quarta-feira, 17 de maio de 2023

A crítica da sociedade burguesa e da “desordem estabelecida” em Emmanuel Mounier

 





Paolo Cugini

A filosofia de Emmanuel Mounier, e todo o seu pensamento político, são baseados na categoria do compromisso. A crítica do mundo moderno assume um lugar de primeiro plano na gênesis do mesmo conceito de revolução. Refaire la Renaissance, como expressa o ambicioso programa da Revista Esprit, por ele mesmo fundada em 1932, significa uma radical ruptura com o mundo moderno. O problema – afirma Mounier – não é de purificar, mas de reformar à raiz, com coragem, todas as estruturas sociais e também o coração dos homens; mas isso é outra coisa. Uma mudança radical foi sempre chamada de revolução. Tem medo da palavra, percebo o medo da coisa. Sem dúvida, nenhuma revolução acontece sem nenhuma violência. O problema não é mais entre revolução e as meias medidas, mas entre a revolução que salva os valores humanos e a revolução que os sufoca. (MOUNIER, 1984, p. 267). Para Mounier, o problema não é fazer a revolução, mas como fazer, pois, pare ele, a revolução é inevitável e necessária. As estruturas sociais do tempo de Mounier parecem a seu ver tão deformadas que não tem mais outro caminho que possa substitui-las. A crise que Mounier percebia, não era apenas política e econômica, mas muito mais profunda. É a crise daquela sociedade nascida no final da idade média e que proporcionou a revolução industrial. Mounier percebe que no horizonte está aparecendo uma civilidade nova, que substitui a velha, uma mudança de civilidade que apresenta também a necessidade de um homem novo. Se, de fato, na sociedade que se constituiu na revolução industrial o homem era o grande absente, agora torna-se necessário restituir à pessoa o seu lugar de destaque. Isso significa romper com a civilidade industrial de cunho individualista e burguês.

Esse processo de decadência, visível na sociedade burguesa, percebe-se na parábola do herói que passa a burguês, do chefe de indústria ao mesquinho poupador. Assim, o burguês é o homem que perdeu o sentido do Ser, que não consegue agir sem realizar algo de concreto. O burguês é “o homem que perdeu o amor; cristão sem inquietação, ateu sem paixão” (MOUNIER, 1982, p. 186).

Este individualismo sem amor e sem paixão produziu uma civilidade alicerçada sobre a ruptura entre espírito e matéria, entre pensamento e ação. A ação revolucionária deve construir um novo tipo de civilidade, uma civilidade personalista. Personalista é uma civilidade cujas estruturas e cujo espírito são orientados a completar como pessoa cada indivíduo. A realização desta civilidade só será possível através da superação da sociedade capitalista que sufoca a possibilidade e o desejo de ser pessoa. (MOUNIER, 1982, p. 234). O mundo burguês vive uma profunda crise, mas apesar disso, precisa de uma derrota final para abrir o caminho da nova sociedade. A sociedade burguesa ainda tem os seus

defensores, aqueles que, querendo defender a ordem, defendem a realidade da desordem estabelecida por eles mesmos. “Os homens da ordem perpetuam a desordem, enquanto a aparente violência das revoluções contribui ao progresso da razão” (MOUNIER, 1984, p. 22).

Mounier é preocupado em manter bem distinta a ligação entre revolução e materialismo de um lado, ordem e valores espirituais do outro. É preciso evitar o monopólio materialista da revolução e o monopólio pseudo-espiritualista da ordem. Nesse contexto, Mounier denuncia a identificação falsa que o mundo burguês conseguiu realizar ao longo dos séculos entre mundo espiritual e mundo reacionário. A revolução, para surtir efeito, deve ser política e econômica de um lado, espiritual e

moral do outro. É nessa perspectiva que uma filosofia do compromisso se une com uma filosofia da história:

Nós somos revolucionários duas vezes, mas em nome do espírito. Uma primeira vez, que dura até que irá durar o gênero humano, porque a vida do  espírito é uma conquista sobre a nossa covardia. Uma segunda vez – e isso aconteceu nos anos ao redor de 1930 – porque o mundo moderno está num estado de putrefação tão avançado e tão profundo, que é necessária a queda total para que possam surgir novos brotos” (MOUNIER, 1984, p. 37).

 

Sobre uma exigência espiritual se desenvolve um julgamento histórico. Tão forte é o prevalecer dos condicionamentos materiais neste período histórico, que é necessário realizar uma revolução política e econômica antes daquela espiritual. Colocar em primeiro lugar os problemas materiais é uma necessidade de uma época cuja parábola burguesa chegou ao fim e as estruturas da sociedade sufocam a vida das pessoas.

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