terça-feira, 26 de dezembro de 2023

UMA COMUNIDADE DE IRMÃOS: E AS IRMÃS?

 




 

Paolo Cugini

É indiscutível que a atitude de Jesus em relação às mulheres está livre do paradigma patriarcal das culturas mediterrâneas. É interessante refletir, então, sobre a recepção de seus gestos e palavras com mulheres pela comunidade cristã dos primeiros séculos. O que acontece na comunidade cristã? Como a mensagem de Jesus é recebida, especialmente a sua maneira de pensar e considerar as mulheres num contexto cultural patriarcal e misógino? Como o cristianismo conseguiu conciliar o diálogo com as culturas grega e romana, que não são muito delicadas, como sabemos, com o papel das mulheres na sociedade? O trabalho mais significativo, nessa perspectiva, é sem dúvida o de Elisabeth Schussler Fiorenza (1990), um estudo aprofundado e já amplamente discutido e absorvido no caminho da teologia feminista, tanto por sua abordagem hermenêutica e epistemológica quanto por sua reconstrução histórica. Para o presente trabalho, tendo como pano de fundo o trabalho de Fiorenza, refiro-me ao estudo mais recente da teóloga espanhola Elisa Estévez Lòpez (2016).

No início do Cristianismo, como as cartas de Paulo nos testemunham, a casa desempenha um papel central na evolução das primeiras comunidades. De fato, é nas casas que as pessoas se reúnem para celebrar a Eucaristia e ouvir a mensagem de Jesus. A casa é por excelência, o espaço em que a mulher dirige o trabalho. Não é por acaso, então, que encontramos mulheres que desempenharam funções de liderança nas primeiras comunidades, porque isso poderia ser interpretado como uma extensão de sua atividade doméstica. Esse aspecto simples, porém delicado, que implicava uma gestão igualitária da comunidade, juntamente com o ensino da palavra de Deus, perturbou os valores que fundamentavam a estrutura da antiga sociedade mediterrânea, que via a mulher trancada em casa com a intenção de educar as crianças. Não é por acaso que Tácito e Plínio o Jovem, catalogaram o Cristianismo como um corruptor de costumes e propagador de superstições depravadas e desequilibradas. A conduta da comunidade pela mulher foi interpretada como um desafio à autoridade do pai da família, uma ameaça que poderia levar à desintegração social, à subversão de valores. Por causa dessas tensões, segundo Elisa Lopez:

na organização cristã a matriz familiar não se perdeu, mas se adaptou ao modelo patriarcal e kyriarchal estabelecido, garantindo assim uma adaptação ao meio ambiente e oferecendo uma área de proteção adequada para se defender dos falsos doutores[1].

 Apesar do esforço das mulheres em manter a estrutura igualitária de participação, de acordo com os testemunhos que nos chegam das cartas pastorais (1-2 Timóteo e carta a Tito), as comunidades foram reorganizadas pela designação de autoridades masculinas locais - sacerdotes e bispos (cf. Tt 1,5,7) - que, de acordo com o modelo dos pater familias, precisavam cuidar da sã doutrina e limitar comportamentos ambíguos que pudessem causar desconforto da comunidade em relação ao mundo exterior. Desde o início, portanto, o espaço reservado para as mulheres na comunidade era uma questão crucial, um ponto de passagem fundamental, provocando uma hierarquia de exclusão na vida das igrejas. Mulheres de classes ricas sentiram a atração pelas primeiras comunidades justamente por causa das possibilidades de autonomia que as mulheres exerciam nelas. Para lidar com a crescente independência das mulheres ricas, que se enriqueceram com os muitos homens que morreram na guerra, foi aprovada uma lei para evitar a concentração de riqueza nas mãos femininas. Sêneca e Plutarco haviam enfatizado repetidamente a necessidade de as mulheres permanecerem submissas aos maridos, de cultivar as virtudes típicas das mulheres, ou seja, boas esposas e mães, caladas e afastadas da vida pública. A nova religião, portanto, com o espaço que oferecia às mulheres nos lares, tornou-se uma fonte de atração, por um lado, de preocupação por outro, que exigia uma intervenção firme, que será um dos principais temas das cartas pastorais.

