segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

BIBLIOGRAFIA DOS ULTIMOS TRES ARTIGOS

 





BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005 b.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. Lisboa: Edições 70, 1999.

FEST, Joachim. Il Sogno Distrutto. La Fine dell'Età delle Utopie. Milano: Garzanti, 1992.

FIGAL, Günter. Nietzsche: un ritratto filosofico. Roma: Donzelli Editore, 2002.

FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. A alegria do evangelho: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Canção Nova, 2016.

FUKUJAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

HABERMAS, Jürgen.  O discurso filosófico da Modernidade. Lisboa, Dom Quixote, 1998.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. V.1.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da vida pública. São Paulo: Unesp ed. 2014.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes, 2004.

KERENVI, Karl. Dioniso. Milano: Adelphi, 1992.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

LYOTARD, F. A condição pós-moderna, Lisboa: Ed. Gradiva, 2003.

 

MARION, Jean Luc. O visível e o revelado. São Paulo: Loyola, 2010

 

NIETZSCHE, Friedrich. Obra Incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

NIETZSCHE. F. O nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Um livro pra todos e pra ninguém. São Paulo, Companhia das Letras, 2018.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Martin Claret, 2020.

PIKETTY, T. A economia da desigualdade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

REALE, G. Radici culturali e spirituali dell’Europa. Per una rinascita dell’”uomo europeo”. Milano: Cortina Raffaello ed., 2003.

REALE, Giovanni. Plotino e o neoplatonismo. São Paulo: Loyola, 2008.

RORTY, Richard. Verdade e progresso, São Paulo: Manole, 2005.

TAYLOR, Charles. As fontes do self. A construção da identidade moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 1998.

TAYLOR, Charles. Para uma ética do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2004.

TAYLOR, Charles. A ética da autenticidade. São Paulo: É Realizações, 2011.

TAYLOR, Charles. A era secular. Portugal: Instituto Piaget, 2012.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

VAN DER LEEUW, Gerardo. Fenomenologia della religione. Milano: Boringhieri, 2017.

VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

VATTIMO, Gianni. Para Além da interpretação. O significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. São Paulo:  Martins Fontes, 2002.

VATTIMO, Gianni. Crer que se crê. É possível ser cristão apesar da Igreja? São Paulo: Vozes, 2018.

VATTIMO, Gianni. Essere e dintorni. Milano: La nave di Teseo, 2018b.

A VIDA PÓS MODERNA COMO ESCUTA DA REALIDADE E FUGA NO PRESENTE

 




Como está se delineando a vida neste novo contexto cultural? Como viver numa realidade que não oferece mais um quadro de referência e orientação? Com quais critérios as pessoas podem tomar decisões importantes quando falta uma estrutura de valores fixa? Nesse nível do discurso, mais que apontar ideias certas e seguras, podemos humildemente esboçar algumas veredas que estão se apresentando no horizonte cultural pós-moderno.

Uma primeira mudança significativa consiste em buscar as soluções perante situações conflitantes, não mais se apoiando sobre sistemas metafísicos cuja fundamentação objetiva encontra-se no além, fora do mundo fenomênico e ao alcance da vida real, mas utilizando uma forma dialógica, sinodal. Como vimos nos parágrafos anteriores, uma característica fundamental da cultura pós-moderna consiste no fim da racionalidade metafisica, naquele tipo de mentalidade que buscava apoio para a confirmação das próprias decisões. O filósofo alemão Jürgen Habermas há anos vem desenvolvendo uma reflexão que busca uma nova objetividade para orientar as decisões a serem tomadas, sobretudo quando envolvem a sociedade, que não são mais fundamentadas numa ontologia de tipo metafisico, mas sim na busca de uma convergência entre as pessoas envolvidas na discussão. Na sociedade moderna, as religiões (e em especial o Cristianismo) estão num contraste crescente com as estruturas da racionalidade, que se emancipam e cada vez mais se diferenciam e se especializam. Habermas, do ponto de vista empírico, observa uma tendência à subjetivação e à privatização da fé, que perde a função de imagem do mundo capaz de fornecer uma interpretação unitária do ser e apresentar um sentido do todo, capaz de estabilizar as contingências inevitáveis, justificando-as à luz de um imperscrutável plano de salvação da humanidade e de todo o cosmos (HABERMAS, 1998). Com a passagem ao pensamento moderno, as interpretações religiosas do mundo, assim como acontece com todo passo evolutivo crucial, “são desvalorizadas no seu sistema categorial, seja qual for o seu conteúdo, uma vez que não é mais esta ou aquela razão que não convence, mas o tipo de razão utilizada” (HABERMAS, 1998, p. 89). A esses elementos de contraste com a racionalidade moderna, que são todos eles comuns também às concepções metafísicas do mundo, poder-se-ia acrescentar um outro, que é, por sua vez, específico das religiões: o fato de ligarem a interpretação global, indissoluvelmente verídica e normativa, a uma oferta de sentido capaz de propiciar consolo diante das situações individuais de negatividade insuperável uma tarefa que, segundo Habermas, a filosofia pós-moderna jamais assumiria.

Fora da igreja, fora do governo e fora da vida doméstica, existe um espaço para as pessoas discutirem sobre vida. Habermas chama isto de esfera pública onde ideias são examinadas, discutidas e argumentadas. O espaço dessa esfera pública tem diminuído sob a influência das grandes corporações e do poder da mídia. Uma implicação óbvia é que isto é uma estratégia de divisão e conquista. Um recente evento interessante é o surgimento da Internet como uma nova esfera pública. Habermas argumenta que qualquer um que usa a linguagem, presume que ela pode ser justificada em quatro níveis de validade:

a.                  Que o dito é inteligível, ou seja, a utilização de regras semânticas compreendidas pelos outros;

b.                 Que o conteúdo do que é dito é verdadeiro;

c.                  Que o emissor se justifica por certos direitos sociais ou normas que são invocadas no uso de idioma;

d.                 Que o emissor é sincero no que diz, não tentando enganar o receptor.

Isto é o que o Habermas classifica de comunicação não distorcida (HABERMAS, 2012, p. 134). Quando uma das regras é violada, ou seja, o locutor está mentindo, então a comunicação está distorcida. Esta teoria de comunicação tem muitas implicações, inclusive uma definição de verdade de caráter universal. E em cada um desses temas expressa-se a característica de Habermas, herança explícita da Escola de Frankfurt, isto é, a abordagem dita crítica a respeito das teorias, das ciências e do próprio presente, construindo, assim, um conhecimento engajado e revolucionário. Seguindo esse eixo e introduzindo uma nova visão a respeito das relações entre a linguagem e a sociedade, em 1981 Habermas publicou aquela que é considerada sua obra mais importante: A teoria da ação comunicativa.

