SOBRE O AMOR HUMANO E DIVINO DO CORAÇÃO DE JESUS
Síntese: Paolo Cugini
Dado em Roma, junto de São Pedro, a 24 de outubro do ano 2024, décimo segundo do meu Pontificado.
CAPÍTULO I
A IMPORTÂNCIA DO CORAÇÃO
«Amou-nos», diz São Paulo referindo-se a Cristo (Rm 8, 37), para nos ajudar a descobrir que nada «será capaz de separar-nos» desse amor (Rm 8, 39). Paulo afirmava-o com firme certeza, porque o próprio Cristo tinha garantido aos seus discípulos: «Eu vos amei» (Jo 15, 9.12). Disse também: «Chamei-vos amigos» (Jo 15, 15). O seu coração aberto precede-nos e espera-nos incondicionalmente, sem exigir qualquer pré-requisito para nos amar e oferecer a sua amizade: Ele amou-nos primeiro (cf. 1 Jo 4, 10). Graças a Jesus, «conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (1 Jo 4, 16).
O que entendemos quando dizemos “coração”?
No grego clássico profano, o termo kardía designa a parte mais íntima dos seres humanos, dos animais e das plantas.
A Bíblia diz que «a Palavra de Deus é viva, eficaz [...] e discerne os sentimentos e as intenções do coração» (Heb 4, 12). Deste modo, fala-nos de um núcleo, o coração, que se esconde por detrás de todas as aparências, e até mesmo de pensamentos superficiais que nos confundem
O coração é igualmente o lugar da sinceridade, onde não se pode enganar ou dissimular.
Regressar ao coração
Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração; indicar onde cada pessoa, de qualquer classe e condição, faz a própria síntese; onde os seres concretos encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências, convicções, paixões e escolhas.
Ao não se dar o devido valor ao coração, desvaloriza-se também o que significa falar a partir do coração, agir com o coração, amadurecer e curar o coração.
É preciso afirmar que temos um coração e que o nosso coração coexiste com outros corações que o ajudam a ser um “tu”.
É necessário que todas as ações sejam colocadas sob o “controle político” do coração, que a agressividade e os desejos obsessivos sejam acalmados no bem maior que o coração lhes oferece e na força que ele tem contra os males; que a inteligência e a vontade sejam também postas ao seu serviço, sentindo e saboreando as verdades em vez de as querer dominar, como algumas ciências tendem a fazer; que a vontade deseje o bem maior que o coração conhece, e que a imaginação e os sentimentos se deixem também moderar pelo bater do coração.
Em última análise, poder-se-ia dizer que eu sou o meu coração, porque é ele que me distingue, que me molda na minha identidade espiritual e que me põe em comunhão com as outras pessoas.
O coração que une os fragmentos
O coração é também capaz de unificar e harmonizar a própria história pessoal, que parece fragmentada em mil pedaços, mas na qual tudo pode adquirir sentido. É isso que o Evangelho exprime no olhar de Maria, que olhava com o coração.
Este núcleo de cada ser humano, o seu centro mais íntimo, não é o núcleo da alma, mas da pessoa inteira na sua identidade única, que é alma e corpo. Tudo está unificado no coração, que pode ser a sede do amor com todas as suas componentes espirituais, psíquicas e também físicas. Em última análise, se aí reina o amor, a pessoa realiza a sua identidade de forma plena e luminosa, porque cada ser humano é criado sobretudo para o amor; é feito nas suas fibras mais profundas para amar e ser amado.
O mundo pode mudar a partir do coração
Só a partir do coração é que as nossas comunidades serão capazes de unir e pacificar os diferentes intelectos e vontades, para que o Espírito nos possa guiar como uma rede de irmãos, porque a pacificação é também uma tarefa do coração. O Coração de Cristo é êxtase, é saída, é dom, é encontro. N’Ele tornamo-nos capazes de nos relacionarmos uns com os outros de forma saudável e feliz, e de construir neste mundo o Reino de amor e de justiça. O nosso coração unido ao de Cristo é capaz deste milagre social.
Levar o coração a sério tem consequências sociais.
