quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

NATAL 2021

 


 

 Paolo Cugini

 

Contemplando as páginas dos Evangelhos que narram os acontecimentos que marcaram o nascimento de Jesus, as escolhas de Deus são marcantes. Há um caminho específico e, ao mesmo tempo, surpreendente, que se delineia nos Evangelhos, um caminho que somos convidados a seguir se quisermos conhecer o Senhor da vida. O que chama a atenção são as contradições deixadas ao longo do caminho, os contrastes marcantes em relação à maneira comum de pensar sobre Deus.

 Ele nasce excluído entre os excluídos. Na verdade, não havia espaço entre as casas de Belém para acolher os dois peregrinos de Nazaré, Maria e José. Havia espaço para todos, mas não para eles. No entanto, era visível que Maria estava esperando um bebê e precisava de atenção e hospitalidade. Jesus, antes mesmo de nascer, carrega os sinais da rejeição, dos indesejados. 

Pobres entre os pobres. Jesus foi colocado em uma manjedoura. Esse aspecto do nascimento de Jesus também nos faz refletir muito. Os muitos cristos que dormem todas as noites sob as arcadas no frio vêm à mente: Jesus está sem dúvida entre eles. 

Migrante entre os migrantes. Com poucos anos de vida, Maria, José e o menino Jesus foram forçados a emigrar para o Egito, devido à loucura de um rei louco. Jesus experimenta a humilhação de ser indesejado em sua própria terra, exilado, migrante, desenraizado. Ele carrega na alma as feridas que uma experiência como essa pode causar, deixando uma marca profunda, que exige muito amor para ser curada. Nos primeiros anos de vida, Jesus vive a pobreza radical que caracteriza toda a humanidade que vive à margem da história, nas favelas, nas fronteiras em busca de um lugar acolhedor, humilhado e rejeitado porque diferente, maltratado porque sem nenhuma propriedade. 

Este estranho nascimento, com um caminho tão diferente do que se poderia pensar, não é por acaso, mas é um misterio e, ao mesmo tempo, muito claro, indício para todos e todas aqueles que procuram um sentido para a vida.

 

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

A CRISTANDADE TERMINA E APARECE A ALEGRIA DO EVANGELHO

 



Paolo Cugini

Há um sentimento de vazio espiritual que percebe-se na vida das comunidades cristãs. É difícil mudar o paradigma. É difícil viver a fé não apenas em clima de minoridade, mas também é difícil pensar em si mesmo de forma diferente. Viemos de séculos e séculos em que todos eram cristãos e o cristianismo era a forma de sociedade. Missas, sacramentos, rituais, festas litúrgicas moldaram a estrutura social do Ocidente. Agora que todo este mundo entrou em colapso, ninguém se sente mais obrigado a rituais cristãos.

Na era da Cristandade, não participar da vida religiosa significava condenação eterna, o inferno no futuro. Agora que o envelope sacro se foi, todos os medos desapareceram. O que nos resta? O fim da Cristandade coincide com o fim da religião como forma sacra, que molda a sociedade. O cristianismo transmitia uma mensagem que fazia coincidir a aparência social com o pertencimento à religião, à igreja. O problema agora é viver a fé promovida pelo Evangelho sem fingir que a sociedade se preocupa. Esta é uma fase delicada porque, apesar do fim da era cristã, toda uma série de rituais e elementos sacrais continuam presentes na sociedade, que durante séculos identificaram o pertencimento à vida social e que permaneceram no tecido social, apesar de não saberem, e não entender seu significado. Muitos pais, apesar de não acreditarem no Evangelho e não frequentarem uma igreja, recorrem a ela para batizar seus filhos ou pedir para participar do caminho dos sacramentos, causando perda de tempo, tensão sem fim. Aproximamo-nos da igreja como se fosse qualquer loja, na qual qualquer pessoa tem o direito de comprar o que quiser. É sem dúvida uma fase de transição que, como tal, estará destinada a desaparecer. Fase de transição que é portadora de tensões entre quem dirige a vida religiosa e que nem sempre tem consciência da transição que vivemos, e quem vive a religião apenas como pertencimento social.

Então, chegará o tempo em que poderemos viver a proposta de Jesus em pequenos grupos, entre aqueles que aceitaram a mensagem do Evangelho e fizeram escolhas a respeito, sem ter que prestar contas de uma sociedade que, por agora, vai ignorar o que se tornou uma minoria e não pretende mais afetar a sociedade, pelo menos de fora. Seremos como o fermento na massa - finalmente! -, livre da tirania da aparência e do desempenho a todo custo. Estaremos nas casas, também porque, entretanto, as igrejas e catedrais já terão sido convertidas em estruturas de uso social e coletivo. E é na dimensão familiar do lar que poderemos saborear o sabor da diversidade da vida, das opções, que só o Evangelho pode oferecer, sem a preocupação de ter que provar alguma coisa. Nessa altura, teremos nos libertado das catedrais, das pesadas estruturas eclesiais, das procissões, das estátuas, dos vestidos litúrgicos, de todos aqueles ornamentos resultantes da corrida desenfreada que a Igreja fez durante séculos no poder, pagando um preço altíssimo. Não veremos mais nas ruas aqueals personagens esquisitas vestidas de preto, símbolo da morte prematura, quando deveriam ter vestido as roupas coloridas da alegria. Haverá paz em nossos corações crendo no Evangelho, em Jesus Cristo e, finalmente, seremos libertados dessas doutrinas construídas com o propósito de valer algo no mundo.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

A CONTAMINAÇÃO NA TEOLOGIA COMO FORMA DE INCULTURAÇÃO





Paolo Cugini

 

O que significa quando este termo é usado em teologia? A contaminação é um aspecto da inculturação, do caminho da evangelização em contextos culturais não cristãos ou de culturas diversas. Em todo processo de inculturação há um aspecto de contaminação, isto é, ao entrar em contato com uma cultura diferente existem elementos dessa cultura particular, que são absorvidos pelo processo de evangelização, contaminando, por assim dizer, a estrutura da doutrina. A contaminação põe em causa a ideia de que a doutrina é um bloco incorruptível, compacto, imutável. Na realidade, o caminho da evangelização desde o início passou por vários momentos de inculturação, que levaram a contaminações, que modificaram o núcleo doutrinal, absorvendo elementos da cultura encontrada.