Para Habermas a linguagem serve como garantia da democracia, uma vez que a própria democracia pressupõe a compreensão de interesses mútuos e o alcance de um consenso. Contudo, para que a linguagem assuma este papel democrático, no pensamento habermasiano é necessário que a comunicação seja clara. “O conceito do agir comunicativo pressupõe a linguagem como médium de uma espécie de processos de entendimento ao longo dos quais os participantes, quando se referem a um mundo, manifestam de parte a parte pretensões de validade que podem ser aceitas ou contestadas”. (HABERMAS, 2012, p. 191)

Para Habermas, a distorção de palavras e de sua compreensão impede uma comunicação efetiva, o consenso e, portanto, a prática efetiva da democracia. O uso correto das palavras, entretanto, só ocorreria quando fosse abandonado o uso exclusivo da razão instrumental – ou iluminista – a razão utilizada pelo sujeito cognoscente ao conhecer a natureza com o fim de dominá-la, ou seja, a confusão do conhecimento com a dominação, exploração e poder.  Dessa maneira, a razão torna-se um instrumento de uma ciência que, deixando de ser acesso a conhecimentos verdadeiros, torna-se meio de dominação e poder da Natureza e dos próprios seres humanos.  Dessa maneira, torna-se necessária uma razão que não seja instrumento de dominação, mas de democracia: a razão comunicativa. A razão comunicativa, além de compreender a esfera instrumental de conhecimentos objetivos, alcança a esfera da interação entre sujeitos, marcada por simbolismo e subjetivismo, experiências pessoais e a contextualização dialógica de agentes linguísticos. A prática da ação comunicativa não se limita apenas à busca do consenso da democracia, mas também é instrumento para pedagogia, filosofia e muitos outros campos da ação humana. (HABERMAS, 2014)

Outra mudança que nos chama atenção consiste na dificuldade de levar em frente as decisões tomadas, sobretudo aquelas que deveriam ser definitivas. É o para sempre que assusta. Essa mudança percebe-se folheando as páginas dos registros de matrimônio que se encontram nas paróquias: simplesmente despencaram. A mesma atitude se percebe nas vocações religiosas. Os conventos são vazios, os seminários também. Há algumas décadas, como nos ensinou o filósofo canadense Charles Taylor, a identidade pessoal era construída sobre convicções sólidas, alicerçadas em valores que pareciam eternos, inquebrantáveis. Hoje, esse modelo existencial não aguenta mais. O desmoronamento das metanarrações está nos mostrando o caráter fictício dos assim chamados valores eternos que, aos olhos do novo contexto cultural, não são tão eternos. O novo contexto cultural nos mostra que aquilo que era chamado de vocação, produzindo rios de escritos espirituais sobre este aspecto, na realidade trata-se de um fato sociológico. Até a chamada vocação religiosa é fruto de um contexto sociocultural. Esta análise não tira a bondade da existência de tantas pessoas que, ao longo dos séculos, abraçaram este específico estilo de vida, mas simplesmente é possível salientar, graças ao novo contexto que desmascara as construções culturais, que aquilo que era chamado de vocação com um sentido marcadamente espiritual e, por isso, algo que tinha uma proveniência extra fenomênica, que dava a este estilo de vida um marco de definitividade, é o fruto de um específico contexto cultural que molda também o mundo religioso. A fenomenologia da religião nos ensina há anos as interligações entre religião e os vários setores da sociedade (VAN DER LEEUW, 2017).

O fracasso dos sistemas produzidos, seja na época medieval, seja na modernidade, está desmascarando a alegada eternidade dos valores apontados. Esse aspecto abre o caminho para o niilismo de um lado e o relativismo ético do outro. Em âmbito religioso, niilismo e relativismo sempre foram marcados negativamente, mas escondem algo de positivo, que vale a pena analisar. Como nos alertava Nietzsche, o niilismo é a consequência do fim da metafísica, ou seja, daquela forma de pensar o mundo antecipando a realidade, para interpretá-la e colocá-la dentro de esquemas pré-constituídos. O niilismo, assim entendido, não aponta simplesmente o fim dos valores construídos na modernidade, mas indica também um novo caminho. O desmoronamento dos valores da modernidade revela uma maneira errada de abordar a realidade que, forçando a natureza, constrói um mundo e uma realidade fictícia, irreal, tornando a mesma existência irreal e, então, falsa. Dessa maneira, o niilismo não indica apenas o esvaziamento dos valores metafísicos, mas sobretudo, o desmascaramento de uma realidade construída sobre conjeturas. A cultura pós-moderna abre o caminho para uma nova maneira de se relacionar com a realidade, com o cosmo, enfim, uma maneira mais respeitosa. Não precisamos mais viver uma existência moldada em valores eternos, mas simplesmente buscando o bem corriqueiro que brota das relações humanas, do concreto viver. O sentido de valores se descobre vivendo no dia a dia, em contato direto com as pessoas e com a natureza. Acostumados a sacrificar o presente em prol de bens futuros, a sacrificar a vida real no altar do paraíso futuro, ficamos desnorteados perante esta perspectiva: não somos preparados e, por isso, não sabemos para onde ir, nem por onde começar. É estranho pensar que o homem e a mulher não estejam preparados para viver o presente, a realidade corriqueira, mas infelizmente é aquilo que percebemos. Vem à nossa mente as palavras pronunciadas por Nietzsche em “Assim Falou Zaratustra” quando, depois de ter anunciado a morte de Deus e a vinda do super homem, constatando o sarcasmo e a incompreensão das pessoas que escutaram a mensagem, se questiona se talvez o anúncio não foi adiantado demais. (NIETZSCHE, 2018).

Aprofundando o discurso, podemos nos questionar: o que significa viver no presente, escutar a realidade? Do ponto de vista geral, significa aprender a não antecipar o contato com o fenomênico, mas acolhê-lo assim como se oferece à consciência. O momento da elaboração racional deveria acontecer numa segunda fase. É isso que nos ensina o Papa Francisco, quando afirma que a realidade é mais importante do que a ideia.

 A ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço da captação, compreensão e condução da realidade. A ideia desligada da realidade dá origem a idealismos e nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam ou definem, mas não empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio (FRANCISCO, 2016, n. 231-233).

