Paolo Cugini
Um elemento surgido
no Concílio Vaticano II que contribuiu para contaminar toda a Igreja foi o
debate sobre a Igreja pobre e dos pobres. É verdade que pouco deste debate foi
incluído nos documentos do Concílio. A verdade, porém, é que as reflexões
propostas e debatidas no Concílio deixaram uma marca profunda em muitos bispos,
a ponto de contaminar as suas escolhas futuras nas dioceses a que pertencem.
Para uma análise aprofundada do debate conciliar sobre o tema em questão,
acompanhe o trabalho de Matteo Mennini (2016). A sua obra visa reconstruir um
debate que marcou profundamente o Concílio Vaticano II e que ajuda a
compreender melhor o significado do pontificado atual do Papa Francisco. Os
dois pontos de referência desta investigação histórica são a atividade do grupo
do Colégio Belga e o papel do seu principal animador, nomeadamente o padre
francês Paul Gauthier.
A pesquisa busca contextualizar o debate eclesial no contexto dos
acontecimentos para não correr o risco de reduzi-lo a uma simples disputa
teológica interna. O trabalho está estruturado em três partes. No primeiro,
Mennini (2016) reconstrói a gênese do tema em questão, apresentando também os
principais protagonistas do debate conciliar sobre a Igreja dos pobres. O
primeiro deles é o Papa João XXIII que, na famosa mensagem radiofónica
transmitida para anunciar a abertura do Concílio Vaticano II, anunciou que: “Diante dos países subdesenvolvidos a Igreja
apresenta-se como é e quer ser, como a Igreja de todos, e particularmente da
Igreja dos pobres” (Mennini, 2016, p. 43). Linguagem simples e clara,
que expressava o desejo de abrir um diálogo com o mundo sobre as questões
candentes da atualidade e, entre elas, a desigualdade social. Além disso, o
início da década de ‘60 do século passado, ainda estava muito próximo do fim da
Segunda Guerra Mundial e as nações estavam envolvidas na reflexão sobre o tipo
de progresso económico a propor. “Afirmou-se uma perspectiva dinâmica que, a
partir da Segunda Guerra Mundial e do paralelo ao processo de descolonização,
substituiu a definição de atraso pela de subdesenvolvimento” (Mennini, 2016, p.
56).
O Papa João XXIII com
as suas intervenções mostra que o Concílio Vaticano II não pretendia apenas
parar para esclarecimentos no interior da Igreja, mas quis oferecer a sua
contribuição para abordar os grandes temas do mundo contemporâneo. Uma figura
importante no debate sobre a Igreja dos pobres, à qual Mennini (2016) dedica
muito espaço ao longo da pesquisa, é o padre francês Paul Gauthier. Próximo das
experiências dos irmãozinhos de Charles de Foucauld e atento à experiência dos
padres operários, já presentes na França desde a década de 1930, Gauthier
distribuiu durante as primeiras semanas do Concílio um dossiê intitulado:
“Jesus, a Igreja e os pobres”, que oferecerá aos bispos e teólogos a
oportunidade de aprofundar a sua reflexão sobre a relação entre a Igreja e os
pobres. O dossiê surgiu da percepção de que a igreja, tendo perdido contato com
a classe trabalhadora, havia perdido contato com os pobres. Daí a questão
central: a separação entre a Igreja e as massas trabalhadoras foi um sintoma da
ruptura mais profunda entre a Igreja e Cristo? Gauthier colocou o dedo na
ferida da percepção que o mundo tinha de uma Igreja distante das massas
trabalhadoras:
Gauthier conectou a
ideia de que Cristo havia entrado no mundo dos trabalhadores e dos pobres
diretamente à doutrina da Mystici Corporis
, no qual se afirmava que o que veio da plenitude divina de Cristo flui para a
Igreja para que ela se pareça tanto quanto possível com Ele (Mennini, 2016, p.
63).