Um exemplo do que estou dizendo é a contaminação ocorrida no contexto da cultura grega que, entre outras coisas, permitiu a formulação do credo niceno-Constantinopolitano. Isso significa que a contaminação, longe de ser um fenômeno negativo, é sim um momento de enriquecimento positivo, necessário. Como a ideia de contaminação no processo de inculturação do Evangelho foi formulada, ela requer, por um lado, o reconhecimento dos valores nas culturas encontradas e, por outro, a ação do Espírito Santo que atua livremente em todos os contextos culturais. É este momento de reconhecimento que provoca o estilo dialógico, a atitude de escuta do outro, a consciência da presença do amor de Deus, que se manifesta de diversas formas. Ainda nessa perspectiva, a ideia de contaminação ajuda a valorizar a diversidade em seu sentido mais amplo. A contaminação na teologia indica que há novos elementos, desconhecidos em outras culturas, que são absorvidos pelo Evangelho, porque são implicitamente reconhecidos como novidades significativas e em consonância com os conteúdos expressos. A contaminação, portanto, faz crescer a doutrina, modifica-a, torna-a mais completa.

Contaminação significa que o processo de aprendizagem do mistério nunca termina. Admitir o processo de inculturação em seu aspecto de contaminação, significa dizer adeus à concepção obsoleta da doutrina como bloco imutável, que identifica a ideia de verdade com a realidade imóvel e a perfeição com a estabilidade. O aspecto da historicidade da história da salvação, a manifestação de Deus na história dos homens e mulheres, abre espaço para a ideia do mistério de Deus que não pode ser codificado por nenhuma doutrina teológica e, ao mesmo tempo, que sempre permanece aberto, na verdade, sempre disponível para contaminação. Nessa perspectiva, a ideia de contaminação na teologia antes de ser e indicar um momento negativo, manifesta, ao invés, um momento positivo da ação do Espírito na história. Na verdade, ele diz que sua ação não pode ser encerrada em nenhum espaço e ninguém pode ter a presunção de codificar seu conteúdo.

Existe uma riqueza da presença de Deus não só nos caminhos das igrejas e religiões, mas também em todos os lugares. “Tudo foi feito nele e para ele” (Ef 1). O processo de contaminação é exigido por todos aqueles que buscam o mistério e vivem dele.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

TE AGUARDO NO SILENCIO

 



Paolo Cugini


Caminho por aquela verada que corre ao longo do canal, imerso nos meus pensamentos habituais, que correm entre o passado e o futuro, deixando o presente de lado. Não estou procurando respostas. Eu já as tive. Nem procuro certezas. Eu não preciso delas e elas não são reais. Eu estou procurando por você.

Eu gostaria de ouvir você, sentir você. Gostaria de te sentir daquela forma palpável que não deixa dúvidas, daquela forma que enche a alma, a mente num instante. Percebê-lo dessa forma que me faz avançar imediatamente para si, de forma exclusiva, nessa exclusividade que se torna espaço para todos e todas.

Eu te procuro à noite no silêncio de uma igreja escura. Não há ninguém e isso me excita. Não há ninguém, é por isso que estou aqui. Eu te sinto no silêncio da escuridão de uma igreja. Sinto Tua respiro, Teu olhar sobre mim, que me devolve a vida, me faz sentir amado, desejado, querido.

E é este amor sensível que enche a minha alma num instante, que reorganiza os meus pensamentos, afasta a preocupação de olhar para outro lado, dá ao tempo uma beleza que se torna vontade de viver agora. Paro de pensar em outro lugar, de me perder nas imagens de um futuro hipotético, uma simples fuga momentânea para enganar aquele tempo que agora está cheio de significado.

É por isso que estou procurando você. No silêncio.

sábado, 11 de setembro de 2021

Lamentos de um Ente consciente e livre...

 



 Recebi este texto de um meu amigo e, com muito prazer, publíco 

 

Prof. Tobias, Ipirá-Bahia

 

        Há exatos 20 anos, duas décadas, o 11 de setembro entraria e, tornar-se-ia uma das datas mais tristes do início do final do séc. XX e início do séc. XXI... Não quero me reportar à superpotência capitalista dos EUA, mas, sim, valendo-me do princípio da Empatia/entropatia, da alteridade e capacidade de sensibilizar-se com a dor do/a Outro/a que, 'terrivelmente vivenciou o dia terrível' e de profunda temeridade que fora o 11 de setembro: o ataque terrorista ao Pentágono e às Torres gêmeas do World Trade Center, em relação ao povo estadunidense, mas sobretudo, à humanidade! Todo e qualquer extremismo é violento, perigoso e letal! Todo e qualquer extremismo fundido à/às ideologia (as) é perigoso e tenta contra a vida e dignidade da pessoa humana em sua totalidade e plenitude! 

      Haja vista, que estamos aqui no Brasil diante de uma "figura"  que configura-se e é extremamente fissurado por tais ideologias e extremismos, que deseja ardentemente o ódio e a violência à paz; há quem discorde, mas, a história e fatos concertos não emudecerão!!!

Por fim, partindo do espírito e Filosofia africana do Ubuntu: 'o meu Eu só existe em detrimento da existência do Eu que o outro/a também carrega', ou seja, sou o que sou graças ao que somos todos nós! Mas, o que verdadeiramente fica?! Dor? Tristeza, luto daqueles/as que tiveram suas vidas arrancadas de sua existência de forma tão cruel? Destrossos? Medo? A resposta é simples: sim, mas, não apenas isso, para além, fica-se o alerta de que toda e qualquer ideia fundida aos extremismos, tenta contra o bem-estar e viver da minha comunidade que é a humanidade...

Afinal, que 'deus é esse que atesta os extremismos'? Aos nossos semelhantes,  mulçumanos íntegros e que de fato vivem a sua fé com Empatia e respeito, admiração e respeito incondicional... Assim, calça-se a humanidade que zela e olha para este Outro/a para além das 'diferenças', ou melhor, deveria calçar-se! Sentimentos, oração e respeito a humanidade violentada no 11 de setembro de 2001!

 

 

 

sábado, 14 de agosto de 2021

O CRISTIANISMO É UMA RELIGIÃO?

