar de Deus com o dedo na cara, ou impondo uma moral. A cultura pós-moderna exige um discurso mais manso, delicado, atento ao interlocutor e, por isso, exige uma grande capacidade de escuta. Além do mais, nesta época pós-moderna é difícil pensar de anunciar o Evangelho somente esperando nos próprios perímetros os interlocutores, mas é necessário sair, entrando nos perímetros dos outros. Esta saída fora enfraquece a força dos argumentos e provoca a capacidade da escuta atenta e desinteressada, pois qualquer forma de interesse é considerada com suspeita. É preciso sair da complexidade das estruturas e amiúde dos documentos, para voltarmos á simplicidade dos evangelhos. Uma fé simples numa sociedade complexa: este é o grande desafio.

 Talvez estamos vivendo numa época que favorece mais do que nunca o estilo do Evangelho: é bom pensar nisso.

 

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

O AMOR

 




Pe Paolo Cugini

 

O amor é o dom mais precioso que uma pessoa possa receber. O amor não é algo ao nosso alcance, que podemos conseguir com os nossos esforços humanos, ou que podemos adquirir com o dinheiro. O amor não é fruto de cálculo, de uma maquinação. O amor podemos somente acolhê-lo ou recusá-lo. O amor é como um trem que desde sempre almejamos, mas que passa na hora que menos esperamos: se não subir, nunca mais voltará. O amor não olha na cara, não pergunta a idade, nem se importa com a aparência: entra e pronto. O amor não entra na vida das pessoas perguntando a conta do banco ou tipo do trabalho: o amor não se importa com isso. O amor é romântico e não racional, é vida ao estado puro. O amor não é covarde, mas sim ousado. O amor é participação da vida de Deus, pois o amor vem de Deus.

 

Não é amor, então, a troca de parceiros. Não é amor arrumar alguém para não querer sentir a dor da solidão, ou para esquecer alguém. Não é amor fazer sexo para preencher uma carência. Não é amor arrumar alguém para se sentir igual aos outros. Não é amor também arrumar um parceiro/a para fazer uma família, pois o amor não tem finalidade. Não é amor arrumar alguém que não gosta, mas esperando que um dia vá gostar.

 

O amor é único e para sempre. Não tem dois amores na vida, nem três, mas um. Por isso, a unidade vai de braços dados com o amor. O amor é eterno e nunca passa e ninguém tira do coração. Vive conosco para sempre, pois, como nos ensina a Bíblia, o amor é mais forte do que a morte (Pintadas-Bahia, 2011).

 

 

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Mês da Consciência Negra: maior URGÊNCIA é ser Antirracista!

 




"COITADISMO" dos NEGROS

- 1837: Primeira lei de educação - Negros NÃO podem ir à escola.

- 1850: Lei das terras - Negros NÃO podem ser proprietários.

- 1871: Lei do ventre Livre - Quem nascia livre?

- 1885: Lei do sexagenário - Quem sobrevivia para ficar livre?

- 1888: Abolição (atentem, foram 388 anos de escravidão).

- 1890: Lei dos Vadios & Capoeiras - Os que perambulavam pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada, iriam pra cadeia. Eram mesmo "livres"? Dá para imaginar, qual era a cor da população carcerária, daquela época? Você sabe a cor predominante, nos presídios hoje?

- 1968: Lei do Boi - PRIMEIRA lei de cotas! Não, não foi para negros, foi para filhos de donos de terras, que conseguiram vaga, nas escolas técnicas e nas universidades (volte e releia sobre a lei de 1850!!!)

- 1988: Nasce nossa ATUAL CONSTITUIÇÃO. Foram necessários 488 anos, para se ter uma Constituição, que dissesse que Racismo é Crime! Na maioria das ocorrências, se minimiza o racismo, enquanto injúria racial e nada acontece.



- 2001: Conferência de Durban, o Estado reconhece, que terá que fazer políticas de reparação e ações afirmativas. Mas, não foi porque acordaram bonzinhos! Não foi sem luta. Foram décadas de lutas, para que houvesse esse reconhecimento! E olha que, até hoje, tem gente que ignora, hein!

- 2003: Lei 10639, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir, no currículo oficial da Rede de Ensino, a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Que convenhamos, não é cumprida, né?

 

- 2009: PRIMEIRA Política de Saúde, da População Negra. Que prossegue, sendo negligenciada e violentada (quem são as maiores vítimas da violência obstétrica?), no sistema de saúde.

