A
ROMARIA MARIAL DE IPIRÁ
Paolo
Cugini
A caminhada da Igreja Católica no Brasil, desde os
anos ’70 do século passado e, sobretudo, depois do Concilio Vaticano II
(1962-65), se caracteriza por uma busca da ligação entre fé e vida. As
Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) foram o berço de uma experiencia de igreja
incarnada na realidade, caminhando perto do povo, sobretudo os mais pobres e
excluídos. É verdade que a caminhada atual da Igreja do Brasil, mudou o foco,
tornando-se mais carismáticas, renunciando ao compromisso sociopolítico que a
caracterizou no começo da caminhada. Apesar disso, as características
principais das Cebs, como o engajamento dos leigos, a ministerialidade, a
centralidade da Palavra permanece ainda hoje como um estímulo pela Igreja do
mundo todo.
As grandes manifestações religiosas, como as romarias,
sempre foram eventos e ainda hoje são, que envolvem não apenas o povo das
comunidades, mas também pessoas que manifestam a própria religiosidade de forma
espontânea, sem ser necessariamente ligada a uma caminhada de Cebs ou de
paróquia. Romarias como de Padre Cicero ou de Bom Jesus da Lapa, que reúnem
milhares de fiéis, atraem pessoas simples cuja devoção os leva a buscar lugares
considerados sagrados, ponto de referência dos caminhos espirituais dos fiéis
das mais variadas proveniência e pertença.
A Romaria Marial de Ipirá, sendo um evento organizado
pela equipe paroquial, envolve quase exclusivamente o povo das comunidades,
aliás é o evento que marca o caminho anual das Cebs desta paróquia. Este evento
nasceu nos anos ’80, numa época de grandes tensões sociais, ligadas sobretudo
ao problema da terra, do latifúndio. A diocese de Ruy Barbosa dos anos ’80, era
muito sensível ao grito do povo das comunidades, que clamava por um pedaço de
terra, numa região castigada pela seca e pela corrupção política. Padre
Riccardo Camellini, um padre italiano que, naquele período, era pároco de
Ipirá, em linha com a caminhada da diocese, abraçou a causa e orientou a
Romaria Marial como um evento que, envolvendo as Cebs da paróquia,
representasse, também, um grito pela terra. Como se deram os eventos não cabe a
mim narrar. Aquilo que importa é o marco de luta social e política que, uma
manifestação religiosa de grandes proporções, como a Romaria Marial, tomava
naquela época, manifestando publicamente que, a capela da comunidade não era um
lugar fechado em si mesmo, mas sabia traduzir em lutas sociais aquilo que
escutava no Evangelho.
Com a virada carismática da Igreja do Brasil, também a
Romaria Marial de Ipirá mudou de sentido, focando exclusivamente na dimensão
religiosa. Sem dúvida esta mudança de rumo, afetou a caminhada das Cebs, que
perderam o marco importante do profetismo visualizado nas denúncias contra o
poder político corrupto e a arrogância dos latifundiários locais, totalmente
insensíveis no que concernia a pobreza do povo. Dava até medo, nos dias de
Romaria, ver caminhões lotados de fiéis, com bandeira, faixas e cartaz,
manifestando a própria indignação contra uma desigualdade, que não permitia uma
vida digna para a maioria das pessoas. Maria, mãe de Jesus, mãe pobre e exilada
quando Jesus era criança, era identificada como protetora, pois ela mesma tinha
passado pelo sofrimento da humilhação dos poderosos. Não a caso, o cântico
Magnificat, lembra que Deus: Manifestou o poder do seu braço: desconcertou
os corações dos soberbos. Derrubou do
trono os poderosos e exaltou os humildes.
Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos (Lc
51-53). Existe uma espiritualidade bem fundamentada na Bíblia, que não
precisava de grandes explicações exegéticas, porque o povo simples das Cebs,
pela maioria camponeses, agricultores, entendia muito bem que Maria era com
eles, apoiava a causa dos pobres e humilhados. A Romaria Marial dos primeiros
tempos, em Ipirá, representava esta grande intuição evangélica: Deus está
sempre do lado dos pobres, dos injustiçados.
Não é um caso que, no mesmo Brasil, depois da
experiencia negativa da ditadura militar, no 1989 nasceu o Movimento Nacional
Fé e Política com o objetivo de alimentar a dimensão ética e espiritual que
deve animar a atividade política. Deixar-se animar pelo Espírito de vida, é a
essência do Movimento Fé e Política, “que não propõe diretrizes para ação
política dos cristãos, nem se comporta como se fosse uma tendência
político-partidária, mas que luta pela superação do capitalismo por meio da
construção de um sistema sócio-econômico solidário e respeitoso da vida do
Planeta”.[1]
Este Movimento, que se espalhou em todo o território Nacional e até mesmo na
Bahia, ajudou bastante e continua a formar as consciências dos cristão[2]
que desejam levar na sociedade as indicações assimiladas na leitura do
Evangelho feita na comunidade. É isso que falou Frei Betto, um dos fundadores e
assessores do Movimento que, no último encontro afirmou que: “O Reino de Deus é
a proposta para o futuro da humanidade. Jesus não estava falando lá de cima,
mas aqui na terra. Que o seu reino venha até nós. O Reino para Jesus indica a
relação no amor e na partilha dos bens. Compartilhar os bens da terra e os
frutos do trabalho humano. Até que a humanidade compartilhe os bens da terra,
não realizaremos o Reino de Deus”[3].
[1] Cfr. O site do
Movimento: https://fepolitica.org.br/historico-do-movimento-nacional-fe-e-politica/
[2] O XII0
encontro Nacional do Movimento Fé e Política aconteceu em Belo Horizonte no mês
de abril 2024: https://fepolitica.org.br/12-encontro-nacional-2/
[3] ´possível encontrar um
relatório do XII encontro do Movimento Fé e Politica neste site: https://matutan.blogspot.com/2024/04/12-encontro-nacional-de-fe-e-politica.html
Como aponta Aristóteles, "somos animais políticos por natureza", de outro lado, nas palavras de Cícero "não há povo tão primitivo que não professe a fé em deuses, ainda que se engane sobre a sua existência"... Nesse sentido, o homem é constituído por sua natural religiosidade e composição política! A fé do povo mais simples, do sertanejo, a presença de Maria, de Nossa Senhora, é o símbolo de que a religião por si só é também um ato político, uma vez que religa o homem ao Transcendental para transcender toda e qualquer situação que agride a vida e a dignidade da pessoa humana.
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