 



Paolo Cugini

A elaboração racional moderna, que teve seu ápice mais significativo e, em alguns aspectos, representativo no Iluminismo, queria interpretar a realidade, mas desfigurou-a. A produção ocorrida na época moderna de sistemas em todos os níveis, com a pretensão de explicar a realidade, de mostrar seu caminho, em vez disso, enjaulou-a de modo a provocar sua rebelião. O que vem acontecendo há décadas em diferentes níveis como clima, finanças, economia, política, só para citar algumas áreas, é o resultado desse processo de homologação da realidade, com a presunção de que ela poderia ser apreendida em sua complexidade por um conhecimento pré-abrangente.

A realidade só pode ser ouvida e as propostas racionais que podem ser elaboradas, devem ser realizadas como conseqüência desse primeiro movimento inalienável de escuta. Os desastres dos métodos heurísticos modernos também foram vistos na ciência, como Paul Feyerabend sabiamente mostrou, afirmando com que frequência os cientistas forçam a realidade, ou seja, os dados de experimentos, para comprovar suas teorias. Não é a realidade que precede a ideia e a orienta, mas o contrário: a ideia que força a realidade e a desfigura, para que a ideia seja demonstrada e vitoriosa. Nessa perspectiva, a fenomenologia tem representado para a cultura ocidental uma tentativa bem-sucedida de mudar caminhos, não de antecipar a realidade, mas de apreendê-la como ela se manifesta, acompanhá-la e, a partir desse ponto de vista, elaborar alguns caminhos.

    A religião não correspondeu ao processo de homologação moderna mas, ao contrário, está se propondo de uma maneira nova. É como se o processo de secularização tivesse feito bem a ela. Depois de passar décadas sob o fogo cruzado dos sistemas materialista e existencialista, recebendo em várias ocasiões a marca de ser uma expressão de conteúdos obsoletos, vão surgindo formas sacrais espontâneas, não vinculadas a dogmas ou doutrinas, mas uma expressão da experiência pessoal de auto - transcendência. A crítica e a secularização modernas atingiram duramente o envoltório externo das religiões, em suas formulações éticas, na tentativa de responder ao desafio racionalista, fortaleceram o aparato conceitual e doutrinário que, em todo caso, se revelou muito pesado e inadequado. Por um lado, assistimos ao florescimento de caminhos religiosos desvinculados da proposta das grandes tradições religiosas, caminhos individuais ou pequenos grupos, em busca do bem-estar pessoal e não comunitário.

Por outro lado, o processo de secularização não promoveu uma superação da religião, mas uma mutação de seu significado. Isso é particularmente visível no cristianismo, como argumentou Dacquino, porque: “dentro da diferenciação funcional da sociedade, mostra a especificidade sociocultural da experiência religiosa”. Sem dúvida, esta metamorfose tem provocado um debate interno, dentro do próprio Cristianismo, entre aqueles que defendem a bondade da relação entre a esfera social e mais estritamente sagrada e aqueles que consideram esta união a negação da missão da religião, que deveria ser relegada apenas a a esfera sacra e transcendente. O aspecto mais significativo desse debate dentro do Cristianismo é o questionamento da identidade religiosa.

Afinal, o Cristianismo é uma religião? Talvez esta seja uma das contribuições mais significativas, embora inesperadas, da secularização. Questionar a estrutura religiosa do Cristianismo significa observá-lo de um novo ponto de vista, não do sacro, mas do princípio fundador sobre o qual está estruturado, a saber, a Encarnação. O Deus que entra na história torna inútil qualquer cobertura sacra, porque a partir de agora o divino é acessível sem qualquer mediação. É a imediação do divino na história que causa o processo de desconstrução do aparelho sacro da religião. Apesar disso, o cristianismo, desde o início, não renuncia ao sagrado, antes o usa em abundância, absorvendo do mundo pagão, especialmente do Sacro Império Romano, uma quantidade significativa de material, que o cristianismo utilizou para sua própria cobertura sacra. Além disso, a produção teológica do milênio medieval tudo fará para revestir de significados racionais os invólucros sacrais do cristianismo, transformando-o em religião. Um dos aspectos mais significativos da era pós-moderna consiste em ativar processos de desconstrução, que são, ao mesmo tempo, processos de desmascaramento em todos os níveis. Pois bem, o Cristianismo está a passar pelo escrutínio deste processo, recuperando por um lado a essência da sua proposta contida na Encarnação e, por outro, tendo a possibilidade de deixar para trás séculos de obscurantismo intelectual e confusão sagrada.

Um retorno às origens, portanto, é a grande oportunidade da era pós-moderna. Nesse processo de desmascaramento, a secularização, que mais ou menos involuntariamente abriu uma nova temporada para o cristianismo, teve grande mérito pelas considerações feitas acima. Com efeito, ao afastar-se da marca religiosa, pode ter a possibilidade de manifestar o conteúdo específico da sua proposta tanto a nível pessoal como social. Não só isso, mas como afirma Dotolo: “o fim da equação entre o cristianismo e a religião é, ou pode ser, o início de uma abordagem diferente para dizer Deus, sem o achatamento barato de um ideal regulador que também afeta a qualidade de ' existência".

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

DEUS NA PRISÃO DE SER





 

Paolo Cugini

É possível pensar e perceber Deus fora das categorias metafísicas da filosofia ocidental, que sempre o descreveram nos termos ontológicos do Ser? O filósofo francês Jean Luc Marion tentou libertar Deus da prisão do ser. Talvez, entretanto, não haja necessidade de se preocupar com a filosofia para entender que Deus está além de nossas grades conceituais.

    A percepção de Deus ocorre, em primeiro lugar, na história pessoal de uma pessoa e, portanto, no horizonte das percepções sensíveis, tanto interiores como exteriores. Não vamos a Deus porque demonstramos racionalmente sua existência, mas porque percebemos sua presença. Passamos a acreditar nele porque, em alguns aspectos, o vemos, o sentimos, percebemos que há algo novo, qualitativamente diferente. E, então, mais do que demonstrar sua existência com argumentos racionais, nós o testemunhamos, porque o vimos, ouvimos, percebemos. Se o argumento racional precisa de uma lógica férrea, de silogismos bem articulados para que chegue a uma conclusão que não deixe margem para dúvidas, o que procede do testemunho é bem diferente.