- 2010: Lei 12288 - Estatuto da Igualdade Racial. Em um país que se nega a reconhecer, a existência do racismo.

- 2012: Lei 12711 - Cotas nas universidades. A revolta da casa grande, sob um falso pretexto meritocrático.




...

Nossa sociedade, é racista, e ainda escravocrata, e essa linha do tempo, tá aí pra evidenciar.

As Cotas NÃO SÃO PRIVILÉGIOS, mas Sim, uma CORREÇÃO, por Tantos Infortúnios Passados, pelos Afrodescendentes.

 

Enquanto Houver Um(a) Irmão (ã), Sofrendo Qualquer Tipo de Injustiça Social, Nossa Comunhão Não Será Perfeita.

 

De: Gisele Machado

(Com Adaptações).

domingo, 22 de outubro de 2023

O DEUS QUE É PAI TAMBÉM É HOMEM?

 





Paolo Cugini

A grande tarefa da teologia feminista, expressa em numerosos estudos, consiste em libertar a palavra de Deus da estrutura patriarcal que, antes de ser um modelo religioso, é um modelo cultural e social bem estruturado. É o patriarcado que justifica o sistema familiar que define pais como chefes de família com poder explícito sobre a esposa e os filhos (SAFFIOTI, 2015). 

O próprio patriarcado estende, em nível social, a definição de papéis específicos para homens e mulheres, homens que sempre ocupam posições dominantes das quais as mulheres são excluídas. O sistema patriarcal, portanto, elabora um processo de desigualdade entre homens e mulheres, criando uma situação cultural constante de submissão de mulheres a homens. O patriarcado, assim entendido, não é apenas um produto social, mas encontrou apoio no mundo religioso até os dias atuais. De fato, o Ocidente cristão "produziu uma série de relações desiguais de poder; Deus como Pai governa o mundo, santos padres governam a Igreja, pais clericais governam os leigos, homens governam mulheres, maridos esposas e filhos e, finalmente, a humanidade governa a criação " (CAAR, 1991, p. 93). 

Nesse ponto da discussão, o pensamento feminino suspende a reflexão para se perguntar: o Deus Pai tem a ver o que com esse sistema opressivo? É a vontade de Deus que as mulheres sejam submissas aos homens? É possível pensar de maneira diferente sobre Deus e seu relacionamento com a criação e as criaturas? Mais uma vez: é possível libertar a palavra de Deus de formas antropomórficas, que ao longo dos séculos, fizeram de Deus um ser cada vez mais masculino às custas do mundo feminino, com todas as consequências daí decorrentes? Se é o sistema patriarcal que descreve a identidade de Deus, a teóloga Mary Daly tem razão quando diz: "se Deus é homem, então homem é Deus" (DALY, 1990, p.27). 

Novamente no livro mencionado, refletindo sobre as consequências da assimilação do modelo patriarcal pela igreja, a teóloga estadunidense Mary Daly mostra como os dogmas e artigos de fé emitidos tendem a propor a estrutura bilateral da relação homem-mulher, que justifica o modelo de submissão, tornando-o credível na sociedade civil. Portanto, não é simplesmente uma questão de entender um modelo social específico que foi estruturado ao longo dos séculos e que justifica as relações binárias de submissão e dominação, com todas as consequências da violência e abuso que todos conhecemos. 

Não é por acaso que, depois que as massas trabalhadoras do século passado se afastaram da Igreja devido à sua identificação com o poder político e econômico, encontrando-se, portanto, nem representadas nem protegidas, hoje muitas mulheres, que no ocidente atingiram um nível cultural significativo, não mais se veem representadas por uma estrutura religiosa patriarcal que justifica a inferioridade de um sexo em outro e a consequente submissão e, por isso, afastam-se dela. 

O problema é entender de que lado Deus está e se é realmente que justifica esse sistema de relações injustas ou se ocorreram interpolações culturais, que mudaram a interpretação em uma certa direção, a saber, a direção patriarcal. Nesse ponto, torna-se extremamente importante, não apenas para as mulheres, mas também para os homens, ouvir as reflexões das teólogas feministas que, em várias ocasiões e de maneiras diferentes, releram o texto bíblico com essas questões significativas. É possível, então, libertar a palavra de Deus do patriarcado, organizado por meio de uma série de relações de subordinação e exclusão? "Como podemos dizer o relacionamento de Deus com o mundo - Elisabeth Green se pergunta - para não reproduzir relacionamentos hierárquicos entre pessoas e principalmente homens e mulheres?" (GREEN, 2015, p. 27). Ainda seguindo Green, que estudou em profundidade este tema em várias pesquisas, tomamos o Antigo Testamento como um ponto de referência para compreender alguns aspectos que o pensamento masculino não nos permite observar.