Elisa Lopez sustenta que, para entender melhor a dinâmica cultural implementada nas cartas pastorais, também é importante usar os princípios enfatizados pela sociologia do desvio: “Os rótulos usados ​​para relatar as categorias de desvio manifestam a estrutura de poder da sociedade e informam quem são os responsáveis pela elaboração e imposição de certas regras que apresentem outras como desviantes” (Lopez, p. 30). As cartas pastorais são escritas por aqueles que vivem no centro, por representantes da sã doutrina, por aqueles que têm interesses específicos a defender. 1 Tim 4,3 e 2 Tim 3,6 indicam como desviante um grupo de mulheres, principalmente viúvas, que reivindicam um papel mais ativo na comunidade e optam por viver como ascetas, promovendo esse estilo de vida. A resposta muito dura, sem meias medidas, encontrada em 1 Tm 2,8-15, diz de uma adaptação das comunidades por seus líderes ao ethos patriarcal preocupado em manter as diferenças sociais entre homens e mulheres, entre os que comandam e os que devem ficar submissos e devem obedecer. O autor das cartas pastorais pretende silenciar aquelas mulheres que ousaram ensinar aos homens publicamente, quebrando um pilar da cultura patriarcal que governa a ordem das coisas. Por esse motivo: "A mulher aprenda em silêncio, em plena submissão" (1 Tim 2, 9). Uma pergunta torna-se necessária a essa altura: essas declarações estão em continuidade com o Evangelho? Jesus teria dito as mesmas coisas? Ele também se curvaria ao padrão patriarcal em algum momento ou produziria uma subversão de valores? Pessoalmente, acho que a última opção é a certa.

Segundo Lopez, embora as comunidades cristãs vivessem em um clima cultural muito crítico em relação a elas por causa do comportamento das mulheres, “o autor das cartas compartilhava amplamente as crenças e as convicções do ambiente circunstante sobre a primazia masculina na organização social e religiosa” (Lopez, p. 34). As preocupações de definir adequadamente os novos limites sociais e religiosos refletem-se na ansiedade de que as mulheres usem roupas apropriadas, comportando-se com responsabilidade, conforme for conveniente (1 Tim 2,10). Essas mesmas questões polêmicas contra os maus trajes das mulheres, o excesso de ostentação da fisicalidade, as críticas ao uso de joias, roupas caras e sinais de riqueza também encontramos na leitura pagã do segundo século, especialmente em Políbio e Juvenal. Sublinhar esse aspecto literário é ajudar a entender as afirmações encontradas nas cartas pastorais, que não deixam dúvidas sobre a origem da cultura patriarcal generalizada. Nesses autores latinos do século II, que não apenas representam o conteúdo cultural de sua época, e que influenciarão a reflexão nas comunidades cristãs do segundo século, encontramos argumentos sobre o tema das mulheres que serão retomadas na reflexão patrística e que, em muitos casos, influenciará o pensamento cristão posterior.

A sociedade androcêntrica e patriarcal identifica nas características do corpo feminino a prova da inferioridade da mulher, sendo irracional, instável e incapaz de se dominar. Pelo contrário, os homens são vistos como magros e quentes, e consequentemente racionais, com habilidades de autocontrole superiores e completamente perfeitas. A crença compartilhada nas sociedades mediterrâneas antigas é que uma mulher precisa da intervenção de um homem. A autoridade masculina, à qual as mulheres devem se submeter em silêncio, garante seu autocontrole. É nesse contexto que é possível entender o significado das palavras de 1 Tim 2, 11s, nas quais o autor convida as mulheres a se submeterem totalmente ao homem e ao silêncio.

Embora sempre represente uma ameaça à ordem social, o poder de dar à luz, controlado pelos homens, e a autoridade exercida sobre elas no casamento, capacitam as mulheres como membros que se adaptam à organização social e, de acordo com a carta a Timóteo, também à organização eclesial (Lopez, p. 50).