Em primeiro lugar, é sempre pessoal, subjetivo. Isso não significa que tenha menos validade do que uma prova de fundamento exclusivamente objetivo, como uma equação matemática. Estamos, de fato, falando de Deus, que não pode ser classificado por nenhum argumento, no sentido de que há sempre algo sobre Deus que nos escapa, que fica fora do nosso horizonte de conhecimento. Este é um aspecto importante a ser considerado. Ninguém pode presumir que sabe tudo sobre Deus, ou comunicar algo sobre Ele de forma apodíctica. Sempre que falamos de Deus, devemos aprender a tirar os sapatos, como Moisés fez quando se aproximou da sarça ardente onde viu a presença de Deus.

Em segundo lugar, Deus não se manifesta com características humanas. Nós o chamamos de Pai por conveniência de expressão filtrada pela cultura patriarcal. Deus não tem sexo, não tem gênero. Só podemos falar de Deus por suposição, por aproximação. Podemos compartilhar essa experiência sensível particular de forma qualitativa e freqüentemente emocionalmente diferente que a chamamos de Deus, sem realmente saber o que é. Aqueles que podem discernir nossas impressões e verificar sua bondade só podem ser aqueles que vêm do mesmo tipo de experiência, que têm uma experiência semelhante para compartilhar.

Depois, há a sua Palavra, aquela que está escrita na Bíblia e que se define como Palavra de Deus, mas esta também deve ser filtrada, verificada, porque está repleta de elementos culturais da época em que foi escrita.  Deus se revela e o faz usando a cultura da época para se comunicar com aqueles homens e mulheres. Os textos que lemos na Bíblia estão repletos de elementos culturais específicos do período em que aquele texto em particular foi escrito. Podemos apreender a verdade da Palavra revelada tanto pela obra dos exegetas, como pela experiência pessoal, que nos permite reconhecer o Senhor ouvido na Palavra, como aquele que encontramos na vida.

Dizer Deus nesta conjuntura particular da história, que em poucas décadas desmantelou a fragilidade dos sistemas racionais, que à distância se mostraram incapazes de descrever o Mistério, significa a coragem de dobrar as grades enferrujadas da metafísica, que durante séculos fingiram encerrar o Mistério e assim libertá-lo, permitindo que pessoas livres o encontrem como ele se manifesta e não como ele é representado.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

A VOCAÇÃO: É O QUE?

 



Paolo Cugini

 

Devemos ter a coragem de realmente dizer e pensar sobre o que queremos dizer quando falamos sobre o chamado. Existe uma grande superestrutura espiritual. Já vi tantas vezes, ouvi tantos discursos, encontrei tantos pressupostos "chamados" que comecei a desconfiar da dinâmica da chamada. Na verdade, o que é realmente, parece ser o resultado de emoções, sugestões do momento, fantasias cobertas de misticismo, algo de forçado de alguns ambientes. Muitas vezes, o desejo de uma vida diferente daquela que a vida conjugal pode oferecer é indicado como um “chamado”, especialmente para os jovens que tiveram uma experiencia negativa da vida familiar.

No contexto atual, o pressuposto “chamado” à vida presbiteral é colocado em ambiente artificial por um período muito longo de 6/7 anos, em um momento delicado da vida, a saber, a juventude. Período em que as pessoas geralmente decidem colocar suas vidas em uma direção, geralmente casamento ou uma vida de dois. Os jovens que mostram uma sensibilidade religiosa marcada e um desejo de uma vida diferente, doada aos outros, são encerrados por um período prolongado para uma formação principalmente intelectual. Vale dizer também que essa formação intelectual não é de alto nível e não é para oferecer ferramentas para entender o mundo contemporâneo, para enfrentar a vida atual. Ao contrário, esses jovens sensíveis estão literalmente imbuídos de noções doutrinárias, a serem decoradas, noções históricas de conteúdos muitas vezes em contraste com o caminho da ciência.

O resultado é de jovens que saem desse longo percurso de estudos, não com a capacidade de enfrentar a realidade atual e seus desafios de forma lúcida e criativa, mas como velhos, preocupados em repetir exatamente os ritos, se considerando os únicos mediadores entre Deus e a humanidade, totalmente desatualizados e impreparados sobre os grandes problemas da vida de seus contemporâneos. A tragédia é que serão esses jovens com uma preparação carente, que ficarão à frente das comunidades. O resultado está à vista de todos. Abandono das comunidades pelas novas gerações, por não se sentirem representadas de forma alguma pelos chamados líderes religiosos com grande dificuldade em compreender os problemas da atualidade e, consequentemente, totalmente incapazes de oferecer interpretações significativas para a vida quotidiana. Esses líderes religiosos assim formados correspondem à necessidade de participar daquela fatia da comunidade de adultos que identifica o caminho da fé com os ritos. E assim temos uma comunidade onde o padre celebra os ritos que os adultos desejam e organiza atividades para a fruição das crianças e dos adolescentes.

Talvez, porém, Jesus estivesse pensando em outra coisa quando falou às multidões e aos discípulos e as discípulas.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

OS OBSTÁCULOS DA VIDA




Paolo Cugini


 Estamos muito acostumados a querer imediatamente o que procuramos , a exigi-lo, por isso parece-nos absurdo esperar. Somos muito estimulados pela nossa cultura a identificar o bem com o imediato, que custa nos situar num horizonte de espera. Estamos tão acostumados a fugir rapidamente de nós mesmos, que não podemos nos dar ao luxo de parar para nos ouvir. E, assim, com o tempo, amontoam-se dentro de nós entulhos existenciais, que teriam requerido alguma atenção e que, ao invés, não tendo nos encontrado a escuta, jazem dentro de nós, pressionando a nossa consciência em busca de respostas que não encontram. 

Estamos acostumados: esse é o problema. Aprendemos a reclinar desde cedo naquilo que achamos confortável, e aprendemos com outras pessoas acostumadas, deitadas nos sofás da vida, pessoas que aprenderam a identificar a tranquilidade com o sentido da vida e aprenderam isso com outros sossegados, pessoas serenas, que aprenderam a viver evitando problemas, evitando obstáculos. No entanto, os obstáculos existem de propósito não para evitá-los, mas para enfrentá-los. Foi Ele, o Senhor da vida, quem inventou os obstáculos, para que cresça quem os encontra, aprendendo a enfrentar estes benditos, diria mesmo sacrossantos obstáculos. Porque, meu amigo querido, é precisamente enfrentando os obstáculos que aprendemos a viver, porque a vida não se aprende na escola, mas enfrentando os problemas todos os dias. A vida não está escrita em livros, mas nós a escrevemos quando vivemos em plenitude, enfrentando os obstáculos que a vida nos coloca.