 Se lermos atentamente o texto de Êxodo 3: 13-15, no qual Deus, depois de manifestar seu nome, acrescenta: “Você dirá aos israelitas: O Senhor Deus de seus pais, Deus de Abraão, Deus de Isaque, Deus de Jacó, ele me enviou para você. " De como a história realmente vai, percebemos que esse versículo não justifica a abordagem patriarcal. "Se olharmos para a narração das origens de Israel, descobrimos que ela não apresenta uma identificação simples entre Deus e a ordem patriarcal, pois isso está arranhada em três pontos importantes: paternidade, sucessão, protagonismo das mulheres" (GREEN, 2015, p. 48). Na história de Abraão, por exemplo, o fluxo dos relacionamentos dos pais é interrompido pela ordem de Deus para abandonar a casa do pai. Tudo isso é muito semelhante a uma relativização dos laços familiares de Deus, um sentimento confirmado pelo relacionamento com seu filho Isaac, sancionado por seu sacrifício, que passa por um vínculo e uma desligação, entendido como a libertação de Isaac da necessidade de paternidade (RECALCATI, 2013, p. 34). Elisabeth Green observa que tudo isso acontece não em resposta à palavra paterna, mas a uma palavra divina sem conotações paternas, senão aquelas que lhe foram atribuídas mais tarde. "Portanto, a ordem patriarcal - continua Green - não é simplesmente confirmada: Abraão é introduzido em outra ordem: a da promessa" (GREEN, 2015, p. 49).

Também é interessante notar a questão da sucessão que, diferentemente de como a imaginamos, na história patriarcal, a herança patrilinear não ocorre através do primogênito, mas na direção oposta. De fato, não é o primogênito de Abraham Ishmael que herda as promessas, mas Isaac, que é o primogênito não de Abraão, mas de Sara. O mesmo acontece com Jacob, o favorito da mãe, que herda a promessa enquanto é o segundo filho, roubando a primogenitura de Esaú. Existe, portanto, uma ordem patriarcal que a palavra de Deus parece ignorar, fazendo as promessas passarem por caminhos diferentes daqueles marcados pela cultura dominante. Enquanto a cultura patriarcal ignora a presença de mulheres, deixando-as de lado e proibindo-as de falar, a palavra de Deus parece ser diferente.

Muitos estudos de teologia feminista enfatizam o protagonismo feminino nas histórias dos patriarcas. É difícil, de fato, passar despercebida a esterilidade de todas as esposas dos três primeiros patriarcas, Sara, Rebeca e Raquel, esposas de Abraão, Isaac e Jacó, respectivamente. Para Elisabeth Green, esse dado bíblico retomado em outras partes das Escrituras, em vez de indicar que é Deus quem dá vida e não o homem, sublinha que não é o pai que cumpre as promessas. Na verdade, é Deus quem torna Sarah, Rebecca e Rachel capazes de conceber um filho e não seus respeitáveis ​​maridos. O que está em jogo não é tanto a autoria desses homens que, como sabemos, já eram pais por causa da estrutura poligâmica da cultura atual, mas a maternidade das mulheres que Deus escolheu para cumprir suas promessas. Segundo a teóloga Irmtraud Fischer: "Desde o início, a promessa divina relativiza os laços familiares e o relacionamento pai-filho, rompe a ordem da sucessão patriarcal e funda a casa de Israel através das mulheres, dando-nos lendas com uma estrutura igualitária" (FISCHER, 2009, p. 241).

Também interessante nessa perspectiva, como o nome que Deus revela a Moisés em Êx 3,14, na verdade não é um nome, mas um verbo mais um pronome, que nada tem a ver com a paternidade. Segundo o filósofo Paul Ricoeur, essa revelação do nome representa "a destruição de todos os antropomorfismos, de todas as figuras e figuras, incluindo a do pai: o nome contra o ídolo" (RICOEUR, 1977, p.502). Juntamente com Robert Con Davis (1993), Elisabeth Green argumenta que o tetragrama, sendo escrito de uma maneira e lida de outra, pode ser considerado um texto imperfeito, cuja interpretação nunca é completa, exigindo um esforço contínuo de compreensão. Nesta perspectiva, muitos argumentam que o propósito do nome revelado a Moisés é proteger a incompreensibilidade de Deus, proteger sua identidade de antropomorfismos fáceis e identificações materiais. É por essa razão que algumas teólogas veem a possibilidade de declinar Deus à maneira feminina (JOHNSON, 1999), de falar dele em novos termos, libertando-se, por assim dizer, do esquema patriarcal.

