Paolo Cugini
A
análise que Gianni Vattimo desenvolveu ao longo destes anos tem como pontos
referenciais dois filósofos: Nietzsche e Heidegger[1]. O
anúncio nietzschiano da morte de Deus e o niilismo como consequência do
pensamento Ocidental, na perspectiva de Vattimo desembocam na análise
heideggeriana do fim da metafísica, da história da metafísica Ocidental como
enfraquecimento do ser. Sendo que a proposta de Vattimo que chamamos de
“religiosa” não pode ser entendida em sua profundeza e em suas consequências
extremas senão a partir deste pano de fundo filosófico, que retorna em várias
páginas de sua obra, sobretudo nos textos das últimas duas décadas, é
necessário aprofundar o discurso. Na análise de Vattimo, tanto a reflexão niilista
de Nietzsche quanto o anúncio heideggeriano do fim da metafísica apontam para
aquilo que hoje chamamos de fim da modernidade.3 Nessa altura, a pós-modernidade
não seria outra coisa que o esgotamento do projeto moderno da metafísica
clássica, da maneira de interpretar o ser como presença, como algo de fixo, de
rígido. A metafísica, alvo das críticas de Vattimo, é a filosofia sistemática,
capaz de fornecer uma representação coerente, unitária e rigorosamente fundada das
estruturas estáveis do ser.[2]
Metafísica, neste sentido, seria um pensamento que identifica a verdade do ser com
a possibilidade de medir e de manipular o objeto da ciência. Esta crítica, como
sabemos, não é nova. Já a partir dos anos oitenta, vários epistemólogos[3]
questionavam a veridicidade das teorias científicas, sobretudo, a presunção de
achá-las melhores daquelas de cultura diferente. A novidade da análise de
Vattimo consiste na ligação que ele realiza entre a crise da metafísica
Ocidental e as consequências – por ele positivas – no cristianismo. Existe toda
uma série de eventos acontecidos nas últimas décadas que comprovam a dissolução
da metafísica clássica, o enfraquecimento de um ser apresentado como fundamento
único e objetivo da realidade. A queda do muro de Berlim, a crise sistemática
do modelo econômico neoliberal, o mundo pluralista em que vivemos, o
desmoronamento do mito do progresso ilimitado, fruto maduro do iluminismo
setecentesco: são todos sintomas de um enfraquecimento do ser da metafísica
forte de cunho Ocidental que desembocam no niilismo. Na Babel do pluralismo do ocaso
da modernidade, do desmoronamento das metanarrativas de lyotardiana memória,[4]
das ideologias fortes centradas sobre verdades absolutas se multiplicam as
narrativas sem um centro e uma hierarquia. “O fim da metafísica, vista como
crença em uma ordem fundada, estável, necessária, e objetivamente cognitiva do
ser, foi acompanhado, no pensamento e na prática social, pela morte do Deus
moral, do Deus dos filósofos” (Vattimo 1996, p. 37). Pela metafísica clássica
que Vattimo critica, a verdade não é nada mais que o fruto de uma projeção
subjetiva, idealista, um dado fixo. A este tipo de verdade o mundo pós-moderno
está dizendo adeus. A reflexão de Nietzsche que desemboca no anúncio da morte
de Deus e no advento do niilismo se encaixa com a análise heideggeriana do fim
da modernidade, abrindo o caminho através de novas perspectivas filosóficas. Se,
de fato, ao longo dos séculos, a metafísica Ocidental tentou reiteradamente
apresentar o ser como algo de forte, fundamento objetivo da realidade,
ocultando sua autêntica natureza que é a fraqueza ou a tendência ao
aniquilamento como todo evento histórico, para Vattimo, isso mostra como na
realidade o niilismo não é algo de extrínseco ao mondo ocidental, à sua cultura
e a seu berço cristão, mas sim, intrínseco. “A metafísica se manifesta, na sua
essência, quando chega ao fim e alcança o seu fim precisamente enquanto se
revela na sua essência” (Vattimo 2006, p. 64), ou seja, como
enfraquecimento, como esquecimento do ser. Os eventos do mundo contemporâneo supraindicados
não fazem outra coisa que confirmar esta análise no plano metafísico. A análise
que Vattimo elaborou nas últimas duas décadas oferece assim uma leitura
filosófica dos acontecimentos históricos que estão se alastrando no mundo
Ocidental. Existe uma lógica no desastre que a todos os níveis está se
manifestando, um desastre devido a uma interpretação errada do ser como
presença, como algo de fixo e, sobretudo, como algo que o homem pode manipular.
O destino do Ocidente não pode não ser marcado pelo caminho do enfraquecimento
do ser, caminho que, infelizmente, ao longo dos séculos, deixou um marco
profundo na história, o marco da violência. Refletir sobre o nexo entre violência
e metafísica parece um paradoxo, mas, à luz da análise histórica tão paradoxal,
não é.
A conatural necessidade à qual corresponde a metafísica,
aquela de apreender a arché, está profundamente ligada à hýbris de quem quer alcançar
a plena posse da própria existência e, portanto, no final, do predomínio em nós
das leis da sobrevivência, aquelas que “justificam”, em última análise, a
violência na qual reside o mal” (Vattimo 2004, p. 141).