E tem mães que se levantam de madrugada para se certificar de que os pequenos estão com tudo pronto, que não têm que fazer nenhum esforço, que têm o único problema de enfrentar o dia sem cansaço, sem ter que enfrentar obstáculos porque mamãe já pensou neles. E então, você encontra aquelas crianças de quarenta anos que, apesar de seus músculos e barbas, permaneceram crianças, incapazes de enfrentar a vida, cheias de medos, porque em vez de enfrentarem obstáculos sempre encontraram uma mãe, que os tirou antes que eles os vissem. Pobres desgraçados! Que pena esses homens sem um pingo de bom senso! Que pena esses covardes, esses acovardados, continuamente exigindo da vida, sempre prontos para reclamar de tudo e de todos. Porque, a essa altura sabemos, que quem reclama, quem se levanta de manhã e antes mesmo de dar bom-dia está pronto para reclamar, vem daquele estoque, vem daquele povo de gente que teve uma mãe mimada que estragou eles e, desta forma os tornou insuportáveis.

 Sem dúvida, Maria foi uma mãe diferente. Certamente Jesus enfrentou os obstáculos desde criança. Podemos dizer isso pelo tipo de homem que ele se tornou. Jesus nunca teria alcançado a cruz se não tivesse aprendido a dizer a verdade e a suportar o impacto das consequências. Ele nunca teria ressuscitado se não tivesse morrido na cruz por ter amado os seus de maneira gratuita e desinteressada até o fim. Que homem Jesus! Que mãe ótima ele tinha! 

 

 

quinta-feira, 3 de junho de 2021

25 ANOS DE PADRE, APESAR DE TUDO

 


Hoje, comemoro 25 anos de vida no ministério sacerdotal. Seria 26, mas no ano passado fiz uma pausa e depois conto 25.

Na foto que coloquei, pareço um cara normal, tranquilo, um padre como tantos outros. Na verdade não foi bem assim, pelo menos a história me preparou para alguns encontros, experiências, acontecimentos que mudaram minha visão de mundo, minha percepção pessoal de Deus.

Estes anos foram para mim um caminho de lenta libertação de todas as formas de religião, entendida como um conjunto de elementos que procuram segurar Deus, através de doutrinas, dogmas, ritos, para encontrar Jesus que veio ao meu encontro.

Encontrei Jesus e ainda o encontro em ambientes estranhos ao mundo religioso.

Te encontrei, Senhor, nos jovens que, nos primeiros anos de ministério, encontrei nos bares, nos parques. Jovens que nunca frequentaram a igreja, mas demonstraram grande espiritualidade.

Te encontrei nas pessoas dos bairros pobres onde morei quinze anos no Brasil. Bairros esquecidos pelo governo, mas também pela Igreja. Pessoas excluídas da possibilidade de ter um trabalho decente, uma casa decente, uma vida decente. Excluída e, por isso mesmo, amada de um jeito muito especial do Senhor. Quanta presença de Deus senti nesses excluídos.

Eu te encontrei e continuo a encontrar-te em tantas mulheres que, de certa forma, me fizeram lembrar de pertencer a uma instituição de forte caráter patriarcal e misógeno. Mulheres que lideram comunidades com muito amor e competência, mas que não têm o direito de participar na hierarquia, nos órgãos de decisão da Igreja. É muito injusto tudo isso, mas o Deus de Jesus Cristo está do lado dos injustiçados, dos perseguidos.

Ultimamente te encontrei nas lésbicas, nos homossexuais massacrados não só pela cultura arrogante dos ignorantes, mas também por aquela Igreja da qual sou representante. Quanto sofrimento ouvi nesses cristãos, que as pessoas nas paróquias não queriam que eles orassem na igreja. Que falta de amor, de misericórdia: que humilhação! Só ficando perto deles é que percebi a tua presença misteriosa, que está sempre do lado dos perseguidos, dos marginalizados.

E agora, por tantos motivos que não vale a pena escrever, vivo no exílio, nos confins de uma diocese, como um estrangeiro. Do ponto de vista humano, minha trajetória nestes anos seria lida exatamente como uma derrota, um fracasso total. Pelo contrário, olhando esta mesma história do lado de Cristo, com o olhar que vem do Evangelho, sinto todo o carinho de Jesus, o seu amor, a sua misericórdia.

Continue orando por mim, eu sempre oro por todos vocês.


quinta-feira, 20 de maio de 2021

CARTA ABERTA DO ENCONTRO DOS BISPOS DA AMAZÔNIA LEGAL AO POVO BRASILEIRO

 

 


Vi, então, um novo céu e uma nova terra, morada de Deus com sua gente (…).

Nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor.

Sim! As coisas antigas passaram! Eis que faço novas todas as coisas”

(cf Ap 21, 1- 5).


 Amazônia, 19 de maio de 2021.

 


“Cristo aponta para Amazônia”

A convocação de São Paulo VI, que repetidas vezes nos inspirou como interpelação, se configura agora como profecia: os olhares se voltam para Amazônia, pela riqueza da sua biodiversidade e de seus povos, e isto nos alegra; mas também olhares ambiciosos, que lançam sobre a região um avanço de depredação e ameaça à vida, e isto nos causa indignação. Como Igreja Católica, também nós, lançamos nosso olhar vigilantenossa escuta contemplativa e esperançosanosso comprometimento inequívoco; levantamos nossa voz, renovamos os apelos à ecologia integral, ao cuidado com a casa comum, à proteção e preservação da região e renovamos nosso empenho como aliados dos povos desta Querida Amazônia.