Sempre mantendo o Antigo Testamento como ponto de referência, é importante focar a atenção no tipo de simbolismo colocado em prática para descrever o caminho da eleição e da aliança, que revela a relação entre Deus e o povo de Israel. No que é definido como simbolismo indireto, expresso por exemplo em textos como Êx 6,7 ou Os 11,1, a paternidade divina é social e não biológica. De fato, não há relacionamento parental entre o pai Deus e o filho Israel. Deus não gera Israel e, portanto, somos confrontados com um tipo de paternidade absolutamente desprovida de sexualidade (SARACENO, 2012). O simbolismo direto implementado especialmente nos períodos em que Israel esquece a aliança com Deus, manifesta uma riqueza de versículos nos quais a referência ao gênero feminino é visível. Entre as muitas possíveis, cito o famoso texto de Isaías 49.15, que diz: “Uma mulher pode esquecer o bebê que amamenta, deixa de sentir pena dos frutos do intestino? Mesmo que as mães esqueçam, eu não vou te esquecer". Declinar ao masculino textos como esse é problemático. Ouvir o texto sagrado, desconstruir as estratificações patriarcais, permite trazer tesouros insuspeitos da graça, tesouros com um sabor feminino que enriquecem e dão um novo significado também às leituras masculinas da Palavra. Percebemos que declinar Deus ao masculino não é apenas arriscado, mas enganoso.

 

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

SOBRE A DIREITA CATÓLICA E A SINODALIDADE

 





Romero Venâncio (UFS)

A direita católica brasileira que estudo é representada por um leigo (Bernardo Kuster), um padre (Paulo Ricardo), um bispo (Adair J. Guimarães - Formosa/GO) e um grupo (Centro Dom Bosco do Rio de Janeiro) e como marco temporal o pós-2013. Os acontecimentos políticos e ideológicos de 2013 e o que se seguiu, a presença de Olavo de Carvalho dentro do catolicismo e a nomeação do Papa Francisco. O projeto de estudo tem esse escopo sociológico/teológico e político.

Essa direita católica (que as vezes chamo de "extrema direita" por conta de sua virulência e beligerância na internet) foi crescendo nas redes digitais e tendo grande impacto em dioceses, paróquias e pastorais na última década. Eles traçaram como meta a recuperação de um pensamento conservador na Igreja enquanto reação aos valores modernos. Atacar de maneira deliberada tudo que venha da modernidade é o comum a todos/todas. Do Concílio de Trento ao Papa Pio IX. De Pio X a Pio XII. Formar uma "consciência conservadora" dentro e fora da Igreja.

Três horizontes diretos de ataques foram bem delimitados: o Concílio Vaticano II, a Teologia da Libertação e o papa Francisco. Os ataques são desiguais e combinados. A depender do momento e contexto, a virulência torna-se maior. Neste momento (2022-2023) as baterias se voltam contra o Papa Francisco e o projeto de sinodalidade. Para melhores esclarecimentos sobre o termo "Sinodalidade", recomendo o breve livro: "Sinodalidade: tarefa de todos" de Dom Pedro Carlos Cipolini (editora Paulus, 2021).

O Vaticano II seria origem da Sinodalidade e a eleição do papa Francisco seria a realização perfeita da "conspiração" moderna dentro da Igreja, segundo essa direita católica. Nota-se de cara que a paranoia e teorias da conspiração são crenças constantes que povoam a mente deles. A eleição de Lula, então... Vira delírio apocalíptico. Toda essa situação parece até "irracional" (sentido dado por Lukács no monumental livro: "A destruição da razão") mas não é bem assim. Tem uma racionalidade subterrânea em tudo que a direita católica brasileira faz e pensa.

Atacar o Concílio Vaticano II e sua consequência direta que é o papado de Francisco tem uma lógica nos projetos desta direita atuante nos nossos dias. A fragilidade argumentativa deles perante o mundo moderno é visível em tudo que fazem. O medo de coisas como "relativismo", "feminismo", "socialismo", "ambientalismo", "educação sexual", "diálogo interreligioso" ou "igreja democrática" chega a ser digno de pena. Parecem "montanhas a parirem ratinhos". A saída é sempre recorrer a figura do diabo como categoria explicativa. Aqui mora o ponto fraco e o sectarismo de toda  a direita católica. Recuperam uma "teologia do diabo" completamente anacrônica e carente de fundamentação histórico.

