Paolo Cugini
O discurso de Heschel sobre a
liberdade como essência da religião nasce da tomada de consciência da crise
religiosa do seu tempo. A seu ver a religião se distanciou progressivamente dos
problemas vitais, isolando-se e, por isso, tornando-se insossa. O problema
dessa crise não deve ser procurado fora do âmbito religioso, como se ela
dependesse de uma recusa da sua específica proposta, mas sim no seu interior,
na sua maneira de se colocar no contexto atual. Parece que a religião perdeu o
rumo, tornando[1]se
incapaz de expressar o próprio específico. Tudo isso, segundo Hescel, vem de
muito longe, do processo constante que a religião aceitou de um progressivo e
constante isolamento.
A religião foi vítima da
tendência de se tornar fim a si mesma, a isolar o sagrado, a viver em modo
paroquial, toda encentrada em si mesma; como se o seu compromisso fosse não de
nobilitar a natureza humana, mas aumentar o poder e a grandeza das suas
instituições o de ampliar o corpo das suas doutrinas. Muitas vezes a religião
se esforçou muito mais para canonizar os seus preconceitos que lutar em defensa
da verdade; para petrificar o sagrado que para santificar o secular (HESCHEL,
1999, p.10-11).
Este isolamento no qual se
encontra a religião hoje é fruto de uma série de operações acontecidas por
dentro do dinamismo religioso, que modificaram estruturalmente a sua proposta.
E assim, a fé torna-se credo, deixando o âmbito vital do relacionamento pessoal
com Deus para se refugiar num dogmatismo estéril. Sempre neste caminho, é fácil
observar como a religião se reduziu sempre mais a disciplina, modificando desta
maneira o sentido profundo do culto, identificando-a com a Lei. Este fenômeno
que Heschel, em páginas memoráveis, chamou de comportamentismo religioso, é bem
visível no hebraísmo contemporâneo. O comportamentismo religioso sustenta que a
vontade de Deus se realiza somente através da ação exterior, da observância da
Lei. Nessa altura, a devoção interior não é elemento importante não apenas para
o hebraísmo, mas sim pela religião no geral. Por isso se insiste muito sobre a
tradição, a observância, a disciplina, dando pouquíssimo espaço pelos temas
ligados à experiência religiosa. Esta perspectiva, que dominou o hebraísmo
moderno, provocou um enfraquecimento na sua sensibilidade pela dimensão
metafísica, que se manifesta no elemento sagrado, no misterioso. Reduzindo a
religião à observância, o centro se torna o homem e a sua capacidade, em
detrimento do elemento de novidade que o sagrado traz consigo. Por esta
corrente do pensamento hebraico, que Heschel considera extremamente negativa, o
estudo da Lei é a única expressão do autêntico hebraísmo e, em consequência, a
teologia é um fator estranho e exterior ao hebraísmo autêntico. Contra esta
posição radical Heschel sustenta que:
As regras da observância são
leis na forma, mas a substância é o amor. E a Torá contém seja a lei que o
amor. A lei é o elemento que tem unido o mundo, enquanto o amor leva o mundo
para frente. A lei é o meio, não o fim; o caminho, não a meta (HESCHEL, 2006,
p.348).
O homem é criado à semelhança
de Deus não apenas para obedecer a uma lei externa, mas para colaborar neste
projeto e criar o mundo conforme a visão dele. Isso quer dizer que o homem
autenticamente religioso, longe de ser um mero executor passivo de leis
externas, torna-se protagonista ativo do projeto da criação de Deus. O perigo
de uma adesão formal à lei do Criador comporta o esquecimento do compromisso da
pessoa como um todo no projeto de Deus. Além disso, se a religião é relegada à
observância externa da lei, esta atitude abre o caminho da separação da
religião do mundo, sobretudo do compromisso de transformá-lo para que se torne
a semelhança do Pai6 . É essa atitude legalista, que abre o caminho à crise
contemporânea da religião. Como em toda época de crise é o passado que é exaltado,
mas não como motivo para impulsionar o presente, mas sim como fuga sintomática
de uma incapacidade de colher a força intrínseca ao fenômeno religioso. Isso é
visível quando a religião fala enfatizando desmedidamente o nome da autoridade,
dos conteúdos dogmáticos, da força das leis em detrimento dos conteúdos típicos
da religião que são o amor, a compreensão, a misericórdia. Por isso, não é de
estranhar se a religião nos dias de hoje tornou-se insignificante, pois é
incapaz de incidir na cultura.
Os frutos negativos do
comportamentismo religioso são bem visíveis, segundo Heschel, no quadro da
cultura contemporânea, na separação produzida, relegando a religião à condição
de uma das disciplinas humanas, e não como o fermento da vida. Nessa altura do
discurso, podemos nos perguntar: a final de conta qual deveria ser o específico
da religião? Se é verdade que perdeu o rumo, como podemos definir a tarefa dela
no mundo? Antes de tudo “a religião é resposta aos questionamentos últimos. No
momento em que esquecemos os questionamentos últimos, a religião torna-se
irrelevante, e a sua crise e incentivada” (HESCHEL, 1999, p. 30). A dificuldade
que a religião encontra na modernidade é devida ao fato de que a cultura
moderna modificou o eixo e o quadro dos valores. De fato, a Bíblia é resposta
ao interrogativo: o que quer Deus do homem? Para o homem moderno a pergunta foi
modificada na seguinte maneira: o que o homem pede a Deus? De uma atenção a
Deus se passou a colocar a preocupação sobre o homem e as suas necessidades e,
desta maneira a teologia virou antropologia, as ciências teológicas se tornaram
ciências humanas. Este é, segundo Heschel, o foco do problema, pois é neste
nível que aconteceu a modificação do eixo cultural que mudou bastante a
essência da religião no mundo contemporâneo. Esquecendo que é um dom, o homem
focaliza sempre mais os próprios interesses nas suas necessidades.