CAPÍTULO II
GESTOS E PALAVRAS DE AMOR
O Coração de Cristo, que simboliza o centro pessoal de onde brota o seu amor por nós, é o núcleo vivo do primeiro anúncio. Ali se encontra a origem da nossa fé, a fonte que mantém vivas as convicções cristãs.
Gestos que refletem o coração
O modo como nos ama é algo que Cristo não quis explicar-nos exaustivamente. Mostra-o nos seus gestos. Observando-O, podemos descobrir como trata cada um de nós, mesmo que nos custe perceber isso. Procuremos, pois, onde a nossa fé pode reconhecê-Lo: no Evangelho.
Isto se torna evidente quando vemos o modo como age. Está sempre à procura, sempre próximo, sempre aberto ao encontro. Contemplamos isto quando se detém a conversar com a Samaritana, junto do poço onde ela ia buscar água.
O olhar
O Evangelho conta-nos que se aproximou dele um homem rico, cheio de ideais, mas sem forças para mudar de vida. Então «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele».
Muitos textos do Evangelho mostram-nos que Jesus está atento às pessoas, às suas preocupações, ao seu sofrimento. Por exemplo: «Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida».
Precisamente porque está atento, é capaz de reconhecer cada boa intenção que temos, cada pequena boa ação que praticamos. O Evangelho diz que «Viu também uma viúva pobre depositar [no cofre do tesouro do templo] duas moedinhas».
As palavras
Embora nas Escrituras tenhamos a sua Palavra sempre viva e atual, por vezes Jesus fala interiormente e convoca-nos para nos conduzir ao melhor lugar. Esse lugar melhor é o seu próprio Coração. Ele chama-nos para nos introduzir no lugar onde podemos recuperar a força e a paz: «Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei de aliviar-vos» (Mt 11, 28). Por isso, pede aos seus discípulos: «Permanecei em mim» (Jo 15, 4).
As palavras que Jesus pronunciou indicavam que a sua santidade não elimina os sentimentos. Por vezes, mostravam um amor apaixonado, que sofre por nós, se comove, se lamenta e chega, até mesmo, às lágrimas.
CAPÍTULO III
ESTE É O CORAÇÃO QUE TANTO AMOU
A devoção ao Coração de Cristo não é o culto a um órgão separado da Pessoa de Jesus. O que contemplamos e adoramos é a Jesus Cristo por inteiro, o Filho de Deus feito homem, representado numa imagem sua em que se destaca o seu coração. Neste caso, o coração de carne é entendido como imagem ou sinal privilegiado do centro mais íntimo do Filho incarnado e do seu amor ao mesmo tempo divino e humano, porque, mais do que qualquer outro membro do seu corpo, é «o índice natural ou o símbolo da sua imensa caridade».
Adoração a Cristo
É indispensável sublinhar que nos relacionamos com a Pessoa de Cristo, através da amizade e da adoração, atraídos pelo amor representado na imagem do seu Coração. Veneramos essa imagem que O representa, mas a adoração dirige-se apenas a Cristo vivo, na sua divindade e em toda a sua humanidade, para nos deixarmos abraçar pelo seu amor humano e divino.
A veneração da sua imagem
Convém notar que a imagem de Cristo com o seu coração, ainda que de maneira nenhuma possa ser objeto de adoração, não é uma imagem qualquer, entre muitas outras que poderíamos escolher. Não é algo inventado de modo abstrato ou desenhado por um artista, «não é um símbolo imaginário, é um símbolo real, que representa o centro, a fonte da qual brotou a salvação para a humanidade inteira».
Há uma experiência humana universal que torna esta imagem única.
O coração tem o valor de ser percebido não como um órgão separado, mas como um centro íntimo que gera unidade e, ao mesmo tempo, como expressão da totalidade da pessoa, o que não acontece com outros órgãos do corpo humano.
Amor sensível
Amor e coração não estão necessariamente unidos, pois num coração humano podem reinar o ódio, a indiferença e o egoísmo. Porém, não atingimos a nossa plena humanidade se não saímos de nós mesmos, tal como não nos tornamos inteiramente nós mesmos se não amamos. Portanto, o centro mais íntimo da nossa pessoa, criado para o amor, só realizará o projeto de Deus enquanto amar. Assim, o símbolo do coração simboliza ao mesmo tempo o amor.