A referência teológica básica que usamos neste momento é um breve e rigoroso livro do teólogo Karl Rahner intitulado: "O cristão do futuro" publicado pela Fonte editorial. O livro tem quatro ensaios todos publicados nos anos 60 durante e depois do Concílio Vaticano II. Os títulos dos quatro textos que fazem o livro são bastantes sugestivos: "A Igreja que muda", "Situação ética numa perspectiva ecumênica", "Os limites da Igreja: contra o triunfalismo clerical e leigos derrotistas" e "O ensino do Concílio Vaticano II sobre a Igreja e a realidade futura da vida cristã". Como percebemos, ensaios bastante atuais e bem ao estilo de Rahner. Nem será preciso dizer e fundamentar porque Karl Rahner e sua teologia são odiados pela direita católica atual.

O ódio da vez dessa gente é o projeto de "Sinodalidade". Para essa direita, a convocação de um sínodo pelo Papa Francisco é uma “afronta à tradição". É mais uma "tática modernista" para entregar a Igreja ao mundo. Primário tudo isto. Um recuo histórico-teológico, podemos ver o primeiro grande projeto sinodal na primeira igreja dos Apóstolos/Apóstolas. Seria cobrar demais desta direita católica saber da primeira Igreja ou da teologia que a fundamenta. A indigência teológica de toda essa gente é notória e vergonhosa. Não passa de puro suco de fundamentalismos.

Para exemplificar a paranoia da vez contra a "Sinodalidade". O tal do Bernardo Kuster está em Roma fazendo o que chama de "cobertura" dos primeiros momentos do Sínodo para o seu canal e para "orientação" de seus seguidores bem ao "estilo Olavo de Carvalho". A primeira deprimente live é intitulada: "DIRETO DE ROMA: O ecumenismo invade a Vigília no Vaticano". A "tese" dele é que a Teologia da Libertação tem como objetivo "sequestrar o Sínodo". Tá tudo lá. Nos 17 minutos da sofrível live vemos toda uma paranoia sobre o que chama de "bastidores do Sínodo". Triste saber que milhares de católicos seguem isto. Lamentável, mas real. Faz parte desta nova e triste face do catolicismo no Brasil.


domingo, 24 de setembro de 2023

PADRE NO MUNDO PÓS-MODERNO

 




 Paolo Cugini

 

1. A conjuntura atual não apresenta um quadro positivo para vida do padre. Os escândalos da pedofilia solaparam a credibilidade do clero. A rapidez das mudanças culturais da pós-modernidade descortina a velhice do sistema eclesial e, sobretudo, a sua incapacidade de se atualizar, de elaborar uma proposta ao passo com os tempos. A cultura pós-moderna, que questiona as formas rígidas de racionalidade, não aceita mais as atitudes autoritárias, típicas das estruturas que se formaram na época medieval. O mundo caminha sempre mais na direção do diálogo democrático e quem tem dificuldade a sair das formas rígidas do pensamento corre o risco de ficar de fora do contexto. Enquanto até poucas décadas atrás o padre era uma figura respeitada e referência moral do povo, hoje, neste novo quadro sócio-cultural, o padre é uma figura ambígua, pouco crível e parte de uma estrutura que dia após dias perde de credibilidade.

2. O padre vive esta época com grande angústia, pois ele é ao mesmo tempo parte da estrutura rígida da Igreja e também parte desta cultura pós-moderna em continua mudança. De um lado, o padre se sente continuamente solicitado a ser fiel a uma estrutura na qual acredita, pois é nela que amadureceu a própria escolha de vida; do outro, percebe todo dia a urgência de uma mudança radical e o sofrimento pela lerdeza da Instituição a abraçar este caminho de mudança. O padre no diálogo cotidiano com as pessoas que encontra é solicitado a oferecer respostas a problemas que ele não vive na própria pele. Além do mais, o conteúdo que ele tem a disposição para orientar as pessoas não é atualizado, pois é fruto de uma elaboração conceitual de uma época que não tem mais a ver conosco. E, assim, o padre se encontra a toda hora num rumo cego, sem saída: sabe que o Evangelho de Jesus é o Caminho certo que a humanidade deve percorrer para realizar uma existência mais humana, mas, ao mesmo tempo, percebe que os conteúdos elaborados pela Instituição do qual ele é fiel servidor tem pouco a ver com a demanda e os questionamentos dos seus interlocutores.

