domingo, 15 de setembro de 2024

Quando a religião mexe com sociedade e a política

 





A ROMARIA MARIAL DE IPIRÁ


Paolo Cugini

 

 

A caminhada da Igreja Católica no Brasil, desde os anos ’70 do século passado e, sobretudo, depois do Concilio Vaticano II (1962-65), se caracteriza por uma busca da ligação entre fé e vida. As Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) foram o berço de uma experiencia de igreja incarnada na realidade, caminhando perto do povo, sobretudo os mais pobres e excluídos. É verdade que a caminhada atual da Igreja do Brasil, mudou o foco, tornando-se mais carismáticas, renunciando ao compromisso sociopolítico que a caracterizou no começo da caminhada. Apesar disso, as características principais das Cebs, como o engajamento dos leigos, a ministerialidade, a centralidade da Palavra permanece ainda hoje como um estímulo pela Igreja do mundo todo.

As grandes manifestações religiosas, como as romarias, sempre foram eventos e ainda hoje são, que envolvem não apenas o povo das comunidades, mas também pessoas que manifestam a própria religiosidade de forma espontânea, sem ser necessariamente ligada a uma caminhada de Cebs ou de paróquia. Romarias como de Padre Cicero ou de Bom Jesus da Lapa, que reúnem milhares de fiéis, atraem pessoas simples cuja devoção os leva a buscar lugares considerados sagrados, ponto de referência dos caminhos espirituais dos fiéis das mais variadas proveniência e pertença.

A Romaria Marial de Ipirá, sendo um evento organizado pela equipe paroquial, envolve quase exclusivamente o povo das comunidades, aliás é o evento que marca o caminho anual das Cebs desta paróquia. Este evento nasceu nos anos ’80, numa época de grandes tensões sociais, ligadas sobretudo ao problema da terra, do latifúndio. A diocese de Ruy Barbosa dos anos ’80, era muito sensível ao grito do povo das comunidades, que clamava por um pedaço de terra, numa região castigada pela seca e pela corrupção política. Padre Riccardo Camellini, um padre italiano que, naquele período, era pároco de Ipirá, em linha com a caminhada da diocese, abraçou a causa e orientou a Romaria Marial como um evento que, envolvendo as Cebs da paróquia, representasse, também, um grito pela terra. Como se deram os eventos não cabe a mim narrar. Aquilo que importa é o marco de luta social e política que, uma manifestação religiosa de grandes proporções, como a Romaria Marial, tomava naquela época, manifestando publicamente que, a capela da comunidade não era um lugar fechado em si mesmo, mas sabia traduzir em lutas sociais aquilo que escutava no Evangelho.

Com a virada carismática da Igreja do Brasil, também a Romaria Marial de Ipirá mudou de sentido, focando exclusivamente na dimensão religiosa. Sem dúvida esta mudança de rumo, afetou a caminhada das Cebs, que perderam o marco importante do profetismo visualizado nas denúncias contra o poder político corrupto e a arrogância dos latifundiários locais, totalmente insensíveis no que concernia a pobreza do povo. Dava até medo, nos dias de Romaria, ver caminhões lotados de fiéis, com bandeira, faixas e cartaz, manifestando a própria indignação contra uma desigualdade, que não permitia uma vida digna para a maioria das pessoas. Maria, mãe de Jesus, mãe pobre e exilada quando Jesus era criança, era identificada como protetora, pois ela mesma tinha passado pelo sofrimento da humilhação dos poderosos. Não a caso, o cântico Magnificat, lembra que Deus: Manifestou o poder do seu braço: desconcertou os corações dos soberbos.  Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes.  Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos (Lc 51-53). Existe uma espiritualidade bem fundamentada na Bíblia, que não precisava de grandes explicações exegéticas, porque o povo simples das Cebs, pela maioria camponeses, agricultores, entendia muito bem que Maria era com eles, apoiava a causa dos pobres e humilhados. A Romaria Marial dos primeiros tempos, em Ipirá, representava esta grande intuição evangélica: Deus está sempre do lado dos pobres, dos injustiçados.

Não é um caso que, no mesmo Brasil, depois da experiencia negativa da ditadura militar, no 1989 nasceu o Movimento Nacional Fé e Política com o objetivo de alimentar a dimensão ética e espiritual que deve animar a atividade política. Deixar-se animar pelo Espírito de vida, é a essência do Movimento Fé e Política, “que não propõe diretrizes para ação política dos cristãos, nem se comporta como se fosse uma tendência político-partidária, mas que luta pela superação do capitalismo por meio da construção de um sistema sócio-econômico solidário e respeitoso da vida do Planeta”.[1] Este Movimento, que se espalhou em todo o território Nacional e até mesmo na Bahia, ajudou bastante e continua a formar as consciências dos cristão[2] que desejam levar na sociedade as indicações assimiladas na leitura do Evangelho feita na comunidade. É isso que falou Frei Betto, um dos fundadores e assessores do Movimento que, no último encontro afirmou que: “O Reino de Deus é a proposta para o futuro da humanidade. Jesus não estava falando lá de cima, mas aqui na terra. Que o seu reino venha até nós. O Reino para Jesus indica a relação no amor e na partilha dos bens. Compartilhar os bens da terra e os frutos do trabalho humano. Até que a humanidade compartilhe os bens da terra, não realizaremos o Reino de Deus”[3].

 

 



[2] O XII0 encontro Nacional do Movimento Fé e Política aconteceu em Belo Horizonte no mês de abril 2024: https://fepolitica.org.br/12-encontro-nacional-2/

[3] ´possível encontrar um relatório do XII encontro do Movimento Fé e Politica neste site: https://matutan.blogspot.com/2024/04/12-encontro-nacional-de-fe-e-politica.html

Um comentário:

  1. Como aponta Aristóteles, "somos animais políticos por natureza", de outro lado, nas palavras de Cícero "não há povo tão primitivo que não professe a fé em deuses, ainda que se engane sobre a sua existência"... Nesse sentido, o homem é constituído por sua natural religiosidade e composição política! A fé do povo mais simples, do sertanejo, a presença de Maria, de Nossa Senhora, é o símbolo de que a religião por si só é também um ato político, uma vez que religa o homem ao Transcendental para transcender toda e qualquer situação que agride a vida e a dignidade da pessoa humana.
    Continua...

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