No dossiê Gauthier
recordou a Igreja à sua vocação original de anunciar o Evangelho aos pobres e,
para realizar este projeto, era necessário viver entre eles. O padre francês se
tornaria o líder de um grupo de bispos reunidos em outubro de 1962 pelos bispos
Himmer e Hakim, para começar a refletir sobre as questões candentes do dossiê
de Gauthier (1965). O encontro produziu diversas conclusões e propostas, entre
as quais a de eliminar os obstáculos que impediam a Igreja de mostrar ao mundo
do trabalho a sua verdadeira natureza e missão. A percepção partilhada pelo
grupo é que os pobres não conseguem aceitar as mensagens da Igreja porque ficam
escandalizados com os sinais externos e o nível de vida dos seus membros. Dois
membros do grupo, os Bispos Mercier e Hélder Camara, propuseram recorrer ao
Papa para que o Concílio tratasse explicitamente da pobreza da Igreja. Mennini
(2016) mostra o esforço do grupo de trabalho para desenvolver um texto que
mostrasse a relação intrínseca entre a atenção aos pobres, a igreja pobre e a
liturgia. Segundo o grupo, existe uma pompa litúrgica que ofende os pobres. A
Igreja dos pobres deve, portanto, ser visível tanto no estilo de vida dos
ministros como nas celebrações litúrgicas. “Não existe o perigo de que a
suntuosidade dos móveis e das vestes litúrgicas possa constituir motivo de
escândalo para quem assiste às cerimónias?”
(Mennini, 2016, p. 74).
São observações deste
tipo, expressas na sala do Conselho pelos representantes do colégio belga, que
animaram os debates do Concilio. Foi expressa cada vez mais uma profunda
preocupação por uma compreensão renovada da pobreza da Igreja como condição
para a sua credibilidade no mundo e que a pobreza da Igreja não poderia ser
simplesmente um tema entre outros. Segundo Mennini (2016), foi precisamente
esta forte presença do Colégio Belga no Concílio que provocou o debate da
Igreja pobre e dos pobres, mesmo fora das câmaras do Vaticano. Na verdade, o
autor cita cartas pastorais de muitos bispos e revistas católicas que falam
ampla e profundamente sobre o tema em questão. Entretanto, Paul Gauthier,
verdadeiro líder do grupo de trabalho constituído sobre o tema da pobreza da
Igreja, lançou em 1963 um novo livro no qual perguntava por que era tão difícil
falar da Igreja dos pobres. Gauthier estava consciente de que o problema da
Igreja dos pobres punha em causa a estrutura eclesiológica tradicional. “Para um cristão – sublinha o autor – Cristo está
tão presente nos pobres como na Eucaristia e na hierarquia. Admitir isto
significou muito mais do que uma orientação pastoral, não foi a atualização de
uma prática, mas do próprio conteúdo da fé” (Mennini, 2016, p. 101).
Tornou-se assim cada
vez mais claro que o movimento desencadeado pelas reuniões do Colégio Belga e,
sobretudo, pela ação de Paul Gauthier, ultrapassou o âmbito do próprio Concílio
e influenciou o debate pastoral de muitas dioceses. Os encontros no Colégio
Belga deram início à promoção de uma experiência concreta e visível da pobreza
na Igreja e da evangelização dos pobres. O próprio Gauthier iniciou uma
reflexão sobre a pobreza numa perspectiva ecumênica e a relação da Igreja com o
comunismo, que o grupo de trabalho olhou com grande preocupação pastoral.
Durante a segunda sessão do Concilio, os membros do grupo do Colégio Belga
reuniram-se para analisar o trabalho realizado. Monsenhor Himmer afirmou que,
ao lado de aspectos positivos, incluindo a difusão da sensibilidade em relação
ao tema da Igreja pobre e dos pobres entre os fiéis leigos, havia, no entanto,
algumas dúvidas. Himmer argumentou que as próprias categorias nas quais ele
vinha trabalhando há algum tempo não eram claras.
O que significa Igreja
dos Pobres? Como foi entendida a presença de Cristo nos pobres? Qual é a
relação entre uma Igreja que quer viver na pobreza, a evangelização dos pobres
e as formas de ajuda paternalista? (Mennini, 2016, p. 130).
O debate sobre a Igreja
dos pobres torna-se cada vez mais tenso com o passar do tempo, até porque nem
todos conseguem acompanhar a impetuosidade e as contínuas provocações de Paul
Gauthier. Alguns exegetas e teólogos e, entre eles, o teologo De Lubac (2017),
depois de terem analisado os projetos de documentos produzidos pelo grupo, para
serem discutidos nas sessões conciliares, consideraram aqueles textos demasiado
ideológicos e não isentos de erros graves.