3.  Acho extremamente importante entender este elemento da atualização, pois mexe com um dato fundamental do cristianismo, que é a vida no Espírito. De fato, Jesus não pronunciou um conjunto de dogmas rígidos e infalíveis, mas sim uma proposta viva par os homens e as mulheres de todos os tempos. Nesta história, o Espírito Santo tem um papel fundamental, pois é graça a Ele que a Palavra de Jesus é atualizada nos novos contextos culturais. Existem períodos na história da humanidade e, sem dúvida, o nosso que estamos vivendo é um deles, aonde é visível a tensão entre Espírito e Instituição, entre Carisma e Poder. O ideal seria o equilíbrio entre as duas forças, mas este equilíbrio é difícil alcançar em tempo de crise, que exige capacidade de resposta à altura da situação. É nessa altura que o padre deveria exercer um papel importante, pois ele vive a contato com o povo – pelo menos deveria – e por isso sente na própria pele as mudanças culturais que necessitam de respostas imediatas. Infelizmente, quando a Igreja elabora um documento sobre os temas da atualidade, raramente o padre é interpelado para expor suas opiniões. Quem faz os documentos da Igreja são pessoas que tem pouco contato com o povo, pessoas que vivem dentro de palácios, que conversam entre si sem entender bem o que se passa no mundo. Não é de estranhar, então, se os documentos oficiais da Igreja são uma citação contínua de documentos passados, tentando de adaptá-los e nem sempre com sucesso, ás novas exigências. O padre verdadeiro, aquele que ama Deus e vive a contato com o povo, sofre demais por esta distância entre a mensagem da Igreja, que deveria atualizar o Evangelho á luz do Espírito Santo e os problemas reais. O padre percebe que no Evangelho tem uma força explosiva, têm indicações suficientes para oferecer respostas uteis às pessoas que toda hora o procuram e o questionam sobre os problemas essências da vida. Ao mesmo tempo, porém, o padre sente que não tem a resposta certa, pois as respostas que ele tem a disposição tem pouco a ver com a realidade que ele vive e que o seu povo vive: fazer o que?

 4. Ser padre neste quadro não é fácil, pois se trata de viver num contínuo questionamento, numa continua ambigüidade. Num mundo em continua mudança o padre deve transmitir a toda hora valores eternos.  Num contexto cultural que, como nos lembra o sociólogo polonês Bauman é preciso não se identificar com algo de fixo, o padre é o sinônimo da estabilidade, daquilo que nunca muda. O padre deveria ser a pessoa capaz de repassar aos seus contemporâneos o testemunho da presença de Cristo, uma presença viva e clara do amor de Deus que se manifestou na sua ação e nas suas Palavras. O problema é que nunca como hoje este testemunho foi tão ofuscado, nunca como hoje a transparência da vida de Jesus foi tão danificada por aquela instituição que deveria manifestá-la. E ai vem o problema do padre, ou seja, daquele homem que sente-se chamado por Deus a viver integralmente o amor de Jesus, mas que percebe a dificuldade de fazer isso dentro uma Instituição que parece ter perdido o rumo, a alegria de servir a Cristo, a força moral de testemunhá-lo. Por isso vários deles, ao longo dos anos, deixam o ministério, outro se afrouxam, outros ainda se entregam aos vícios. Sem dúvida, tem muitos que continuam firmes no ministério servindo a Deus e ao povo com o maior carinho do mundo. Mas é visível o descaso, a perca de terreno, o constrangimento que os padres vivem para não conseguir caminhar ao passo com os tempos. Seria mais fácil e menos doloroso se o padre vivesse preso dentro num mosteiro, num palácio: mas o padre vive no meio do povo e o seu sentir é o sentir real do povo.

Como sair deste círculo viçoso? Que caminho percorrer para ajudar o padre a votar com força a ser testemunho vivo do Evangelho? Como ajudar a Hierarquia eclesiástica que está meio perdida, afastada dos problemas do povo?

domingo, 17 de setembro de 2023

UMA IDADE PÓS-CRISTIANA?