Nós, bispos da Amazônia, presbíteros e diáconos, religiosos e religiosas, cristãos leigos e leigas em profunda sintonia com o Sínodo Pan-Amazônico, reunidos nos dias 18 e 19 de maio de 2021, desta vez nos servindo das tecnologias de comunicação, de distantes nos fizemos próximos, como nos fazemos próximos do nosso povo como uma Igreja que se põe à escuta e acolhe as culturas e tradições amazônicas, expressão do Espírito de Deus. No exercício de nossa missão evangelizadora dirigimos esta mensagem a toda sociedade, aos povos da Amazônia, aos homens e mulheres comprometidos com a defesa da vida. E o fazemos profundamente sensibilizados pela situação de vulnerabilidade e ameaças que sofre toda casa comum, agravada pela pandemia da Covid-19, e pelo acirramento das disputas territoriais com expansão das atividades minerais e do agronegócio em terras de populações tradicionais.  A consequência desse cenário de morte tem sido as inúmeras e incontáveis vítimas da pandemia. Chegamos aos quase 440.000 mortos, além dos que sucumbiram diante de processos de violência no campo e na cidade. Nos solidarizamos com todos os que tombaram vítimas do descaso e dos projetos de morte. Como o salmista, reconhecemos a preciosidade da vida de cada homem e de cada mulher que partiu: “É de alto preço, aos olhos do Senhor, a morte dos seus fiéis” (Sl 116,15).

 

Nosso olhar vigilante

Acompanhamos estarrecidos, mas não inertes, o desenrolar de um arquitetado projeto genocida que, por sua vez, revela o devastador agravamento de uma crise que escancara a pobreza diante da escandalosa concentração de riquezas. Este é o sinal evidente da perversidade de uma economia de mercado, embasada no capital especulativo, que se alimenta das necessidades dos estados nacionais, fazendo destes seus novos consumidores. Assim, o capital sequestra a autonomia dos Estados, exige e dita os novos rumos da política, rompe com as históricas conquistas sociais, desmonta as instituições e políticas de seguridade, alimenta-se das posturas extremistas, que por sua vez buscam na religião sua legitimidade de expressão. Essa perversidade busca revestir-se de um maquiado desejo de liberdade e de autonomia diante da lei, derruba os marcos legais que garantem o equilíbrio das relações e a salvaguarda do bem comum. As lutas das populações da Amazônia têm diante de si o escandaloso desafio da pretensiosa legalidade do ilícito. Ou apelamos para a garantia legal da vida e dos territórios, ou nos defendemos quando o extermínio se torna lei!

Este dinamismo é escancaradamente presente diante da questão das lutas dos povos indígenas. O cenário político indigenista vivido no Brasil é de retrocesso, com o agravamento das violações dos direitos destes povos, principalmente no que se refere à regularização dos seus territórios. Eles enfrentam invasões de suas terras, incentivadas por estratégias políticas que favorecem a exploração, por garimpeiros, mineradoras, madeireiros, desmatadores, agentes do agronegócio, entre tantos outros, gerando toda espécie de violências e violações de direitos humanos e da natureza. Somam-se os incêndios, poluição das águas dos rios, contaminação de peixes, contaminação das pessoas e dos animais; assassinatos, violência sexual, pandemia, desassistência.

Percebemos, também, que a crise socioambiental, denunciada em 2019 durante o Sínodo, acentuou-se durante a pandemia e revela os limites de um sistema que está sendo rapidamente destruído e que tende a perecer se a crise não for detida.  Preocupa-nos a cadeia de iniciativas em vista do desmonte e fragilização da legislação socioambiental e fundiária: O PL 3729/2004 que desmonta o sistema de licenciamento ambiental; o PL 2633/2020 e PL 510/2021 que abrem as “porteiras” para a grilagem de terras; o PL 191/2020 permitindo a mineração e atividades econômicas em terras indígenas; o PL 6299/2002 que flexibiliza fabricação e uso de agrotóxicos. A profecia não silencia diante destas práticas: “Ai dos que inventam leis injustas, dos escribas que referendam a injustiça para oprimirem os pobres no julgamento” (Is 10,1-2).

Enquanto escrevemos estas linhas, populações que há mais de 30 anos estavam presentes em seu chão, são despejadas no Assentamento Jacutinga em Porto Nacional – Tocantins, contrariando a recomendação do Conselho Nacional de Justiça de não executar decisões desse tipo em tempo de pandemia.

Outra série de agressões vão se acumulando neste cenário que não escapa aos nossos olhos: as ameaças às unidades de conservação, o acirramento da violência no campo e na cidade, a crise migratória, o feminicídio, a exploração sexual, o trabalho escravo, o tráfico de pessoas, entre tantos. Como se não bastassem essas crises provocadas pela intervenção humana, o fenômeno das enchentes, que pode ser agravado pelas mudanças climáticas, castiga nossas populações ribeirinhas. De olho nas águas, percebemos uma iminente crise hídrica como pauta de um próximo embate.

Somos sabedores que os governantes têm o dever constitucional de agir para evitar a destruição das riquezas naturais e implementar políticas públicas que amenizem a situação de desigualdade e pobreza, porém, na Amazônia isso não vem acontecendo. Assistimos um governo que vira as costas a esses clamores, opta pela militarização em seus quadros, semeia estratégias de criminalização de lideranças e provoca conflito entre os pequenos. Dói em nossos corações de pastores as imagens de escárnio e zombaria das dores de nossa gente: “Nossa alma está farta, em extremo, da zombaria dos satisfeitos e do desprezo dos soberbos” (Sl 123,4).

Não obstante este cenário, mantemos viva e acesa nossa esperança no Ressuscitado: “No mundo tereis aflições, mas tende coragem! Eu venci o mundo”. (Jo 16,33)

 

Nossa escuta contemplativa e esperançosa

Aprendemos da experiência do Sínodo da Amazônia um olhar esperançoso. A Amazônia é também resposta! Ela irrompe como novo sujeito e como novo paradigma pela questão ecológica e pelos seus povos originários. A partir da Amazônia fomos desafiados a assumir esses novos paradigmas em nossa ação evangelizadora. Os caminhos traçados pelo Sínodo da Amazônia, catalogados em forma de compromisso no novo Pacto das Catacumbas pela Casa Comum, deixaram evidente a necessidade de superar uma lógica colonizadora, de escolher a periferia como centro da Igreja, de assumir o caminho da inculturação e interculturalidade, seja no campo dos ministérios como das estruturas: uma Igreja com o rosto Amazônico.

Constatamos com alegria a atuação de uma infinidade de comunidades constituídas e milhares de lideranças de cristãos leigos, na sua maioria mulheres, que atuam no campo da evangelização e educação socioambiental. A partir dos relatórios dos Regionais da CNBB na Amazônia, verificamos que estamos a passos lentos, mas progressivos, tornando concretos os caminhos de conversão propostos no Documento Final do Sínodo e os quatro Sonhos do Papa Francisco na Exortação Apostólica pós-sinodal Querida Amazônia. Foi justamente para retomarmos o ardor do Sínodo da Amazônia e apreciar os passos dados que fomos convocados para este encontro. Perguntamo-nos: “Que mudanças efetivamente têm ocorrido em nossa ação evangelizadora desde as indicações do Sínodo?”