A literatura latina antiga enfatiza a diversidade de corpos entre homens e mulheres para justificar a diversidade dos espaços sociais ocupados por eles. Além de Sêneca, Xenofonte e Plutarco, é sobretudo Filone Alexandrino a explicar como o espaço público é para os homens, enquanto os espaços domésticos para as mulheres. Como já vimos, o autor das cartas pastorais conta com essa cultura patriarcal generalizada, recorrendo também ao apoio dos dados das Escrituras, especialmente em dois pontos. A primeira carta a Timóteo afirma que, na ordem da criação, o primeiro a ser formado foi Adão e somente mais tarde Eva. Por esse motivo, as mulheres não podem ter a pretensão de ensinar aos homens. O segundo argumento das escrituras sustenta que não foi Adão quem foi enganado pela cobra, mas Eva. As consequências desses testemunhos bíblicos são imediatas. De fato, “na própria natureza feminina está escrito que estas são mais inclinadas que os homens a pecar e, portanto, a se ligarem a falsos mestres, dando fé a doutrinas que as distanciam dos deveres que tradicionalmente pertencem a elas como esposas e mães” (Lopez, p. 50).. É com argumentos semelhantes, apoiados pelos textos das Escrituras e pelos autores latinos competentes, que as mulheres são proibidas de ensinar em público e, portanto, o silêncio absoluto lhes é imposto na comunidade cristã.

Apresentando os Atos de Paulo e Tecla[2], Elisa Lopez mostra que as Pastorais não foram a única resposta da comunidade cristã ao mundo cultural circunstante sobre o papel das mulheres. Tecla, como Paulo, é uma missionária itinerante dotada do ministério da Palavra. Desde o início, ela aderiu à prática da continência como um caminho de perfeição na vida cristã. Segundo o texto, esse foi o principal motivo que provocou a acusação de agitador e corruptor de costumes contra Paulo, cuja culpa teria sido impor a escolha do celibato a outras mulheres, impedindo-as de acessar ao casamento. Tecla enfrentará o martírio duas vezes, na expulsão de sua cidade natal e entrando em conflito com sua mãe, que decidirá sua sentença de morte. A pregação de Tecla desperta grande alegria na casa de Trifena e fortalece os ouvintes na casa de Hermes. Não é a primeira vez que Tecla ensina diante de uma comunidade: isso já aconteceu em Antioquia. A palavra feminina proferida em público por Tecla se afirma como uma virtude, contradizendo, como vimos, a cultura dominante. Precisamente por esse motivo, porém, ela é condenada à tortura e Tecla se proclama serva, mas apenas de Deus. A história apresenta Tecla como uma mulher forte:

capaz de opor-se à pressão social e demonstrar com fatos que essa visibilidade no espaço público e na virtude não são incompatíveis entre si, que autonomia e exemplaridade são companheiros de viagem, que ascetismo e integridade apertam as mãos (Lopez, p. 61).

Lopez também destaca como as mulheres emancipadas e ricas que reivindicaram um papel mais ativo nas comunidades cristãs, encontraram em Tecla um paradigma de discipulado muito sugestivo. Além disso, Elisa Lopez destaca como a história aumenta a solidariedade das mulheres, vinculando a Tecla a diferentes grupos de referência que a apoiam e incentivam. Com ela e suas servas, ela parece constituir uma pequena comunidade cristã no estilo de muitas outras que existiam. Tecla, que iniciou seu trabalho em estreita conexão com Paulo, se caracterizará cada vez mais como uma mulher autônoma e ativa, independente da autoridade apostólica. Ela será batizada por si mesma, decidirá continuar pregando antes de Paulo sugerir, enfrentará os perigos com coragem, incentivará espaços alternativos da vida feminina em comum. Diferentemente do que é descrito nas cartas pastorais, a experiência religiosa de Tecla se tornou uma fonte de aquisição de autoridade. “Ao desafiar a ordem cívica sacralizada - diz Elisa Lopez - ela se tornou um sujeito individual no processo de equiparar os homens” (Lopez, p. 65). Processo que, como sabemos, será recompensado com a vida.

 



[2] Os Atos de Paulo e Tecla são um texto cristão escrito em grego que narra os atos e a pregação de Paulo de Tarso e seu discípulo Tecla de Icônio.

domingo, 24 de dezembro de 2023

O PASSADO COMO PRETEXTO

 




 

Paolo Cugini

Estava falando o outro dia com um meu amigo por telefone e me chamou atenção uma coisa. Enquanto eu estava partilhando a minha vida presente, os trabalhos pastorais na nova paroquiam, o trabalho como professor na faculdade, ele ficou lembrando somente os velhos tempos que foram. Logo não percebi o teor do diálogo, mas depois, pensando a esta conversa, fiquei matutando dentro de mim e me questionando: porque será que esta cara falou somente do seu passado? Será que não tem nada de bom no seu presente? Qual é o seu problema?