O Filho eterno de Deus, que infinitamente me transcende, quis amar-me também com um coração humano.
Tríplice amor
Entretanto, não nos detemos só nos seus sentimentos humanos, por mais belos e comoventes que sejam, pois, contemplando o Coração de Cristo reconhecemos como nos seus sentimentos nobres e sadios, na sua ternura, no vibrar do seu afeto humano, se manifesta toda a verdade do seu amor divino e infinito.
Na realidade, há um tríplice amor que está contido e nos deslumbra na imagem do Coração do Senhor. Primeiramente, o amor divino infinito que encontramos em Cristo. Mas, pensamos também na dimensão espiritual da humanidade do Senhor. Desde esse ponto de vista, «o coração de Cristo é símbolo de enérgica caridade, que, infundida em sua alma, constitui o precioso dote da sua vontade humana […]. Finalmente […] é símbolo do seu amor sensível».
Estes três amores não são capacidades separadas, funcionando de forma paralela ou desconexa, mas atuam e exprimem-se em conjunto e num fluxo constante de vida.
Por isso, entrando no Coração de Cristo, sentimo-nos amados por um coração humano, cheio de afetos e sentimentos como os nossos.
Perspectivas trinitárias
A devoção ao Coração de Jesus é marcadamente referida a Cristo; é uma contemplação direta de Cristo que convida à união com Ele.
Se buscamos aprofundar o mistério da ação do Espírito, vemos que Ele geme em nós e diz “Abbá”: «Porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: “Abbá! – Pai!”»
Expressões recentes do Magistério
O Coração de Cristo esteve presente na história da espiritualidade cristã de diversas maneiras. Na Bíblia e nos primeiros séculos da Igreja, aparecia sob a figura do lado ferido do Senhor, quer como fonte de graça, quer como apelo a um encontro íntimo de amor. Assim reapareceu constantemente no testemunho de muitos santos até aos nossos tempos. Nos últimos séculos, esta espiritualidade tomou a forma de um verdadeiro culto ao Coração do Senhor.
Aprofundamento e atualidade
A devoção ao Coração de Cristo é essencial para a nossa vida cristã, na medida em que significa a nossa abertura, cheia de fé e de adoração, ao mistério do amor divino e humano do Senhor, até ao ponto de podermos voltar a afirmar que o Sagrado Coração é um compêndio do Evangelho
Perante o Coração de Cristo, é possível voltar à síntese encarnada do Evangelho e viver o que propus há pouco, recordando a amada Santa Teresa do Menino Jesus: «A atitude mais adequada é depositar a confiança do coração fora de nós mesmos, ou seja, na infinita misericórdia de um Deus que ama sem limites e que deu tudo na Cruz de Jesus».
CAPÍTULO IV
AMOR QUE DÁ DE BEBER
Voltemos à Sagrada Escritura, aos textos inspirados que são o lugar principal onde encontramos a Revelação. Nelas e na Tradição viva da Igreja está contido o que o próprio Senhor nos quis dizer para toda a história. A partir da leitura de textos do Antigo e do Novo Testamento, recolheremos alguns dos efeitos da Palavra no longo caminho espiritual do Povo de Deus.
Sede do amor de Deus
93. A Bíblia mostra que uma abundância de água vivificante foi anunciada ao povo que tinha caminhado pelo deserto e esperava a libertação: «Tirareis água com alegria das fontes da salvação» (Is 12, 3).