A
metafísica como fixação rígida do ser produziu sempre um pensamento forte
incapaz de acolher as identidades alheias, as diferenças culturais e
religiosas. O mundo Ocidental é um mundo substancialmente violento e esta
violência tem sua própria raiz na metafísica que até agora a inspirou. Os
poderes políticos fortes que se suscederam ao longo dos séculos no Ocidente
cristão foram sempre sustentados por uma metafísica forte, que, ao invés de se
colocar à escuta da realidade para responder a ela, sempre tentou antecipá-la
e, assim, prendê-la dentro do próprio sistema. Vattimo não esconde a profunda
ligação da Igreja católica com as estruturas de violência brotadas do seio da
metafísica clássica. A defesa que a Igreja faz da lei da natureza para, ainda
hoje, defender os seus dogmas no campo moral, e, sobretudo, “a maneira pela
qual quer impô-los correspondem a um modo específico de conceber a figura da
Igreja no mundo: uma estrutura fortemente organizada em sentido hierárquico,
vertical e definitivamente autoritário” (Vattimo 2004, p. 145). Nessa altura,
como veremos, o abandono da metafísica forte em favor de uma débil, deveria
ajudar não apenas a Igreja, mas também as estruturas políticas Ocidentais a
elaborar projetos e morais mais tolerantes e atentas ao pluralismo típico do
fim da modernidade. Para entendermos isso, precisamos realizar um caminho, ou
melhor, uma mudança de perspectiva. Se o ser como presença está manifestando
todas as suas falhas não apenas no plano teórico, mas também e sobretudo, no
plano histórico e existencial, então é nesta última perspectiva que o ser deve
ser de agora em diante interpretado, ou seja, como evento.
Aquilo que o homem tem de específico e que o distingue
das coisas é o fato de estar referido à possibilidade e, portanto, de não
existir como realidade simplesmente presente. O termo existência, no caso do
homem, deve entender-se no sentido etimológico de ex-sistere, estar fora, ultrapassar
a realidade simplesmente presente na direção da possibilidade (Vattimo
1996, p. 25).
É
nessa altura que Vattimo recupera o discurso heideggeriano de Ser e Tempo, da existência como Dasein, ser no mundo. Não é possível entender
o ser fora de uma específica dimensão temporal, histórica. Parece ter sido este
o problema maior da filosofia europeia: incapacidade de pensar a historicidade
e a vida em sua efetividade. O homem está situado na história de uma forma
dinâmica e é somente nesta maneira que deve ser considerado. Se a verdade não
pode ser mais o reflexo de uma estrutura eterna do real, um princípio único e
unificador, um sistema de pensamento rígido e abrangente, então a totalidade
deve ser captada como “uma mensagem histórica que devemos ouvir e à qual somos
chamados a dar uma resposta” (Vattimo 2004, p. 13). Na perspectiva filosófica
de Vattimo, a palavra evento é tão significativa em nossa época como foi para
os gregos o termo logos ou para os chineses, o Tao. De fato, quando não dá para
pensar o ser como simples presença por causa de seu enfraquecimento
progressivo, só pode aparecer como evento, em sua dinamicidade histórica. Só
que é desta forma e somente assim que o ser deve ser entendido, ou seja, como
interligado à existência humana. Em outras palavras: o fim da metafísica como
presença, provocado pelo desmoronamento dos sistemas fortes elaborados na busca
de uma objetividade absoluta, desvenda a realidade do ser e do próprio homem,
que não existe em si e por si, mas somente como relacionamento recíproco.
O ser relaciona-se com o homem enquanto tem necessidade
deste para acontecer; e o acontecer não é um acidente ou uma propriedade do
ser, mas é o próprio ser. Nem o homem nem o ser podem conceber-se como “em si”,
que depois se encontram em relação (Vattimo 1996, p. 116).
O
fim da metafísica como busca do fundamento único da realidade, além de manifestar
o niilismo como consequência deste projeto, revela ao mesmo tempo a nova
possibilidade de pensar o homem assim como ele é, ou seja, dentro de seu
dinamismo histórico e existencial. O ser nunca é outra coisa senão seu modo de
se dar na história aos homens de uma determinada época.
[1]. Cf. sobretudo: Gianni VATTIMO, Introdução
a Heidegger, Instituto Piaget, Lisboa 1996; Le avventure della differenza. Che cosa significa pensare dopo
Nietzsche e Heidegger, Garzanti, Milano 2001; O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna,
Martins Fontes, São Paulo 2002; Il
soggetto e la maschera. Nietzsche e Il problema della liberazione,
Bompiani, Milano 2003.
[2]. Esta
crítica está presente sobretudo em: G. VATTIMO, Addio alla veritá, Maltemi, Roma 2009
[3]. Cf. A.J.
AYER, Linguagem, verdade e lógica, Editorial
Presença, Lisboa 1991; Paul FEYERABEND, Contra
o Método, Francisco Alves, Rio de Janeiro 1989.
[4]. Cf. F. LYOTARD, A condição pós-moderna, José Olimpio,
Rio de Janeiro 20048.
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