O grande risco que acompanhou ao longo dos séculos o mundo ocidental é a possibilidade de viver um mundo artefato e, por isso, irreal. Os idealismos como construções racionais voltadas a sistemas que organizam a realidade, conforme princípios pré-constituídos, é uma forma de se defender da realidade, percebida como perigo. Este dado cultural é altamente paradoxal, pois nos alerta sobre uma cultura que se estruturou não para viver a realidade, mas para defender-se dela. Como nos lembrou Jean Luc Marion, um dos maiores fenomenólogos da atualidade: “O ser não pode ser pensado que no momento em que se oferece” (MARION, 2010, 46). Acolher o ser, como se manifesta no presente da história, é o único caminho para não deformar a realidade, moldá-la ao nosso gosto, subjugá-la para que realize os nossos desejos. É também, o único caminho que temos para experimentar a realidade que se manifesta no tempo presente. Antes der ser uma ameaça, é um dom.

A intuição de Papa Francisco acenada anteriormente, é bem visível no princípio da encarnação do Verbo. Depois da vinda de Jesus, não é mais possível falar de Deus sem se deparar com a realidade histórica do Verbo encarnado. É a realidade de Jesus que precede qualquer ideia ou ideologia sobre Deus. A teologia só pode ser reflexão a partir da escuta da realidade que se manifestou em Jesus e continua se manifestando através da ação do Espirito Santo na Igreja e fora dela. Quanta teologia foi produzida sem levar em conta este princípio fundamental do Cristianismo. Muita teologia não foi nada mais que ideologia a serviço de interesses particulares. Ainda hoje, toda vez que uma teologia se declara em defesa de valores eternos, imóveis, inalteráveis, fixos uma vez por todos, está se colocando fora da realidade de Jesus, que viveu uma dinâmica histórica feita de nascimento, existência concreta, relações humanas, morte e ressureição. Acompanhar a realidade da encarnação do Verbo significa a humildade de depor as armas filetadas das ideologias cômodas elaboradas num escritório, para se colocar a serviço da vida, que é dinâmica, em movimento e, por isso, sujeita à mobilidade. 

No plano da vida social, a tentativa de viver a realidade presente deveria significar elaborar uma política, uma economia não como projeção de cálculos que devem demostrar um sistema previamente elaborado, mas sim levando em conta as reais condições das pessoas. Como nos lembra o economista francês Thomas Piketty, a desigualdade social é interligada ao sistema econômico dominante (PIKETTY, 2015). Uma economia, que não leva em conta a realidade e o contexto social das pessoas, não pode produzir uma proposta solidária, de partilha entre todos e, ao mesmo tempo, uma política que ajude as pessoas a viverem bem. Enquanto a justiça, o bem e a solidariedade forem considerados conceitos, ideias abstratas, continuaremos a viver mal, a produzir monstros e a destruir o planeta. Mas agora, quando estamos assistindo ao desmoronamento das projeções dos sistemas elaborados no passado, desmoronamentos bem visíveis na eterna crise econômica, na crescente desigualdade social, no contundente colapso ecológico, é possível mudar de rumo, deixando de elaborar projeções que passam por cima da realidade para finalmente focar o nosso interesse no bem da humanidade na sua totalidade, que abrange também o mundo animal e o mundo material. É ainda este desmoronamento que está manifestando a verdade das economias e das políticas produzidas na modernidade, que se revelam ideologias a serviço não da vida do povo, mas de interesses particulares de poucos.

Nesta fase intermediária, que gera ansiedade e insatisfação pela incapacidade de encontrar novas resposta que oriente a vida, a tentação existencial é a fuga. A relativização dos valores absolutos e a perda de sentido do fim, provoca como consequência um esmagamento existencial no presente. Nesse sentido, a tentação da fuga, que acompanha a fantasia da geração pós-moderna, não é num mundo fantasioso, como poderia ter sido na época moderna, mas, pelo contrário, trata-se de uma fuga no tempo presente, um mergulho em tudo aquilo que pode oferecer o instante atual, liberado de toda forma de estrutura metafisica, que forçava a existência e a coletividade a projetar-se num mundo futuro a detrimento do tempo presente. Não é um caso que encontramos, logo após a queda do muro de Berlim, considerado por muitos pensadores como um dos eventos que marcaram o fim da época moderna (VATTIMO, 2002), alguns assim chamados profetas da pós-modernidade que falaram de fim da história (FUKUJAMA, 1992) e do fim da era das utopias (FEST, 1992). Faltando uma estrutura metafísica que justifique valores transcendentes, toda a atenção é dada àquilo que o tempo presente pode oferecer. Enquanto, num tempo, as pessoas se apoiavam sobre valores eternos partilhados pela comunidade, que ajudava as pessoas a levar em frente por toda a vida as decisões tomadas na juventude, agora esse esforço de fidelidade parece sem sentido. Ninguém, de fato, quer mais sacrificar o presente por algo que não se percebe e talvez não exista mesmo. O mundo dos valores espirituais, que fundamentavam as decisões da época moderna, deixa livre o campo para aproveitar ao máximo aquilo que a realidade presente oferece. Essa mudança radical de perspectiva, incide, também na estruturação da identidade pessoal. Bauman sustenta que, no mundo líquido, como ele define a cultura pós-moderna, não é mais possível agarrar-se num único tipo de identidade, como acontecia na modernidade. A rapidez de mudanças do mundo líquido exige a capacidade de um grande espirito de adaptação. O risco é ficar de fora e tornar-se inatual, fora do tempo e do lugar (BAUMAN, 2005).