Ainda hoje assistimos a situações deste tipo não apenas em conversas entre amigos, mas também em situações políticas e sociais. Lembro o papo furado de um candidato a prefeito de uma das cidades em que passei nestes anos de Bahia. Toda vez que pegava no microfone, seja ele qual for o contexto, sempre fazia questão de citar a construção daquilo que ele pomposamente chamava de “O maior prédio escolar da Bahia”. Anos de administração publica pífia e amiúde corrupta, eram justificados somente com a referência a um passado glorioso que não existia mais, conseguindo a enganar o presente do povo pobre, com um discurso vazio feito de lembranças passadas. Quanta gente vive desfrutando o próprio passado de glória! Quanta gente se sentou sobre as cinzas quentinhas deu um passado glorioso, ou até heroico, mas que depois não correspondeu a um presente do mesmo teor. Quanta gente se acomodou sobre os heroísmos da própria juventude, sobre as conquistas realizadas no passado, mas que depois não tiveram continuidade, acomodando-se no sofá da vida, vivendo de lembranças do tempo que foi e que nunca será mais. Quantas pessoas encontrei que estufam o peito falando das lutas sociais realizadas no passado quando eram pobres lascados e hoje estão com o bolso cheio! Quantos fantasmas encontramos nas praças das nossas cidades, fantasmas de pessoas que já eram e que não são mais, pelo simples fato que renunciaram a lutar, a viver o próprio presente, satisfeitos das migalhas que ganharam com o passado de glória. Quantas pessoas aprenderam a preencher o vazio da própria vida com as lembranças do tempo que foi renunciando a viver o próprio presente, a saborear a novidade da vida!

O problema é que o passado não volta e, sobretudo, não existe, pois existe somente o presente. Quem vive só de lembranças não consegue saborear a força e a novidade do presente e, em outras palavras, não consegue viver uma vida autêntica. Esta reflexão tem também um sentido evangélico. De fato, já o profeta Isaias convidava o povo a esquecer do passado para se concentrarem na vida presente, que Deus estava querendo realizar. O mesmo Paulo na carta aos Filipenses dizia: “Por causa de Cristo tudo o que eu considerava como lucro, agora considero como perda” (Fil 3,8). É no presente da nossa vida que Deus vem ao nosso encontro. A atenção aos sinais dos tempos que o Senhor coloca na nossa vida para nos mostrar o Caminho, exige uma constante atenção ao presente da história. Quem vive com a mente constantemente virada ao passado, não consegue perceber a passagem do Senhor no presente da vida e, assim, fica endurecendo o coração, se tornando resistente à Palavra de Deus, insensível à ação do Espírito Santo. Sobretudo, porém, quem vive fora do tempo, perde uma ocasião propicia para se converter e colocar a própria vida na trilha que o Senhor traçou.

Quantas vezes nas paróquias em que passei, nas comunidades que encontrei, deparei com situações como esta! Quantas vezes nas paroquias e nas comunidades de base encontrei pessoas com a cabeça virada no passado, incapazes de colher a novidade da presença do Senhor na história! Quantas discussões, incompreensões por causa disso, pela incapacidade crônica de escutar a novidade, amarrados num passado que, graças a Deus, nunca irá voltar. Somos humanos e humano é o medo da novidade presente. A vida espiritual deveria servir a isso, ou seja, a caminhar de cabeça erguida, fitando a glória do Senhor ressuscitado que está na nossa frente, para que no nosso presente possamos colocar sinais da sua presença. A vida espiritual se realiza no diálogo cotidiano como o Senhor da vida e da história que aponta a novidade do caminho que precisamos percorrer. Que o grito do Senhor que encontramos no livro da Apocalipse: “Eis que faço nova todas as coisas” possam encontrar discípulos e discípulas acordados e não dormindo sobre os sonhos do passado, mas atentos para os novos desafios que o Senhor coloca na nossa frente.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