 





Paolo Cugini

Falamos cada vez mais da era pós-cristã. Isso significa que há uma percepção de uma mudança radical que ocorreu e que, em alguns aspectos, ainda não terminou. Afinal, é difícil pensar que em pouco tempo uma cultura que marcou séculos de história desaparecerá no ar, muito rapidamente. De qualquer forma, se é verdade que os sinais do que se definia como um processo de descristianização eram presentes desde o final do século XIX, também é verdade que, nas últimas décadas, essa mudança de época se acelerou significativamente. O fato é que o cristianismo, embora tenha uma influência flagrante na formação da cultura ocidental, agora parece ter ficado sem influência. Se tentarmos olhar de perto esse fenômeno, o qual é ao mesmo tempo histórico e cultural, percebemos que o cristianismo começou a ranger quando as metanarrativas ocidentais começaram a mostrar seus limites, dando lugar ao advento da era pós-moderna. A modernidade e o cristianismo ocidental entraram em colapso e, em alguns aspectos, não é possível apreender as causas de um sem considerar o outro. O aspecto mais interessante, que vale a pena analisar, é o patrimônio de rituais religiosos e de sacralidade que o cristianismo produziu e manifestou não apenas nas celebrações religiosas, mas também na arte e na cultura. Qual é o destino de todo esse patrimônio espiritual, cultural e artístico? A impressão geral que se tem, é que o Ocidente vive essa transição de forma serena, como se nada estivesse acontecendo. Este aspecto, a nosso ver, revela o grau de exteriorização do cristianismo que, mais do que representar a alma de uma cultura, era sobretudo um modo de estar no mundo, ou seja, uma política, um poder entre os poderes, assim como uma estética.

Folheando as páginas dos livros que apresentam as análises e reflexões sobre o fim do cristianismo, impressiona que, a maioria da produção desses textos, ser oriunda, de autores franceses. Na França, mais do que em outros países, a reflexão sobre a descristianização do mundo ocidental, começou na época da Revolução Francesa. Além disso, não poderia ser de outra forma, também porque a Revolução Francesa afetou significativamente o cristianismo, ao ponto de considerar o ano da revolução como o ano zero. Além desse fato, há outro, a saber, a maioria dos autores franceses que analisam o processo de descristianização são tradicionalistas, preocupados, portanto, em salvar o que pode ser salvo, em procurar os defeitos e os culpados, mais do que indicar novos caminhos no contexto que está surgindo. Dentre essas análises, vale destacar a do sociólogo francês Guillaume Cuchet (2018), que, ao invés de buscar a origem da descristianização, indica seus sinais incontornáveis. Segundo Cuchet, os sinais evidentes da descristianização em curso, devem ser identificados na queda vertiginosa de alguns aspectos do culto católico, como a confissão individual e a escassa presença de jovens na missa dominical. Além disso, outros sinais são o fim da prática obrigatória e no silêncio sobre os "fins últimos", ou seja, sobre os mistérios da Igreja sobre o que será depois da morte: inferno, purgatório e paraíso. É especialmente digno de nota que, esses sinais, são indicados com um tom acusatório, e não como um sinal de uma cultura em mudança. De qualquer forma, segundo Cuchet, a causa que incentivou o processo de descristianização deve ser identificada no Concílio Vaticano II, considerado o verdadeiro événement déclencheur sem possibilidade de reparação (Cuchet, 2018, p. 143). São análises que revelam uma dificuldade em aceitar a mudança de época em curso e, sobretudo, considerá-la como definitiva.

 

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

SOBRE UM INTEGRISMO CATÓLICO BRASILEIRO DE PLANTÃO. NOTA

 Recebi este significativo artigo e partilho no meu blog.






Romero Venâncio (UFS)

Neste domingo 10/9/2023 ocorreu no estádio do Morumbi em São Paulo um grande evento organizado por uma série de católicos romanos brasileiros chamado de: "DESPERTA BRASIL" que durou das 6:00 da manhã às 22:00 da noite. O evento que foi coordenado quase todo o tempo por uma figura chamado de Frei Gilson (ilustre conhecido nas redes digitais católicas) e por toda uma série de padres, alguns poucos bispos, algumas freiras e muitos fieis que passaram o dia rezando rosário, terço, louvando delirantemente, pregações agitadas e apelativas, discursos contra aborto, "ideologia da gênero", "comunismo" (seja lá o que isto for...) e sempre uma sorrateira defesa de um tipo de "teocratismo" cristão/católico (do tipo, ah! se o Brasil fosse governado por católicos de verdade). O evento estava (acredito que ainda esteja) no YouTube e transmitido pela TV canção nova (segundo informação dos coordenadores).