A inquietação provocada pela rapidez das mudanças torna difícil se apegar a uma única opção de vida e, sobretudo, a levar em frente essa única opção pela vida toda. Papa Francisco, em várias circunstâncias[1], alertou os fiéis sobre a tentação de viver uma vida dupla, seja no matrimônio, seja na vida religiosa. A frustração causada por uma escolha que não satisfaz mais, leva a pessoa a buscar outro caminho mantendo válida, porém, a primeira escolha. Tudo isso, é causado pela necessidade de salvar de um lado a aparência social, do outro, a não causar uma fratura na identidade forte, que exige uma continuidade com as escolhas tomadas. Essa necessidade de salvar a aparência típica da cultura moderna, brota da necessidade de permanecer fiel à única possibilidade de vida escolhida. Talvez seja esse um dos limites daquela proposta que exige das pessoas uma identificação única, pela qual o ser da pessoa é identificado com a tarefa que assume no contexto social em que vive. Se de um lado esta proposta, que moldou o ocidente por muitos séculos, facilita a vivência numa específica sociedade, que assim permite classificar as pessoas e identificá-las, do outro lado, essa identificação, tão estrita, aperta demais a existência, sufocando a liberdade das pessoas, que se sentem forçadas a viver no único modelo escolhido. A fuga desse modelo existencial era, anteriormente, considerada um ato desafiador pela inteira sociedade, porque se sentia questionada no seu alicerce moral. No novo contexto cultural, não apresenta notas tão negativas. De fato, a pós-modernidade, concentrando-se na vida real do tempo presente, ajuda a aliviar a pressão de salvar, a qualquer preço, escolhas que, com o passar do tempo, perdem sentido, visando verificá-las continuamente, buscando novos sentidos a partir das mudanças vivenciadas. Viver no presente significa abandonar as fáceis seguranças oferecidas pelos horizontes metafísicos, mas que lentamente esvaziam o sentido de escolhas realizadas e nunca atualizadas, em prol da coragem de levar responsavelmente em frente a própria vida, renovando em cada momento o rumo da existência pessoal. Nesse sentido, a fuga na realidade como paradigma da pós-modernidade, longe de ser algo negativo, apresenta aspectos positivos. É verdade que uma vida esmagada na realidade presente, perdendo um horizonte de vida mais abrangente, corre o perigo constante de uma deriva materialista. Famosas são, a este respeito, as páginas de Bauman quando analisa o vazio que o consumismo está gerando no mundo líquido. Sem pontos referenciais aos quais se apoiar, a vida pessoal, acostumada a se escorar neste apoio estrutural, preenche sempre mais o vazio com a matéria (BAUMAN, 2008). É também verdade, porém, que o esforço de acolher a realidade como um dom, aprendendo a viver no presente da história permite resgatar aqueles elementos da vida que a tradição ocidental deixou de lado e muitas vezes menosprezou. Talvez seja nesta época que o dionisíaco e o apolíneo podem voltar a viver em harmonia, sem querer que um prevaleça sobre o outro. Uma harmonia alcançada como fruto de uma atenta escuta da realidade mergulhada no presente da vida, mas não esmagada nele. A fuga na realidade presente não significa esquecimento do passado nem recusa de pensar o futuro. Pelo contrário, aprender a escutar a realidade para acolher os dons que ela traz consigo, significa valorizar a experiência que vem do passado, porque no presente da história encontramos traços significativos do tempo que foi. Ao mesmo tempo, a vida no presente, contextualizada na comunidade em diferentes níveis de pertencimento, ajuda a assumir a responsabilidade que as relações humanas exigem. Caminhar no presente da história, levando consigo os ensinamentos do passado rumo a uma meta que não está planejada de antemão, mas que é construída dia após dia, é o sentido desse itinerário. Trata-se, então, de uma fuga do mundo irreal planejado com antecedência, que não permite às pessoas viverem o presente, para finalmente poder sentir na pele o ar da vida real. Mais uma vez, é a este nível que é possível reconstruir a antiga harmonia de apolíneo e dionisíaco,  sentimento e racionalidade, espírito e matéria. É esta harmonia que, respeitando profundamente a realidade da nossa estrutura antropológica, nos ajuda a saborear a novidade que a realidade manifesta a cada dia no tempo presente.



[1] Na homilia do 5 de maio 2017, na capela de Santa Marta, o Papa Francisco falou: “São os rígidos de vida dupla: se mostram belos, honestos, mas quando ninguém os vê, fazem coisas feias. Ao invés, este jovem era honesto, acreditava nisso. Quando falo disso, penso em muitos jovens que caíram na tentação da rigidez, hoje, na Igreja. Alguns são honestos, são bons, devemos rezar para que o Senhor os ajude a crescer no caminho da mansidão”. É interessante notar a ligação intrínseca entre rigidez, típica da formação da cultura moderna, e vida dupla produto negativo da mesma.

 

O DESMORONAMENTO DE UM CASTELO CONSTRUÍDO NA AREIA

 




Uma estrutura cultural tão rígida não podia dar certo. É isso que sustenta o filósofo italiano Gianni Vattimo, que dedicou muito tempo na análise da cultura pós-moderna que, a seu ver, é caracterizada por um processo de desmascaramento do vazio cultural produzido na modernidade. Existe toda uma série de eventos acontecidos nas últimas décadas que comprovam a dissolução da metafísica clássica, o enfraquecimento de um ser apresentado como fundamento único e objetivo da realidade. A queda do muro de Berlim, a crise sistemática do modelo econômico neoliberal, o mundo pluralista em que vivemos, o desmoronamento do mito do progresso ilimitado, fruto maduro do iluminismo setecentesco, o aquecimento do planeta, fruto de um desenvolvimento econômico que desrespeita a natureza: são todos sintomas de um enfraquecimento do ser da metafísica forte de cunho ocidental, que desembocam no niilismo. Na Babel do pluralismo do crepúsculo da modernidade, do desmoronamento das metanarrativas de lyotardiana memória (LYOTARD, 2004), das ideologias fortes centradas sobre verdades absolutas, se multiplicam as narrativas sem um centro e uma hierarquia. “O fim da metafísica, vista como crença em uma ordem fundada, estável, necessária, e objetivamente cognitiva do ser, foi acompanhado, no pensamento e na prática social, pela morte do Deus moral, do Deus dos filósofos” (VATTIMO 1996, p.37).

Pela metafísica clássica que Vattimo critica, a verdade não é nada mais que o fruto de uma projeção subjetiva, idealista, um fato fixo. A esse tipo de verdade, o mundo pós-moderno está dizendo adeus. A reflexão de Nietzsche do anúncio da morte de Deus e do advento do niilismo se encaixa com a análise heideggeriana do fim da modernidade, abrindo o caminho por novas perspectivas filosóficas.  Se, de fato, ao longo dos séculos, a metafísica ocidental tentou reiteradamente apresentar o ser como algo de forte, fundamento objetivo da realidade, ocultando a sua autêntica natureza que é a fraqueza, a tendência ao aniquilamento como todo evento histórico, isso para Vattimo mostra como, na realidade, o niilismo não é algo de extrínseco ao mondo ocidental, a sua cultura e ao seu berço cristão, mas sim é intrínseca. “A metafísica se manifesta, na sua essência, quando chega ao fim e alcança o seu fim precisamente enquanto se revela na sua essência” (VATTIMO 2006, p.64), ou seja, como enfraquecimento, como esquecimento do ser. Os eventos do mundo contemporâneo confirmam esta análise no plano metafísico. Existe uma lógica no desastre que a todos os níveis estão se manifestando, um desastre devido a uma interpretação errada do ser como presença, como algo de fixo e, sobretudo, como algo que o homem pode manipular.   O destino do ocidente não pode que ser marcado pelo caminho do enfraquecimento do ser, caminho que, infelizmente, ao longo dos séculos, deixou um marco profundo na história, o marco da violência. Refletir sobre violência e metafísica parece um paradoxo, mas à luz da análise histórica tão paradoxal não é.