 

Nosso comprometimento inequívoco

A Igreja na Amazônia já tem um caminho. Somos uma Igreja que age sob a força e inspiração do Espírito de Deus. A liberdade e ousadia do Evangelho são mais fortes que as amarras e os desgastes das estruturas. A conversão pastoral, desde a Conferência de Aparecida (2007), nos interpela, a conversão integral, desde o Sínodo da Amazônia, nos inquieta. Somos sabedores dos desafios de manter a unidade em tempos de conflitos, do nosso papel mediador. Não somos ingênuos de pautar nosso agir em polarizações agressivas, como insistem até mesmo alguns que dizem professar a fé em Jesus Cristo, mas não haja dúvidas de que lado nós estamos: por causa do Evangelho e do Reino reafirmamos nossa incondicional escolha por estas populações, por estes territórios, por estas vidas ameaçadas. Em nada nos fascina qualquer aproximação com esses sistemas perversos, mas também aos que neles se envolvem, anunciamos a Boa Nova de Jesus: “Cumpriu-se o tempo, e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15)!

Não estamos sozinhos, há outros interlocutores da fé cristã, de outras expressões religiosas, de organizações populares, novos sujeitos emergentes; a partir dos pequeninos nos sentimos irmanados neste compromisso. “Tudo isso nos une. Como não lutar juntos? Como não rezar juntos e trabalhar lado a lado para defender os pobres da Amazônia, mostrar o rosto santo do Senhor e cuidar de sua obra criadora?” (Querida Amazônia 110).

Sentimo-nos impulsionados e animados a reafirmar alguns compromissos:

  • Prosseguir e avançar em nossa pauta pastoral as reflexões e indicações ousadas do Sínodo em torno dos ministérios, como apresenta o Documento Final do Sínodo nos números 103 e 111, e da formação inculturada dos nossos agentes;
  • Elaborar um plano estratégico com diretrizes pastorais, que encarne o sonho social, ecológico, cultural e eclesial para a Pan Amazônia;
  • Incentivar a questão da segurança alimentar como estratégia de cuidado pela vida;
  • Reafirmar nosso envolvimento efetivo com o Pacto pela Vida e pelo Brasil, unindo-nos ao “coro dos lúcidos” fazendo nossas as suas pautas: a vacina para todos, a defesa do SUS, o auxílio emergencial digno, pelo tempo que se fizer necessário e a investigação da responsabilidade pela má gestão do sistema de saúde em meio à pandemia do coronavírus. Da mesma forma tornar vivo o Pacto Educativo Global, proposto Papa Francisco, em todas as regiões da Amazônia. Conclamamos todas as instâncias eclesiais e a sociedade como um todo a unir-se neste engajamento;

“O que vos é sussurrado ao ouvido, proclamai-o sobre os telhados” (Mc 10,27). Tendo descoberto a capilaridade das novas dinâmicas de comunicação, das quais nos servimos para chegar junto às nossas comunidades em tempos de distanciamento social, igualmente queremos por meio destes recursos fazer chegar a todos e todas estas nossas inquietações, esperanças e compromissos.

Exortamos, às mais variadas lideranças de cristãos leigos e leigas, que não desanimem da luta, que renovem continuamente o senso de comunhão eclesial, que a paixão pelo Reino de Deus seja sempre alimentada, e que a sensibilidade para com os mais pobres seja permanente.

Não nos faltem a intercessão de nossos mártires, companheiros de caminhada, e o olhar benevolente da Senhora de Nazaré, Mãe da Amazônia: “esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei”! A Mãe de Deus está conosco. Sigamos em frente!


 

 

quarta-feira, 5 de maio de 2021

RELIGIÃO COMO TENTAÇÃO

 



Paolo Cugini

    É a dificuldade de esperar as respostas às questões da vida, que nos faz correr para a primeira religião que nos encontramos e que, na grande maioria das vezes, coincide com a que encontramos na família. É a religião de preços baixos, que nos custa pouco, senão o preço de uma mísera vela elétrica. Afinal, é preciso muito pouco para acalmar a consciência e voltar rapidamente ao nosso trabalho diário, que consiste, resumindo, em perder tempo, em passar o tempo, sem pensar exatamente no porquê das coisas, nos motivos que nos induz a fazer uma coisa em vez de outra. E, o tempo, passa e nos parece lento, ainda nos parece.

Constantemente tentados pela religião a não pensar, a se abrigar, a encontrar um porto seguro, a encostar nela com a garantia da tradição e, sobretudo, com outras pessoas que, talvez, sejam a maior garantia para quem tem dificuldade em encontrar as suas próprias respostas. É a droga do bom senso, do que sempre foi feito assim, do pensamento bem feito. E depois há os rituais que são sempre os mesmos, com as mesmas palavras que dão grande segurança a todos aqueles que, com medo da vida, procuram um sofá para descansar em paz, longe das preocupações.

Devemos ter aprendido a caminhar na solidão em busca de nós mesmos, do sentido das coisas que vivemos. É preciso ter começado a trilhar esse caminho desde a adolescência, para nos tornarmos jovens que se afastam da estupidez coletiva, do senso comum.

Contra a força da estupidez óbvia feita religião, não há razão para sustentá-la. Quando o pensamento de um grupo se uniformiza, não é mais possível raciocinar e, o pensamento diferente, o pensamento que se questiona e que questiona, torna-se perigoso para toda a comunidade. Nestes casos, para o espírito livre, para quem simplesmente busca o sentido das coisas, é melhor mudar o ar, ir para outro lugar.

quarta-feira, 31 de março de 2021

CAMPANHA DA FRATERNIDADE: UNIDADE OU DIVISÃO?