Ressonâncias da Palavra na história
Consideremos alguns dos efeitos que esta Palavra de Deus produziu na história da fé cristã. Vários Padres da Igreja, sobretudo da Ásia Menor, mencionaram a chaga do lado de Jesus como a origem da água do Espírito: a Palavra, a sua graça e os sacramentos que a comunicam. A força dos mártires vive da «fonte celeste de água viva que brota das entranhas de Cristo»
A difusão da devoção ao Coração de Cristo
O lado trespassado, onde reside o amor de Cristo, do qual, por sua vez, brota a vida da graça, assumiu gradualmente a forma do coração, sobretudo na vida monástica. Sabemos que, ao longo da história, o culto ao Coração de Cristo não se manifestou de modo igual, e que os aspectos desenvolvidos nos tempos modernos, relacionados com diversas experiências espirituais, não podem ser extrapolados para as formas medievais e muito menos para as formas bíblicas, nas quais podemos vislumbrar as sementes deste culto. No entanto, hoje a Igreja não despreza nenhum dos bens que o Espírito Santo nos deu ao longo dos séculos, sabendo que será sempre possível reconhecer em certos pormenores da devoção um sentido mais claro e pleno, ou compreender e desvendar novos aspectos dela.
Várias mulheres santas relataram experiências de encontro com Cristo, caracterizado pelo repouso no Coração do Senhor, fonte de vida e de paz interior.
São Francisco de Sales
Nos tempos modernos, destaca-se o contributo de São Francisco de Sales. Ele contemplou muitas vezes o Coração aberto de Cristo, que nos convida a habitar dentro dele numa relação pessoal de amor, na qual se iluminam os mistérios da vida.
Podemos ver no pensamento deste santo doutor como, face a uma moral rigorista ou a uma religiosidade de mero cumprimento de obrigações, o Coração de Cristo lhe aparece como um apelo à plena confiança na ação misteriosa da sua graça.
É assim que ele se exprime na sua proposta à baronesa de Chantal: «É para mim bem claro que não permaneceremos mais em nós mesmos [...] habitaremos para sempre no lado trespassado do Salvador, pois sem ele não só não podemos, mas, mesmo que pudéssemos, não quereríamos fazer nada»
Uma nova declaração de amor
Foi sob a influência salutar da espiritualidade de São Francisco de Sales que tiveram lugar os acontecimentos de Paray-le-Monial, no final do século XVII. Santa Margarida Maria Alacoque relatou importantes aparições entre o fim de dezembro de 1673 e junho de 1675. É fundamental a declaração de amor que se destaca na primeira grande aparição.
Jesus diz: «O meu divino Coração está tão abrasado de amor para com os homens, e em particular para contigo, que, não podendo já conter em si as chamas da sua ardente caridade, precisa derramá-las por teu meio, e manifestar-se-lhes para os enriquecer de seus preciosos tesouros, que eu te mostro a ti»
São Cláudio de La Colombière
Quando São Cláudio de La Colombière soube das experiências de Santa Margarida, tornou-se imediatamente seu defensor e divulgador. Ele teve um papel especial na compreensão e difusão desta devoção ao Sagrado Coração, mas também na sua interpretação à luz do Evangelho.
São Charles de Foucauld e Santa Teresa do Menino Jesus
São Charles de Foucauld e Santa Teresa do Menino Jesus, sem o pretenderem, reformularam certos elementos da devoção ao Coração de Cristo, ajudando-nos a compreendê-la de uma forma ainda mais fiel ao Evangelho. Vejamos agora como se exprime esta devoção nas suas vidas. No próximo capítulo voltaremos a eles para mostrar a originalidade da dimensão missionária que ambos desenvolveram de modos diferentes.
Iesus Caritas
Em Louye, São Charles de Foucauld fazia visitas ao Santíssimo Sacramento com a sua prima, Madame de Bondy, e um dia ela indicou-lhe uma imagem do Sagrado Coração.
Santa Teresa do Menino Jesus
Tal como São Charles de Foucauld, Santa Teresa do Menino Jesus respirou a enorme devoção que inundava a França no século XIX. Padre Almire Pichon foi o diretor espiritual da sua família e foi considerado um grande apóstolo do Sagrado Coração.
Uma irmã sua tomou o nome religioso de “Maria do Sagrado Coração”, e o mosteiro em que Santa Teresa entrou era dedicado ao Sagrado Coração. No entanto, a sua devoção assumiu algumas características próprias, que iam além das formas pelas quais se expressava naquela época.