A conatural necessidade à qual corresponde a metafísica, aquela de apreender a arché, está profundamente ligada à hýbris de quem quer entrar em possesso completo da própria existência e, portanto, no final, ao predomínio em nós das leis da sobrevivência, aquelas que “justificam”, em última análise, a violência na qual reside o mal. (VATTIMO, 2004, p. 141)

 A metafísica como fixação rígida do ser produziu sempre um pensamento forte incapaz de acolher as identidades alheias, as diferenças culturais e religiosas. O mundo ocidental é um mundo substancialmente violento e esta violência tem a sua própria raiz na metafísica que até agora a inspirou. Os poderes políticos fortes que se subseguiram ao longo dos séculos no ocidente cristão foram sempre sustentados por uma metafísica forte, que a invés de se colocar a escuta da realidade para responder a ela, sempre tentou antecipá-la e, assim, prendê-la dentro do próprio sistema.  Vattimo não esconde a profunda ligação da Igreja católica e do cristianismo em geral com as estruturas de violência brotadas do seio da metafísica clássica. A defesa que a Igreja faz da lei da natureza para, ainda hoje, defender os seus dogmas em campo moral, e, sobretudo, “a maneira pela qual quer impô-los correspondem a um modo específico de conceber a figura da Igreja no mundo: uma estrutura fortemente organizada em sentido hierárquico, vertical e definitivamente autoritário” (VATTIMO, 2004, p. 145). Tudo isso torna-se evidente na incapacidade crônica da cultura ocidental e, junto com ela, do cristianismo, de acolher as minorias como as pessoas homossexuais, que não se encaixam na estrita norma da natureza elaborada pela metafisica clássica, assimilada também da teologia cristã.

Nessa altura, o abandono da metafísica forte para uma débil deveria ajudar não apenas a Igreja, mas também as estruturas políticas ocidentais a elaborar projetos e morais mais tolerantes e atentas ao pluralismo típico do fim da modernidade.   Para entendermos isso, precisamos realizar um caminho, ou melhor, uma mudança de perspectiva. Se o ser como presença está manifestando todas as suas falhas não apenas no plano teórico, mas sim, sobretudo, no plano histórico e existencial, então é nessa última perspectiva que o ser deve ser de agora em diante interpretado, ou seja, como evento.

Aquilo que o homem tem de específico e que o distingue das coisas é o fato de estar referido à possibilidade e, portanto, de não existir como realidade simplesmente presente. O termo existência, no caso do homem, deve entender-se no sentido etimológico de ex-sistere, estar fora, ultrapassar a realidade simplesmente presente na direção da possibilidade”. (VATTIMO, 1996, p. 25)

 Vattimo recupera o discurso heideggeriano de Ser e Tempo, da existência como Dasein, ser no mundo (HEIDEGGER, 2004). Não é possível entender o ser fora de uma específica dimensão temporal, histórica. Parece ter sido esse o problema maior da filosofia europeia: incapacidade de pensar a historicidade e a vida na sua efetividade. O homem está situado na história de uma forma dinâmica e é somente nesta maneira que deve ser considerado. Se a verdade não pode ser mais o reflexo de uma estrutura eterna do real, um princípio único e unificador, um sistema de pensamento rígido e abrangente da totalidade, então deve ser captada como “uma mensagem histórica que devemos ouvir e a qual somos chamados a dar uma resposta” (VATTIMO, 2004, p. 13). Na perspectiva filosófica de Vattimo, a palavra evento é tão significativa na nossa época como foi para os gregos o termo logos, ou para os cineses, o Tao. De fato, quando não dá para pensar o ser como simples presença por causa do seu enfraquecimento progressivo, só pode aparecer como evento, na sua dinamicidade histórica. É desta forma e somente assim que o ser deve ser entendido, ou seja, como interligado à existência humana. Em outras palavras: o fim da metafísica como presença, provocado pelo desmoronamento dos sistemas fortes elaborados na busca de uma objetividade absoluta, desvenda a realidade do ser e do mesmo homem, que não existe em si e por si, mas somente como relacionamento recíproco. “O ser relaciona-se com o homem enquanto tem necessidade deste para acontecer; e o acontecer não é um acidente ou uma propriedade do ser, mas é o próprio ser. Nem o homem nem o ser podem conceber-se como “em si”, que depois se encontram em relação” (VATTIMO, 1996, p. 116).

O fim da metafísica como busca do fundamento único da realidade, além de manifestar o niilismo como consequência desse projeto, revela ao mesmo tempo a nova possibilidade de pensar o homem assim como ele é, ou seja, dentro do seu dinamismo histórico e existencial. O ser nunca é outra coisa senão o seu modo de se dar na história aos homens de uma determinada época. É exatamente a este nível que se tornam significativas as reflexões de Zygmunt Bauman que dedicou muitas páginas na tentativa de interpretar as nuanças culturais desta nova época. A liquidez é a metáfora que Bauman utiliza para explicar o sentido da pós-modernidade. A crise das ideologias fortes, pesadas, sólidas, típicas da modernidade, produziu do ponto de vista cultural um clima fluido, líquido, leve, caracterizado pela precariedade, incerteza, rapidez de movimento.

 Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade [...] Enquanto os sólidos têm dimensões especiais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos)  a mudá-la. (BAUMAN, 2005, p. 8)

 Se na modernidade as ideologias elaboradas tinham a pretensão de serem abrangentes, exaustivas e, sobretudo orientativas, não é assim pela cultura elaborada na pós-modernidade, na qual tudo flui de um jeito extremamente rápido de uma forma que, aquilo que era certo ontem, hoje não é mais. Neste mundo líquido assistimos, assim, a algumas passagens importantes, que marcam o novo clima cultural.

    A primeira passagem é a seguinte: de uma vida segura para uma vida precária. “A vida liquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante” (BAUMAN, 2005b, p. 8). Se a modernidade oferecia um leque de ideologias fortes, que produziam uma segurança existencial nas pessoas que nelas confiavam, neste mundo líquido não é mais assim. O desmoronamento das metanarrações da modernidade trouxe consigo a perda de pontos referenciais válidos, que pudessem oferecer segurança à vida das pessoas. A precariedade de agora em diante se tornou não apenas um fato cultural, mas sobretudo social, também porque não foram apenas ideologias a desmanchar, mas também estilos de vida, costumes.

As preocupações mais intensas e obstinadas que assombram este tipo de vida são os temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar o caminho de volta. (BAUMAN, 2005b, p. 8)

Precário é o homem que se sente inseguro não apenas para o trabalho, que não é mais fixo, mas também pelo medo das pessoas novas que estão enchendo as cidades ocidentais, pela ameaça do terrorismo, pelo medo de não conseguir acompanhar as novidades tecnológicas. Existe um mundo em contínuo movimento, extremamente rápido que deixa qualquer pessoa na constante preocupação de manter o ritmo das mudanças, de não ficar de fora dos acontecimentos. Essa vida precária, sem nenhum tipo de segurança, que obriga as pessoas a mudar continuamente de situações, é o novo estilo de vida da sociedade líquida.