Hoje se olha as necessidades
como se fossem sagradas, quase coubessem a totalidade da existência. As
necessidades são os nossos deuses e nos preocupamos e não poupamos fadigas para
gratificá-los (HESCHEL, 1999, p. 32). O problema apontado pelo nosso autor é de
suma importância, pois oferece uma chave de leitura das problemáticas da
modernidade. Se, de fato, o centro de interesse não é mais Deus e as suas
exigências, mas o homem com as suas necessidades, este último não se percebe
mais como dom, como apelo, mas sim como um punhado de necessidades a serem gratificadas.
Outro dado importante nesta perspectiva é a análise do tipo de necessidade que
caracteriza o homem que, diferentemente dos animais, modifica-as a partir do
contexto no qual vive. Existem múltiplas necessidades que se tornam assim, por
causa da influência cultural dos mass-mídia, da publicidade. Muitos dos
interesses que cultivamos com cuidado são impostos pelas convenções da
sociedade. Isso quer dizer que existem necessidades reais, que é necessário
cuidar e, ao mesmo tempo, existe toda uma gama de necessidades que são
efêmeras, invenções da cultura que, como consequência, passam com o tempo. Se a
religião sofre tanto na época moderna, se ela é sempre mais isolada é também
por este motivo, por esta mudança de eixo dos valores da modernidade.
O individualismo exacerbado,
fruto maduro do idealismo de cunho cartesiano, distrai o homem da atenção ao
apelo de Deus, para fechar-se na preocupação de gratificar as próprias
necessidades, que se tornam sempre mais os novos ídolos. A religião hebraica não
ensina somente que o centro da lei é o mandamento do amor, mas tem muita
atenção para que os ídolos não entrem a deturparem o relacionamento com Deus. A
crise da religião atual é devida a esta mudança radical que arrastou também o
espírito religioso. “A religião – continua Heschel – acostumou-se ao humor
moderno, proclamando si mesma como satisfação de uma necessidade humana” (HESCHEL,
1999, p.36).
Esta ideia, que é
profundamente oposta ao autêntico espírito religioso, está contribuindo
bastante para a esterilização do pensamento religioso. De fato, se também a
religião se torna resposta a uma necessidade humana, se coloca no mesmo patamar
das outras necessidades, perdendo a força e, ao mesmo tempo, a exigência de ter
algo a mais, de qualitativamente diferente. Este é segundo Heschel o foco do
problema da crise contemporânea da religião, que para não ser considerada
superada da cultura atual, abriu progressivamente mão do seu específico,
virando produto tipicamente humano. Na realidade, a religião não é busca de
gratificações pessoais, de satisfação de necessidades humanas, mas resposta a
um apelo que vem de outro nível da realidade. Colocando a religião ao nível das
necessidades humanas, perde-se imediatamente a dimensão transcendente da
realidade8 . Os dez mandamentos não foram oferecidos ao povo para satisfazer
uma necessidade. O povo naquela época sentia a necessidade (cultural) de uma
imagem, mas tal necessidade foi frustrada por Deus. A mesma Bíblia não começa
com a criação do homem, ou com a história da religião, mas sim com a criação do
céu e da terra.
Quando se transformam as
necessidades humanas em objetivos, ali começa a confusão. Deus é muito mais da
suma das necessidades humanas. Isso vale também para o homem, cujo destino e
vocação vão bem além da satisfação das necessidades que ele percebe.
A religião não é uma maneira de satisfazer necessidades. É a resposta a
um questionamento: Quem é que precisa do homem? É a consciência que alguém
precisa de nós, do fato que o homem é uma necessidade de Deus. É o caminho que
conduz a santificação da satisfação das necessidades autenticas [...]. Tarefa
da religião é de ser um desafio á desestabilização dos valores (HESCHEL, 1999,
p. 38-39).
O ponto de partida da religião
é a certeza de que aos homes é pedido algo, que existem objetivos que precisam
de nós. Diferentemente de outros valores ou necessidades, os fins morais e
religiosos suscitam em nós um sentimento de obrigação. A religião tem esta
tarefa única na história: ajudar o homem a perceber a dimensão transcendente, o
apelo do sagrado que o chama para realizar algo que não é, de forma alguma,
definível com meras características humanas. O específico dos valores
religiosos é que se apresentam não como objetos de percepção, como necessidades
humanas manipuláveis para o homem, mas sim como tarefas, apelos que exigem uma
resposta pessoal. A tarefa da religião é ajudar o homem, a mulher a manter vivo
o “sim” à realidade superior, manter a capacidade do homem de dizer: eis me
aqui.
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