AKEDIA: O MAL OBSCURO

 





Paolo Cugini

 

Lembrei nestes dias de um livro de espiritualidade que li alguns meses atrás e que falava de um mal obscuro chamado akedia (é uma palavra grega que, em português, poderia se traduzir com preguiça), que seria uma tristeza profunda da alma, que se manifesta quando a pessoa perdeu o sabor da vida. Esta situação existencial se transforma em preguiça, na falta de vontade de qualquer coisa, levando a vida do jeito que vier. A akedia é a incapacidade de ver no horizonte algo que possa valer a pena de lutar para alcança-lo. Segundo Gabriel Bunge – um mestre espiritual contemporâneo e estudioso da vida monástica - na raiz da acedia está a frustração para um desejo não realizado. E assim a akedia vai se insinuando devagarzinho na alma da pessoa ao ponto de se tornar um estado de vida permanente, imobilizando a pessoa. Este mal espiritual se manifesta na aversão à tudo aquilo que tem a disposição e, ao mesmo tempo, um desejo por tudo aquilo que não é ao seu alcance. Esta situação da alma se manifesta seja na vida matrimonial que religiosa. É o detestar aquilo que se tem – marido, mulher, filhos, etc. - e o desejar aquilo que não tem (outra mulher, marido, casa, situação financeira, trabalho, etc.).  Acontece quando a pessoa não consegue mais vislumbrar no seu presente algo de estimulante e, ao mesmo tempo, se torna incapaz de formular novas motivações, transferindo a própria tensão emotiva em desejos inalcançáveis, fora da realidade e, por isso, a situação se torna frustrante ao ponto da criar um círculo vicioso que amiúde desemboca nas formas depressivas. A akedia é a consequência deste processo de desmanche do eu consciente, pois a frustração chega ao ponto de aniquilar até a capacidade onírica da pessoa, deixando-a totalmente esmagada num presente no qual não se percebe mais nenhum sentido da vida. Segundo Gabriel Bunge não é raro que a akedia, nas suas formas mais agudas, chega até ao ponto do suicídio.

É possível sair desta situação lastimável? A akedia, este mal obscuro da alma, tem remédio? Segundo Gabriel Bunge sim. O primeiro remédio é resistir. Durante o período em que se sente forte a tentação da fuga, da mudança da situação existencial, o primeiro remédio é ficar ai, permanecer com paciência e esperar tempos melhores. Pode ser um remédio ridículo, mas não é. Um dado importante na vida espiritual é a necessidade de suspender qualquer tipo de decisão nos momentos de crise, de instabilidade. Perseverar na própria situação de vida, derrubando toda fantasia de fuga é um grande exercício de ascese, que deve ser acompanhado do esforço constante de levar em frente os compromissos assumidos, também se a vontade é fraca. O trabalho é sem duvido um grande instrumento nos períodos em que a preguiça – akedia penetra na alma. Nestas situações precisa fazer de tudo para não deixar a tristeza tomar conta da alma e, assim, o trabalho é um caminho de saída significativo. A pessoa que vive a akedia precisa de um grande autodomínio, que é um dom do Espírito Santo, que permite à pessoa de não deixar o barco da vida desandar. Nesta perspectiva, percebe-se que a akedia, enquanto ameaça a alma no sentido profundo das suas aspirações, ao mesmo tempo se torna instrumento para aprimorar a própria vontade e reorganizar as motivações da vida andando em busca de novos sentidos, mais conforme à nova situação existencial.

Sem dúvida nenhuma para quem é tomado pela akedia, a oração constante e profunda se torna o clima espiritual propicio que permite a alma não apenas de respirar nestes momentos de sufoco, mas, sobretudo, de captar a presença consoladora do Senhor. “Pesada é a tristeza –dizia o padre Evagrio, grande e profundo pai espiritual do IVº século d. C. – e insuportável a akedia, mas as lagrimas dirigidas à Deus dom mais poderosas de ambas”. As lagrimas são o reconhecimento silencioso da nossa necessidade de sermos salvos. Famosas são as lagrimas de Pedro, ou da mulher pecadora. Pedimos ao Senhor a humildade de derramarmos lagrimas de misericórdia para acolhermos a sua salvação. 

sábado, 2 de dezembro de 2023

COMO FALAR DE DEUS NO MUNDO PÓS-MODERNO?