Uma outra passagem que marca a modernidade líquida é: de uma sociedade que acredita na eternidade, para uma que vive a infinitude (BAUMAN, 2005b, p. 13). A eternidade é sem dúvida um conceito de cunho religioso que, de um ponto de vista filosófico, pode ser colocado entre as ideologias que a modernidade assumiu e que, ao mesmo tempo, orientou a vida dos homens modernos. A infinitude é o tempo presente protelado, esticado. O dia de hoje pode-se esticar para além de qualquer limite e acomodar tudo aquilo que um dia se almejou vivenciar apenas na plenitude do tempo” (BAUMAN, 2005b, p. 15). Não se fala mais de valores eternos, mas sim de eventos que se repetem no tempo. Também porque os valores eternos são fundamentados sobre aqueles princípios metafísicos que na pós-modernidade não encontram mais espaço. O infinito, que substitui o conceito de eternidade, não é de cunho metafísico, mas sim existencial. O infinito pode ser assim entendido como uma série continua de tempos presentes, sem precisar especular improváveis mundos futuros, mas simplesmente aceitar o contínuo movimento do tempo. O tempo fluido pós-moderno não precisa mais de eternidade pelo simples fato de que desmoronou o equipamento conceitual, ou seja, a metafísica, que amparava essa ideologia. Por outro lado, não podemos também sustentar que esta ideia de tempo fluido retoma a velha concepção filosófica do mito do eterno retorno (ELIADE, 1999) ligado à natureza. Nada de filosófico ou de esotérico sustenta a vida do homem pós-moderno, mas sim a exploração paroxística de tudo aquilo que o evento presente pode oferecer.  É a protelação desses eventos que rende o tempo infinito, sem nenhuma ligação com aquilo que o precede e também com o evento sucessivo. Na análise de Bauman, uma característica faz da modernidade líquida algo novo e diferente, comparado ao modelo cultural anterior: o desmoronamento da antiga ilusão moderna, ou seja:

Da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um télos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo de sociedade boa...da ordem perfeita em que tudo é colocado no lugar certo... do completo domínio sobre o futuro. (BAUMAN, 2005, p. 37)

 Talvez seja este o sentido mais profundo, do ponto de vista filosófico, da metáfora da liquidez, que Bauman analisa em várias circunstâncias[1]. A sociedade líquida não desceu do céu, não se produziu do nada, improvisadamente, mas foi o fruto maduro do desmoronamento da modernidade, ou seja, do processo do derretimento dos sólidos formados e elaborados na modernidade. Entre eles, Bauman coloca a filosofia da História, a possibilidade de calcular o futuro a partir dos dados presentes. Nisso ele se aproxima das teorias dos maiores teóricos da pós-modernidade, ou seja, Lyotard (2003), Vattimo (2002), Rorty (2005), que apontam nas ideologias da modernidade o cerne de toda uma elaboração racional que por séculos se esforçou em determinar o futuro da humanidade, pagando o preço salgado de forçar a realidade presente. As ideologias modernas não eram nada mais que o fruto de uma elaboração conceptual desvinculada da realidade e coube à História demonstrá-lo. Bauman, em várias páginas da sua obra, cita eventos que marcaram o século passado e que estão na base do desmoronamento das ideologias modernas. Antes de tudo, o holocausto e o fracasso do modelo econômico liberal proposto no ocidente. As grandes massas migratórias de pobres em busca de condições de vida melhores são a clara manifestação de algo de errado nos cálculos perfeitos dos economistas ocidentais. Ninguém pode calcular o desastre econômico e cultural que a globalização está produzindo.

A terceira passagem que marca o novo contexto cultural é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes. Na modernidade líquida não existem mais valores sociais, mas individuais. Aquilo que na modernidade era considerada tarefa da coletividade, da sociedade, foi transferida para o indivíduo. De agora em diante, vale somente aquilo que interessa ao indivíduo. Ninguém quer gastar mais o seu tempo para que os valores sociais sejam alcançados e realizados: vale somente o interesse individual. É essa a lógica do mercado que afeta tanto a vida política quanto as atitudes da vida corriqueira. “As esperanças de aperfeiçoamento, em vez de convergir para grandes somas nos cofres do governo, procuram o troco nos bolsos dos consumidores” (BAUMAN, 2005, p. 38).



[1] “É por essa razão que o advento da sociedade liquido-moderna significou a morte das principais utopias da sociedade e, de modo mais geral, da ideia de “boa sociedade” (BAUMAN, 2005, p. 19). 

A IDENTIDADE FORTE DA ÉPOCA MODERNA

 




A percepção que recebemos quando prestamos atenção ao desenvolvimento da cultura pós-moderna é a tomada de consciência de que está faltando um esquema de referência que norteia a vida cotidiana. Como nos lembra Charles Taylor: “uma estrutura de referência é aquilo que nos permite dar um sentido à nossa vida espiritual. Não possuir uma estrutura de referência quer dizer cair numa vida espiritualmente sem sentido” (TAYLOR, 1998, p. 32). A estrutura de referência é o marco da cultura moderna ocidental. A identidade pessoal é moldada em valores assimilados desde a infância. Educar uma criança significa fazer de tudo para que ela assimile os valores e as virtudes necessárias para a integração na sociedade. É isso que nós encontramos já na antiguidade grega com a experiência da Paideia da Polis, onde as crianças aprendiam as virtudes necessárias para uma vida socialmente digna. Nesta primeira parte do artigo, queremos oferecer algumas chaves de leitura para entendermos a origem da estrutura do pensamento ocidental que se desenvolveu ao redor de algumas contraposições e, entre elas, vale a pena destacar o dualismo de harmonia e caos que desemboca no dualismo entre razão e sentimento de um lado e o contraste entre espírito e matéria que desemboca no dualismo de corpo e alma do outro. É a partir destas contradições que é possível entender a fonte dos valores e normas éticas que moldaram a cultura ocidental e, em seguida, compreender a crise da sociedade pós-moderna.