O evento tinha a função semelhante das antigas procissões, ou seja, demonstrar a força católica na sociedade e intimar os governantes para fazer política que beneficie a estrutura católica do país. Nítido isto. Quanto mais procuravam disfarçar não falar de política, mais evidente ficava que o evento era político.  Até porque não há o que disfarçar. Está tudo nas redes digitais ou plataformas de formação desta geração de católicos. O negócio era para ser "só religioso" na imaginação da coordenação do mega evento. Impossível num Brasil como este atual e diante do conflito interno que vive o catolicismo na atual quadra histórica. Público e notório e nem precisa ser católico para perceber. Só para termos uma ideia: todos esses religiosos católicos de direita conscientes de seu trabalho dito apostólico, são/foram "bolsonaristas" desde o primeiro momento na largada de 2013.

Em síntese: um palco enorme armado no meio do estádio de futebol, uma aparelhagem de som perfeita que ecoava em todo o campo e um revezamento de músicas "carismáticas" com discurso religioso estridente com intuito de chocar as vezes. A insistência de falar a palavra "inferno" quase em todas as pregações e dedicação ao personagem "diabo/demônio" torna-se sintomático. Parece que eles pularam das redes digitais particulares para o estádio. O que fazem em suas "redes" demonstraram para a multidão. As várias tomadas que a câmara que filmava o encontro fazia das milhares de pessoas que encheram o campo, nos faz ver o quanto estavam correspondendo ao chamado dos prelados, freiras ou leigos que desfilavam com seus discursos inflamados. A maioria de padres, freiras e leigos conservadores que falaram no palco improvisado são bastante conhecidos nas redes digitais. Até acredito que é uma coisa combinada: preparar nas redes o que vai para as ruas. Estudo esse fenômeno da "direita católica" já faz tempo e vejo um crescimento significativo desse movimento. E grande parte, começou nas redes digitais (evito o nome "rede social", porque de "social" têm muito pouco ou nada!).

No título uso um termo que foi comum a cultura francesa dos anos 20 do século passado. Trata-se de "integrismo". Chamo esse movimento desta "nova direita" católica advinda das redes digitais de "integristas". Numa breve e genérica definição do termo: "Disposição de espírito de certos católicos (ditos "da direita") que, pretendendo manter a integridade da doutrina, relutam em se adaptar às condições da sociedade moderna, em aceitar o "progressismo" de outros católicos (ditos "de esquerda"). Não tomemos essa definição como definitiva e nem única. o termo pode ser mais aprofundado (o que não faremos aqui!). Mas serve para uma situação importante que ocorre dentro do catolicismo atual: "manter a integridade da doutrina". Tenho estudado uma série destes católicos nas redes e fora delas (paróquias, dioceses, pastorais, eventos de formação) e este tema é central em todas as formas de conservadorismo católico. Há uma necessidade de voltar a uma "identidade católica". O culto do padre de batina preta todo o tempo, a exposição forçada de símbolos católicos na vida pública (mesmo o país se dizendo laico), a tentativa de volta ao rito tridentino (missa em latim, por exemplo) e todo o cortejo de sinais espalhados na vida pública em que defendem o que é "próprio do catolicismo" vira questão de honra para este fiéis. Como se todos/todas estivessem numa "guerra santa" contra potestades demoníacas em praça pública. Reparem que neste tipo de "integrismo" torna-se necessário sempre criar um inimigo e combatê-lo. Aqui mora o perigo para qualquer vivência democrática numa sociedade minimamente liberal. Atentemos!

Tenho observado a preocupação em momentos de formação destes católicos integristas no Brasil em valorizar e ler bastante documentos de papas como Pio IX, Pio X ou Pio XII (os Papas da defesa intransigente da "identidade católica" contra o mundo moderno). E, obviamente, abominarem figuras como os Papas João XXIII ou Paulo VI e nem precisa dizer o que pensam do Papa Francisco (para uma parte dessa gente, nem Papa ele é!!!). Uma coisa eles não percebem ou não querem, propositalmente, perceber: a história demonstrou que esse projeto é fadado ao fracasso. Esse tipo de "evangelização terrorista" de cunho integrista em sua radicalidade leva a derrota do próprio catolicismo. Esbarra sempre num mundo irreversivelmente moderno (que vive no presente). Ou seja, já dizia um barbudo alemão do Século XIX: "A roda da história não volta para trás". Mesmo que eles arregimentem multidões. Um número grande de "católicos sensatos" (eles existem, por incrível que pareça!) já sabem disto e faz um tempinho e desembarcaram dessa aventura conservadora/integrista que não leva a nada de cristão no mundo contemporâneo desde, pelo menos, o advento do Concílio Vaticano II. Estes sensatos católicos atravessaram o "riacho de fogo" chamado Feuerbach e já estão atravessando outros rios.