 


Recebi e com muito prazer publico:



 

Não é novidade para ninguém que temas polêmicos sempre foram divisores dentro das instituições religiosas, de modo ainda mais preciso, dentro da Igreja Católica: desde o grande cisma provocado pela divergência quanto ao Filioque, perpassando as heresias e chegando ao problema da iconoclastia e, tempos depois o protestantismo, divisões não faltaram no cristianismo católico e não católico. Mas o fato é que, segundo a minha pobre visão, já vivemos hoje um cisma prático que abarca questões ideológicas muito mais do que questões de fé. Faço-me entender:

Hoje na Igreja temos dois grandes pólos: de um lado, a corrente conservadora que, em suas convicções, preza por resguardar a moral, a “tradição” e os bons costumes cristãos. Por outro lado, encontramos uma corrente progressista que provoca reflexões e busca mudanças no seio do catolicismo. Ambas as alas vivem numa eterna guerra para provar os erros uma da outra. Mas o fato é que estas duas correntes estão bem distantes de viver um consenso, aquela justa medida aristotélica que é, na realidade, o cerne do ensinamento de Jesus, pois o Evangelho conduz a uma visão límpida das coisas, a Boa Nova reclama para si um equilíbrio humano.

Na Igreja do Brasil, nunca se viu um conservadorismo tão forte como aquele que existe hoje, tal conservadorismo é fruto de todas as deturpações e más vivências da Teologia da Libertação e das Ceb’s que, em muitos lugares e situações, ganharam apenas uma conotação social e política e, por hora, deixaram a espiritualidade em segundo plano caindo quase um laicismo travestido de fé. Aqui quero deixar claro que não sou contra a TL e as Ceb’s no que elas são em essência (uma proposta eclesial libertadora e autêntica), mas me refiro especificamente às deturpações que fizeram delas. 

Um fato importante nesse contexto é que o crescimento e o empoderamento da ala conservadora se dá também pela explosão do movimento carismático que virou febre e se misturou ao conservadorismo dando-lhe popularidade. Aqui no Brasil está em alta no meio católico assuntos do tipo: uso do véu pela mulheres, a modéstia no vestir, uma ênfase exacerbada no pecado, Missa Tridentina, um devocionismo que extrapola os níveis da normalidade e um ideal cristão que às vezes foge da realidade humana que se apresenta nos nossos tempos.   

Sob o influxo de argumentos de que a Igreja teria condenado a Teologia da Libertação, o conservadorismo ataca qualquer temática que possa ao menos lembrar questões sociais. Não é à toa que o Papa Francisco é largamente taxado de comunista e criticado por seu ministério marcado por um acento social, ecológico e humanitário. Além do Papa Francisco, um grande alvo dos ataques conservadores é a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) que segue a linha do pontificado do Papa Francisco. A cada ano, com a Campanha da Fraternidade, que acontece sempre no Tempo da Quaresma, a CNBB propõe a conversão dos cristãos para assuntos ligados ao bem comum, ao meio ambiente, problemas sociais e humanos que assolam os nossos tempos.

A cada ano tem crescido a objeção à Campanha da Fraternidade, há muitos padres, leigos, institutos e até bispos (pasmem!) que se manifestam contrários. Acusam a Campanha de ser comunista (Imagine se existe comunismo no Brasil! Risos...), laicista e sem espiritualidade. Reclamam o direito de viver a Quaresma no seu espírito “genuíno” como se refletir sobre a situação do mundo não fosse oportunidade de conversão, de vida nova, de novos tempos. Esse grupo conservador não consegue perceber que a nova criação, os “novos céus e a nova terra” prometidos por Cristo já começam quando nos convertemos ao amor pelo próximo e pela criação.

O tema da CF deste ano talvez tenha sido um dos mais polêmicos de todos os tempos porque envolve a diversidade e, falando deste tema, além de tratar sobre a diversidade religiosa (sendo uma campanha ecumênica), traz à luz da reflexão cristã, o tema da diversidade sexual que está em alta no Brasil. É impossível não falar de conversão quanto à homofobia, transfobia, LGBTQI+fobia, no país onde mais se mata homossexuais e pessoas trans no mundo. É impossível não chamar à conversão uma cultura de intolerância e agressão a quem vive uma orientação sexual diferente dos padrões patriarcais das culturas cristãs. Não dá para fazer vistas grossas a um assunto de tamanha relevância no cenário nacional. O Evangelho toca estas realidades. O que dizer então quando o próprio Catecismo da Igreja manda acolhermos as pessoas homoafetivas com caridade? Acaso está sendo o Catecismo herético e contraditório?

O fato evidente aqui é que falar sobre estes temas na Igreja é ter que tocar na própria ferida, é ter que olhar para dentro da própria instituição e enxergar com objetividade que a questão da homoafetividade não é só ad extra, mas ad intra! A homossexualidade é uma questão teológica séria que precisa ser discutida para além de um parágrafo do Catecismo e para além de uma recomendação a “guardar a castidade” como se fosse simples assim. Na prática, como podemos acolher com caridade, pastoralmente e espiritualmente as pessoas LGBTQI+ se estamos fechamos a perceber que esta realidade está camuflada dentro da própria instituição? É lógico que é mais fácil tomar o caminho da “moral e dos bons costumes”, pois assim, não precisamos mexer em nós mesmos, não precisamos nos expor e não precisaremos passar a vergonha de admitir perante o mundo que estamos errados.

A Campanha da Fraternidade é um ponto cismático na Igreja do Brasil. Torno a repetir: este cisma não existe formalizado e oficial, mas trata-se de uma divisão de cunho prático, uma guerrilha que se expande desde os ambões das Igrejas até as redes sociais onde o bombardeio ideológico é ainda mais forte e descontrolado. Embora o tema da CF trate da unidade: “Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”, vemos que ela gerou muito mais divisões, mas ainda assim, creio que ela esteja cumprindo seu papel, pois onde não há tensões e crises, não há também crescimento e purificação. Se dentro da Igreja, essa bonita proposta não consegue atingir sua finalidade, ao menos nos espaços extra-eclesiais ela tem gerado diálogo, reflexão e propostas de mudanças.

Sigamos de cabeça erguida! Possamos nos firmar no texto bíblico que é lema da CF 2021: “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade”. (Ef 2, 14a) O caminho das tensões não pode ser visto negativamente, mas acredito firmemente que Cristo se utilizará disso para continuar chamando ao diálogo e à unidade. Sejamos nós instrumentos nas mãos do Senhor, geradores de comunhão, de acolhimento, de respeito e de amor ao próximo. Como nos ensina o Papa Francisco na “Fratelli Tutti”: sejamos construtores de pontes e não de muros!

Pe. Cláudio Gonçalves | Bahia, Brasil.