A experiência da cultura grega tem na tragédia um ponto de referência incomparável. Segundo Friedrich Nietzsche, o nascimento da Tragédia Grega deve-se sobretudo à dicotomia do apolíneo e do dionisíaco (NIETZSCHE, 2007). O termo dionisíaco vem da figura do deus grego Dioniso, cuja presença deriva da influência das tradições orientais. As festas dionisíacas comportavam danças compulsivas ao fim de alcançar uma forte emoção e a superação do próprio eu, para que pudesse emergir o mesmo si natural, típico do impulso vital, da criatividade, do desejo no seu aspecto mais instintivo. Foi desta maneira que o dionisíaco foi se identificando com instinto, emoção, irracionalidade, sensualidade e criatividade. Por outro lado, o apolíneo é a tentativa de captar a realidade através de construções mentais ordenadas, negando o caos, que é um aspecto típico da realidade, bloqueando desta forma o essencial dinamismo da vida. O espírito apolíneo expressa o componente racional do indivíduo, que vem se contrapondo ao espírito dionisíaco que, por isso, representa o seu contraste. A filologia clássica ao tempo de Nietzsche era convencida de que o mundo da civilização grega fosse caracterizado por um espírito de equilíbrio entre dionisíaco e apolíneo. Enquanto o apolíneo dominava na arte e na escultura, o dionisíaco prevalecia na música e na poesia lírica. Também a religião não ficou fora deste dinamismo. De fato, enquanto no Olimpo reinava a harmonia entre os deuses, do outro lado aconteciam ritos dionisíacos caracterizados pelas emoções e a exaltação entusiástica do sexo.

É possível distinguir na história grega três períodos: no primeiro acontece o milagre da convivência do espírito apolíneo com o dionisíaco, separados entre eles como aparece nas tragédias de Esquilo e Sófocles; no segundo os dois espíritos se harmonizam e no terceiro momento, com Eurípides e Sócrates, o espírito apolíneo prevalece sempre mais. (KERÉNVI, 1992)

Para compreendermos o pessimismo grego, que Nietzsche percebia forte e enraizado mas, ao mesmo tempo, não decadente, Nietzsche reconhece como o homem grego percebe em profundeza a negatividade e a caducidade da existência, mas também como consegue, através do espírito dionisíaco, superar o niilismo que esta atitude comportava para erguer-se através o pessimismo da coragem (FIGAL, 2002). Aquilo que levará a tragédia à decadência será a derrota do dionisíaco. Para Nietzsche os maiores culpados são Eurípides e Sócrates pois exasperam a interpretação racional do mundo, sustentando a compreensibilidade junto com uma otimística positividade – ambos elementos que acabam com o dionisíaco – levando à decadência da tragédia com Eurípides. 

Em suas duas divindades artísticas, Apolo e Dionísio, baseiam-se em nossa teoria de que no mundo grego existe um enorme contraste, enorme para a origem e o propósito, entre a arte figurativa, a de Apolo, e a arte não figurativa de música, que é propriamente a de Dionísio. Os dois instintos, tão diferentes um do outro, andam lado a lado, principalmente em discórdia aberta, mas também se estimulam mutuamente para partes novas e cada vez mais vigorosas, a fim de transmitir e perpetuar o espírito desse contraste, que a palavra comum "arte" resolve apenas na aparência; até que, em virtude de um milagre metafísico da "vontade" helênica, pareçam finalmente acoplados entre si, e nesse acoplamento final eles geram a obra de arte, tão dionisíaca quanto apolínia, que é a tragédia grega. (NIETZSCHE, 2007, p. 79)

A lenta e irrestringível vitória da racionalidade apolínea sobre o sentimento dionisíaco marca de forma contundente a estruturação da cultura ocidental. De agora em diante, podemos dizer que o caos foi ordenado, mas pagando um preço muito alto, ou seja, o desrespeito da realidade assim como ela se manifesta, em favor de um sistema racional tranquilizador. O ocidente moldou-se sobre a escolha arrogante de ter a pretensão de controlar a natureza, de dominar a realidade, identificando de agora em diante o sentimento e as paixões humanas como algo de negativo, sem dúvida inferior se comparado com a força da racionalidade. A tranquilidade oferecida por sistemas racionais que, antecipando a realidade, orientam o destino do mundo, pagou o preço caríssimo de uma vida paralela, na qual as forças criativas são poupadas por serem consideradas perigosas e, sobretudo, nocivas ao sistema. Uma vida tranquila é considerada melhor para as pessoas de uma vida insegura dominada pelos sentidos: essa é a escolha e uma característica fundamental da cultura que se impôs no ocidente.  Assim, essa maneira de pensar a realidade se estruturou desde a época de Platão, se esforçando em dar razão ao caos do mundo fenomênico, elaborando um sistema que permita a firme distinção entre a matéria e o espírito, o céu e a terra, o mundo sensível e o mundo suprassensível (REALE, 2003). De agora em diante, é o espírito que guia a matéria, são as ideias perfeitas e imóveis que alicerçam a existência dos fenômenos móveis e, por isso, carentes e perecíveis. A força dos sistemas filosóficos elaborados no mundo ocidental está toda num pensamento metafísico que molda a realidade móvel a partir de ideias imóveis. Nesse sentido tipicamente ocidental, os valores, as virtudes e a mesma verdade pertencem ao mundo suprassensível, que é imóvel, fixo, eterno, rígido, único, indivisível. A vida moral humana consiste no esforço de traduzir na vida humana sensível os valores eternos imóveis, que norteiam a vida cotidiana e oferecem um sentido. Poucos filósofos se questionaram sobre um ponto fundamental: a realidade na qual mergulham é assim mesmo? Não estamos perante uma grande contrafação? São os valores morais que são eternos ou não são nada mais que o fruto de complicados sistemas racionais produzidos por homens?