 



Paolo Cugini

 

 

Mudando a cultura e o contexto cultural deve mudar também a maneira de falar de Deus. Aquilo que aparece com sempre mais evidência é uma cultura da indiferença pela qual todas as posições são iguais, e nenhuma tem o direito de se impor as outras. É a Koiné da tolerância que está sempre mais se difundindo no quadro cultural do relativismo. Se os valores Ocidentais foram varridos pelo fracasso das grandes narrações da modernidade, então agora não existe mais nenhuma autoridade que possa se impor aos outros. Se Deus é colocado no ângulo das pertenças parciais e se é considerado relativo à uma cultura ou tradição, então tudo é colocado no mesmo patamar. Neste novo quadro cultural relativista que abre o caminho a toda forma de pluralismo os grandes problemas da sociedade se resolvem de forma democrática, no redor de uma mesa. A teoria da comunicação de Jürgen Habermas indica que, num debate tipicamente pós-moderno, onde nenhuma autoridade tem moral para impor aos outros a própria posição, o único caminho a ser percorrido consiste no dialogo da forma tal que tudo aquilo que é colocado deve ser entendido por todos. Isso quer dizer que, neste diálogo pós-moderno na busca de uma solução a um problema, qualquer discurso tipicamente religioso deve ser traduzido para que fique inteligível para todos os interlocutores.  

Aprender a dialogar de maneira não autoritária e agressiva, talvez seja um dos grandes desafios que a cultura pós-moderna está levando para o cristianismo, ou melhor, para o catolicismo. Vinte séculos de conversa arrogante exige uma conversão muito dura e difícil, mas necessária e possível, pois não se muda de um dia para o outro. Quem é acostumado a dialogar dando ordens de cima para baixo, tem dificuldade de fazer o pequeno exercício importante da escuta do outro.  É difícil porque por trás do catolicismo estão séculos de intolerância, da incapacidade atávica de lidar com o diferente, com ideias diferentes, com culturas diferentes. A história da Igreja Católica, nesta perspectiva, é assombradora porque é alastrada de paginas terríveis, de imposições de uma fé que exigiria a adesão pessoal, imposições amiúde violentas. Esta violência se tornou ao longo dos séculos herança maldita, forma cultural, mentalidade que moldou a maneira da Igreja se relacionar com o mundo. O filosofo italiano Gianni Vattimo, ao longo da sua obra, dedica diversas páginas para argumentar sobre a maneira da Igreja fazer teologia e como esta seja marcada por um cunho violento, devida a mesma metafisica assumida como esquema referencial. Um pensamento forte não pode que gerar argumentos agressivos e absolutistas, saindo de uma entidade que se acha dona da verdade e pouco disponível ao confronto. Passar séculos alimentando este estilo autoritário, esta maneira unilateral de considerar as coisas, cria um costume que se transforma em mentalidade, em jeito de ser.

A cultura pós-moderna está criando um clima onde não tem muito espaço por posturas arrogantes e autoritárias. Neste clima novo até uma instituição como a Igreja é destinada a mudar de tom se quiser veicular os próprios conteúdos. Hoje em dias não é mais possível falar de Deus com o dedo na cara, ou impondo uma moral. A cultura pós-moderna exige um discurso mais manso, delicado, atento ao interlocutor e, por isso, exige uma grande capacidade de escuta. Além do mais, nesta época pós-moderna é difícil pensar de anunciar o Evangelho somente esperando nos próprios perímetros os interlocutores, mas é necessário sair, entrando nos perímetros dos outros. Esta saída fora enfraquece a força dos argumentos e provoca a capacidade da escuta atenta e desinteressada, pois qualquer forma de interesse é considerada com suspeita. É preciso sair da complexidade das estruturas e amiúde dos documentos, para voltarmos á simplicidade dos evangelhos. Uma fé simples numa sociedade complexa: este é o grande desafio.

 Talvez estamos vivendo numa época que favorece mais do que nunca o estilo do Evangelho: é bom pensar nisso.