Ressonâncias na Companhia de Jesus
Vimos como São Cláudio de La Colombière relacionava a experiência espiritual de Santa Margarida com a proposta dos Exercícios Espirituais. Penso que o lugar do Sagrado Coração na história da Companhia de Jesus mereça algumas breves palavras.
A espiritualidade da Companhia de Jesus sempre propôs um «conhecimento interno do Senhor […] para que mais o ame e o siga». Nos seus Exercícios Espirituais, Santo Inácio convida a colocarmo-nos diante do Evangelho que nos diz sobre Jesus: «ferido com a lança o seu lado, manou água e sangue».
Uma longa corrente de vida interior
A devoção ao Coração de Cristo reaparece no caminho espiritual de vários santos muito diferentes entre si e, em cada um deles, esta devoção assume novos aspectos. São Vicente de Paulo, para dar um exemplo, dizia que o que Deus quer é o coração: «Deus pede principalmente o coração, o coração, que é o principal. Por que razão quem não tem bens merece mais do que quem, tendo grandes posses, renuncia a elas? Porque quem não tem nada, vai a Ele com mais afeto; e é isso que Deus quer de modo especial».
Isto implica aceitar que o próprio coração se una ao de Cristo: «Uma Irmã que faz todo o possível para predispor o seu coração a estar unido ao de Nosso Senhor […] quantas bênçãos não receberá de Deus!»
A devoção da consolação
151. A chaga do lado, de onde brota a água viva, permanece aberta no Ressuscitado. Esta grande ferida causada pela lança, e as chagas da coroa de espinhos que aparecem com frequência nas representações do Sagrado Coração, são inseparáveis desta devoção. Nela contemplamos o amor de Jesus Cristo que foi capaz de se entregar até ao fim.
O coração do Ressuscitado conserva estes sinais da doação total que implicou um intenso sofrimento por nós. Portanto, de algum modo, é inevitável que o fiel queira responder não só a este grande amor, mas também à dor que Cristo aceitou suportar por causa de tanto amor.
CAPÍTULO V
AMOR POR AMOR
Nas experiências espirituais de Santa Margarida Maria encontramos, junto da declaração ardente do amor de Jesus Cristo, uma ressonância interior que nos chama a dar a vida. Sabermo-nos amados e colocar toda a nossa confiança nesse amor não significa anular as nossas capacidades de doação, não implica renunciar ao desejo irrefreável de dar alguma resposta a partir das nossas pequenas e limitadas capacidades.
Um lamento e um pedido
A partir da segunda grande manifestação a Santa Margarida, Jesus exprime dor porque o seu grande amor pelos homens «não recebia senão ingratidão e friezas. Isto – disse-me Ele – custa-me muito mais do que tudo quanto sofri na minha Paixão».
Prolongar o seu amor nos irmãos
É preciso voltar à Palavra de Deus para reconhecer que a melhor resposta ao amor do seu Coração é o amor aos irmãos; não há maior gesto que possamos oferecer-lhe para retribuir amor por amor. A Palavra de Deus di-lo com toda a clareza:
«Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40).
«Toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gl 5, 14).
«Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte» (1 Jo 3, 14).
«Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4, 20).
Algumas ressonâncias na história da espiritualidade
Esta união entre a devoção ao Coração de Jesus e o compromisso com os irmãos atravessa a história da espiritualidade cristã. Vejamos alguns exemplos.
Ser uma fonte para os outros
A partir de Orígenes, vários Padres da Igreja interpretaram o texto de João 7, 38 – «hão de correr do seu coração rios de água viva» – como referindo-se ao próprio fiel, ainda que seja a consequência de ele próprio ter bebido de Cristo. Assim, a união com Cristo não tem apenas o objetivo de saciar a própria sede, mas de se tornar uma fonte de água fresca para os outros.