Essa estrutura metafísica bastante rígida, toda a detrimento do mundo material, considerado como um produto imperfeito de ideias perfeitas, é a base da antropologia dualista de matiz platônica, que considera o corpo como prisão da alma. A fuga do mundo e o desprezo do corpo, culpado para dificultar a vida da alma, foram elementos que marcaram a espiritualidade do cristianismo ocidental que, desde o começo, foi marcado por uma profunda absorção da filosofia platônica na forma do neoplatonismo plotiniano (REALE, 2008).  A reflexão dos Padres da Igreja dos primeiros séculos do cristianismo está tão imbuída de platonismo, ao ponto que é impossível abordar os textos destes autores sem ter um conhecimento prévio do neoplatonismo que se afirmou no terceiro século da hera cristã. Se é verdade que o ocidente é profundamente marcado pelo pensamento cristão, é também verdade que não existe cristianismo na sua forma filosófica sem levar em conta os grandes sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles. Enquanto o primeiro foi a base da elaboração filosófica de Agostino, que a partir do quinto século dominou a cena cultural por oito séculos, a metafísica aristotélica foi o pano de fundo do grande sistema teológico elaborado por Thomas de Aquino no XIII século, que se impôs até os nossos dias[1]. Tudo isso pra dizer o quanto o ocidente cristão foi moldado pelos sistemas filosóficos gregos, influenciando de forma contundente os conteúdos do Evangelho. Se de fato a ressurreição de Jesus Cristo deveria ter deixado passar uma nova forma de monismo antropológico, no sentido que o corpo vive o mesmo destino da alma, não foi este o anúncio do cristianismo. O menosprezo do corpo foi acompanhado pela desvalorização da sexualidade ao ponto de considerar o matrimônio como uma proposta de segundo nível se comparada com o celibato dos religiosos. Não é por acaso que no livro dos santos canonizados pela Igreja católica a maioria esmagadora é de religiosos. A necessidade dos sacrifícios corporais que, em alguns casos, chegam até o ponto de machucar o corpo para aliviar a alma, constitui um conteúdo importante da pregação católica por muitos séculos. A contraposição entre céu, entendido como verdadeira e autêntica morada do homem, e a terra, percebida como castigo e âmbito de grandes tentações que atrapalham a vida autêntica que busca a perfeição, produziu a espiritualidade da fuga do mundo, que grande influência teve nos primeiros séculos da Igreja. Ao longo dos séculos, o mundo material no seu conjunto, como matéria, corpo, paixões humanas e sexualidade, foi sacrificado no altar da racionalidade, ou pelo menos, na maneira de entendê-la. O homem e a mulher virtuosa sempre foram pessoas que sacrificaram a própria sexualidade, o próprio corpo, os próprios sentimentos para uma aparente harmonia oferecida pela estrutura racional. Até guerras foram feitas pela afirmação dos presunçosos valores ocidentais cristãos. Também o encontro com culturas alheias, como aconteceu a partir do século XVI, elaborou um julgamento de inferioridade, que até justificou a escravidão e a matança de miliares de pessoas (TODOROV, 2010).

A percepção nietzschiana do niilismo ocidental, como processo de desmascaramento da construção cultural dos valores religiosos e morais, revela que o sentido profundo da identidade do homem ocidental sempre foi alicerçado sobre uma estrutura forte de valores. Analisar como se formou a identidade no ocidente ajudará a entender a dificuldade do homem e a mulher pós-moderna de viver dentro de uma estrutura fictícia e, ao mesmo tempo, a tentação de fugir dela. É exatamente a este nível que se encaixa a análise de Charles Taylor. Segundo ele, “o fato de viver dentro desses horizontes altamente qualificados é essencial para a ação humana e evitar esses limites significaria deixar de parecer integral, ou seja, pessoas humanas completas” (TAYLOR, 1998, p. 43). A antropologia filosófica taylorista nos devolve a imagem do homem como um ser constitutivamente moral, porque na base de suas escolhas, de suas ações, há sempre a referência às diferenças intrínsecas de valores, às fortes avaliações, que constituem os pontos de referência crucial do horizonte moral em que todo indivíduo, digno desse nome,  se encontra localizado. Por isso, segundo Taylor, a construção da identidade no ocidente, longe de ser um ato individualista, é um fato social. É na sociedade que o sujeito encontra um patamar de saberes e de valores que o norteiam. "Viver em sociedade é uma condição necessária para o desenvolvimento da racionalidade, em um dos sentidos possíveis dessa propriedade, ou para a transformação em um agente moral, no sentido pleno do termo, ou em um ser autônomo totalmente responsável" (TAYLOR, 2004, 191). Por isso, a identidade do indivíduo é sempre uma identidade dialógica, nunca monológica, pois nasce e se desenvolve numa sociedade.  Mesmo quando é a identidade de um individualista radical, ainda deve haver um horizonte de significado que permitiu que esse indivíduo pensasse nesses termos. Nesse sentido, a antissociabilidade também é intrinsecamente social justamente porque o homem é, segundo Taylor, um animal constitutivamente social. A racionalidade ocidental exige a sociabilidade e a mesma identidade subjetiva molda-se neste âmbito imprescindível.

A descoberta da interioridade por parte de Santo Agostinho no século V de um lado, e a redução da realidade ao cogito individual operada por Descartes no século XVI, leva progressivamente a cultura ocidental a elaborar um modelo de identidade humana, que exige uma autenticidade entendida como autorrealização subjetiva. Segundo Taylor:

A ética da autenticidade é algo relativamente novo e peculiar à cultura moderna. Nascida no final do século XVIII, desenvolveu-se de formas anteriores do individualismo, como o individualismo da racionalidade desengajada, iniciado por Descartes, no qual a exigência é de que cada pessoa pense de maneira autorresponsável por si mesma, ou o individualismo político de Locke, que pretendia tornar a pessoa e sua vontade anterior às obrigações sociais. (TAYLOR, 2011, p.35)

A grande novidade desta virada moderna consiste no fato que, enquanto na época anterior dominada pela moral cristã, o conceito de autenticidade subjetiva era estritamente ligado ao patamar de valores que tinham Deus como referência final, agora, a fonte que oferece autenticidade a cada pessoa está no fundo de nós mesmos. Claramente, como nos lembra Taylor, esta nova fonte da interioridade não exclui o nosso ser relacionado a Deus ou às ideias de cunho platônico. Trata-se do desenvolvimento da intuição agostiniana que aponta o caminho para Deus como passagem, através da interioridade da pessoa humana. Assistimos, assim, na modernidade a uma virada subjetiva massiva, uma nova maneira de interioridade, na qual chegamos a pensar em nós mesmos como seres de profundidade interior. A grande novidade desta virada está na mudança do quadro de referência. De fato, de agora em diante, a fonte dos valores que norteiam a vida das pessoas, não é mais Deus, mas a natureza. Jean Jacques Rousseau é o testemunho desta passagem.

Rousseau frequentemente apresenta o problema da moralidade como aquele em que nós seguimos uma voz da natureza dentro de nós. Esta voz costuma ser abafada pelas paixões induzidas por nossa dependência das demais, das quais a paixão chave é o amor próprio ou orgulho. Nossa salvação moral advém da recuperação do contato moral autêntico com nós mesmos. (TAYLOR, 2001, p. 36-37)

A ideia de natureza, que já se encontrava conceitualmente elaborada, sobretudo na teologia de Santo Thomas de Aquino, assume neste novo cenário teórico um novo e mais profundo alcance, pois vem substituindo o lugar que em antecedência pertencia a Deus. É importante salientar que nos encontramos sempre no âmbito da metafísica, ou seja, de uma forma de pensar que antecipa a realidade e que determina o rumo da história na qual é inserido o sujeito.



[1] É importante lembrar que o papa João Paulo II na encíclica Fides et Ratio do 1998 considerou a teologia tomista como o ponto referencial ainda valido da teologia católica.