Na terceira e última
parte do livro Mennini (2016) aborda o tema da relação da Igreja com a
modernidade. Encontramo-nos num ponto de viragem no Concilio. A morte do Papa
João XXIII e a eleição de Paulo VI criaram muitas tensões tanto no mundo
eclesial como civil. A grande questão que muitos se colocavam era perceber se o
novo Papa tinha continuado no estilo do Papa João. Desde os primeiros
movimentos, como afirma Mennini (2016) e, sobretudo, a primeira encíclica de
Paulo VI, a Ecclesiam suam, dissipou todas as dúvidas. A encíclica, de
fato, estabeleceu como ponto de partida a atitude daquele diálogo que tinha
sido característico do estilo do Papa João. Um dos pontos mais quentes desta
nova etapa conciliar, a partir do tema que o livro trata, segundo o autor, gira
em torno do novo livro de Paul Gauthier: Le Concile
et l' Eglise des Pauvres (1965). Segundo Mennini (2016), o texto
de Gauthier, enviado em forma de manuscrito a Himmer e a vários bispos, para
recolher as primeiras opiniões, encontrou muita resistência. O problema do
estilo, da forma correta de utilizar e propor as teses mais significativas da
Igreja dos pobres, desenvolvidas pelo grupo, começa cada vez mais a surgir.
Mercier esperava que as aquisições teológicas do grupo do Colégio Belga fossem
retrabalhadas por Congar e Mollat, a fim de estimular novas pesquisas, e assim
garantir maiores garantias sobre o referencial teórico a ser apresentado na
comissão conciliar.
Foram estudadas
diversas estratégias sobre como apresentar o problema da Igreja dos pobres no
debate conciliar. Por um lado, há quem defendia que é necessário antes de tudo
falar diretamente com Paulo VI e, por outro, quem não considerava que tal
abordagem fosse necessária. Neste contexto, o autor destaca a ação do então
bispo de Bolonha Lercaro, coadjuvado por Giuseppe Dossetti. À medida que
avançamos na reflexão percebemos cada vez mais que:
não bastava afirmar a necessidade do espírito
de pobreza dos indivíduos, mas era preciso condenar o das instituições e, ainda
mais, as formas modernas de usura, superar as formas de caridades de esmola
para desenvolver estruturas de cooperação em favor da autonomia dos pobres
(Mennini, 2016, p. 176).
Neste ponto, o debate
se amplia para a busca das causas da pobreza. O Bispo Zoungrana do Alto Volta,
falou em nome de 70 bispos africanos, argumentando que, o atraso no
desenvolvimento, especialmente em África, se deveu a vários fatores. Antes de
mais nada, foi necessário considerar a questão demográfica, o uso da terra,
combinada com a limitada possibilidade de investimentos e a consequente falta
de competitividade comercial dos países pobres. O debate na Câmara do Concilio
continuou sobre o tema da questão dos trabalhadores e do comunismo. Pela
narrativa relatada por Mennini, podemos perceber a grande importância que
tiveram as intervenções de Woytila, que fez questão de apresentar e argumentar
os perigos do marxismo e, ao mesmo tempo, apresentar a Igreja como única
alternativa a ele. A partir deste momento, as intervenções no debate conciliar
centraram-se no tema do ateísmo dos pobres e dos trabalhadores influenciados
pelo comunismo. Também neste caso, foram esclarecedoras as reflexões propostas
por Paul Gauthier: “O ateísmo dos
pobres, diferente do dos ricos, esconde uma oração, silenciada pela propaganda
que abusou da ignorância das massas, pela miséria que causou um sentimento de
abandono e injustiça” (Mennini,
2016, p. 205).
Segundo Gauthier (1965),
a condenação do comunismo pela Igreja teria distanciado ainda mais os
trabalhadores e, portanto, os pobres, da Igreja. Muitos dos pedidos propostos
tanto por Gauthier como pelo grupo reunido no Colégio Belga, não foram
aprovados ou foram aprovados de forma muito obscura. Foi por esta razão e com
esta consciência que um grupo de cerca de sessenta bispos conciliares reuniu-se
no dia 16 de novembro de 1965, cerca de vinte dias antes o encerramento do
Concílio, para celebrar uma missa durante a qual assinaram um pacto, que ficou
na história como o pacto das catacumbas. Neste texto, os bispos
presentes no evento, declararam a sua disponibilidade para viver com sobriedade
no que diz respeito à alimentação, à habitação e aos meios de transporte “de
uma forma coerente com a vida quotidiana do nosso povo” (Mennini, 2016, p.
221). Declararam também, que não queriam possuir nada, confiando a gestão
financeira a leigos. O compromisso estendeu-se também ao envolvimento dos
irmãos e da sociedade civil neste estilo de sobriedade evangélica.
Paul
Gauthier (1914-2002) foi um padre e teólogo francês, considerado um dos
precursores da Teologia da Libertação. Tem trabalhado principalmente no Médio
Oriente e na América Latina em nome das pessoas mais pobres. Juntamente com
Ettore Masina fundou a Rete Radie Resh pela solidariedade internacional.