Orígenes dizia que Cristo cumpre a sua promessa fazendo brotar em nós correntes de água: «A alma do ser humano, que é imagem de Deus, pode conter em si mesma e produzir de si mesma poços, fontes e rios»
Fraternidade e mística
São Bernardo, ao mesmo tempo que convidava à união com o Coração de Cristo, aproveitava a riqueza desta devoção para propor uma mudança de vida fundada no amor. Ele acreditava que era possível uma transformação da afetividade, escravizada pelos prazeres, que não se liberta pela obediência cega a uma ordem, mas numa resposta à doçura do amor de Cristo. Supera-se o mal com o bem, vence-se o mal com o crescimento do amor: «Ama, pois, o Senhor, teu Deus, com o afeto de um coração pleno e íntegro, ama-o com toda a vigilância e circunspeção da razão, ama-o também com todas as forças, de modo que nem sequer tenhas medo de morrer por seu amor […]. Que o Senhor Jesus seja doce e suave ao teu coração, contra os prazeres carnais malignamente doces, e que a doçura vença a doçura, como um prego expulsa outro prego»
A reparação: construir sobre as ruínas
Tudo isto nos permite compreender, à luz da Palavra de Deus, que sentido devemos dar à “reparação” oferecida ao Coração de Cristo, e o que o Senhor realmente espera que reparemos com a ajuda da sua graça. Muito se discutiu a este respeito, mas São João Paulo II ofereceu uma resposta clara aos cristãos de hoje, a fim de nos guiar para um espírito de reparação mais em sintonia com o Evangelho.
Sentido social da reparação ao Coração de Cristo
São João Paulo II explicou que, entregando-nos em conjunto ao Coração de Cristo, «sobre as ruínas acumuladas pelo ódio e pela violência, poderá ser construída a civilização do amor tão desejada, o Reino do Coração de Cristo»; isto implica certamente que sejamos capazes de «unir o amor filial para com Deus ao amor do próximo»; pois bem, «é esta a verdadeira reparação pedida pelo Coração do Salvador». Junto a Cristo, sobre as ruínas que, com o nosso pecado, deixámos neste mundo, somos chamados a construir uma nova civilização do amor. Isto é reparar conforme o que o Coração de Cristo espera de nós. No meio do desastre deixado pelo mal, o Coração de Cristo quis precisar da nossa colaboração para reconstruir a bondade e a beleza.
Reparar os corações feridos
Por outro lado, uma reparação meramente exterior não é suficiente; nem para o mundo, nem para o Coração de Cristo. Se cada um pensar nos seus próprios pecados e nas consequências para os outros, descobrirá que reparar os danos causados a este mundo implica também o desejo de reparar os corações feridos, onde se produziu o dano mais profundo, a ferida mais dolorosa.
O espírito de reparação «convida-nos a esperar que cada ferida possa ser curada, por mais profunda que seja. A reparação completa parece por vezes impossível, quando se perdem definitivamente bens ou pessoas queridas, ou quando certas situações se tornam irreversíveis. Mas a intenção de reparar e de o fazer concretamente é essencial para o processo de reconciliação e para o regresso da paz ao coração» .
A beleza de pedir perdão
Não bastam as boas intenções; é indispensável um dinamismo interior de desejo, que terá consequências externas. Em suma, «a reparação, para ser cristã, para tocar o coração da pessoa ofendida e não ser um simples ato de justiça comutativa, pressupõe duas atitudes exigentes: reconhecer a culpa e pedir perdão [...] É deste reconhecimento honesto do mal causado ao irmão, e do sentimento profundo e sincero de que o amor foi ferido, que nasce o desejo de reparar».
Fazer o mundo enamorar-se
A proposta cristã é atrativa quando pode ser vivida e manifestada na sua integralidade: não como um simples refúgio em sentimentos religiosos ou em cultos faustosos. Que culto seria o de Cristo se nos contentássemos com uma relação individual desinteressada em ajudar os outros a sofrer menos e a viver melhor? Poderá agradar ao Coração que tanto amou se nos mantivermos numa experiência religiosa íntima, sem consequências fraternas e sociais? Sejamos honestos e leiamos a Palavra de Deus na sua inteireza. Por isso mesmo dizemos que não se trata sequer de uma promoção social desprovida de significado religioso, que no fundo seria querer para o ser humano menos do que aquilo que Deus lhe quer dar. É por isso que temos de concluir este capítulo recordando a dimensão missionária do nosso amor ao Coração de Cristo.