Retomar os textos de Emmanuel Mounier, folhear as
páginas da revista Esprit por ele fundada, pode parecer um gesto
obsoleto, uma nostalgia do passado. Em parte, este também é o caso, mas há
mais. O que acompanha as páginas que apresentamos é o desejo de compartilhar
minha caminhada filosófica pessoal ao longo de trinta anos, em busca de um
pensamento cristão capaz de ler e interpretar a realidade, mostrando ao mesmo
tempo a novidade e a força do Evangelho. Mounier foi, em seu tempo, uma
referência para todos e todas aqueles que tentaram ler as páginas escuras da
história entre as duas grandes guerras, a partir de uma perspectiva cristã.
Nessa empreitada, ele estava em boa companhia. De fato, na França dos anos 30,
o debate sobre o pensamento cristão e sobre a possibilidade de uma filosofia
cristã era muito vivo. Autores como Blondel, Gilson, Maritain, só para citar
alguns, levantaram a voz, abrindo um debate significativo sobre o tema em
questão. Buscar uma relação entre fé e vida, liturgia e história, nunca foi
fácil. Isso é testemunhado por páginas da história em que muitas vezes assistimos
ou ao retraimento intimista e individualista, que demonstra o medo do mundo,
mais do que o desejo de transformá-lo por dentro, mergulhando nele confiando no
conteúdo da fé para qual adere. Por outro lado, a tentação de mergulhar no
mundo a ponto de esquecer ou negar as próprias origens cristãs. Mounier
experimentou esse delicado equilíbrio entre fé e vida na primeira pessoa e
sempre teve o cuidado de descrevê-lo, de mostrar caminhos concretos para
alcançar uma harmonia possível. Acompanhar seu compromisso de não se deixar
levar pela ânsia de ação, de permanecer concentrado na busca dos fundamentos
espirituais, que possam iluminar e dar sentido à ação, será o objetivo da
primeira parte desta pesquisa, que busca narrar o nascimento da revista
Esprit. Um dos aspectos mais interessantes da experiência cultural de
Mounier, encontra-se no que podemos definir como o laboratório espiritual e
cultural que tem sido a revista Esprit . Mounier não é o pensador
clássico que à mesa elabora uma filosofia, um sistema filosófico abrangente. O
personalismo comunitário nasceu nas páginas da revista Esprit, uma
revista concebida como um laboratório cultural, em torno do qual Mounier
conseguiu envolver as melhores mentes pensantes da França nas décadas de 1930 e
1940. Um pensamento que quis e soube lidar com o mundo religioso protestante e
católico e com o pensamento político de esquerda, na busca contínua de oferecer
á crise de civilização que a Europa vivia, não só ideias culturais importantes
mas, talvez e acima de tudo, um método.
Buscar pontos de referência, caminhos já trilhados de
uma reelaboração conceitual que tente ler os dinamismos da história à luz da
proposta cristã é muito importante, especialmente nesta fase delicada do
pós-cristianismo, em que corremos o risco de esquecer tudo, de apagar da
memória histórica até as contribuições mais preciosas. Confrontar-se nesta
conjuntura histórica com o personalismo comunitário de Emmanuel Mounier pode
ser estimulante, também porque não é uma proposta filosófica amadurecida à
mesa, longe dos problemas da vida cotidiana. O pós-cristianismo é uma fase de
transição epocal em que se torna fácil deixar-se levar pela emoção da novidade,
da busca de novos caminhos, sem se preocupar muito com o que fica para trás.
Olhar para Mounier significa considerar a pessoa como o ponto de partida
fundamental, para todos aqueles que desejam trilhar um caminho na novidade que
a época atual traz, sem correr o risco de se perder, de se confundir. Essa
referência à pessoa torna-se ainda mais importante no clima filosófico
pós-metafísico, de perda daqueles fundamentos que marcaram o Ocidente.
Portanto, não uma referência qualquer, mas à forma como o personalismo de
Mounier compreende a pessoa, ancorado na fonte cristã na qual ainda hoje é
possível beber sem medo de ser esmagado sob os escombros de um passado pesado.
Por isso, na segunda parte desta pesquisa apresentaremos alguns dos temas que
marcaram o caminho da proposta personalista de Mounier, temas que, como teremos
meios de demonstrar, permanecem constantemente abertos ao confronto com a
dinâmica cultural do tempo.
Como todo pensamento e como toda proposta cultural,
que marca uma época e oferece o que pensar para gerações inteiras, também a
proposta de Mounier não nasce por acaso, não se desenvolve de forma isolada,
mas tem origens, provoca comparações. Esse é o sentido da terceira parte da
pesquisa, que propõe uma comparação com o autor que o próprio Mounier define
como mestre: Charles Péguy. Há relações culturais que se transformam em amizades
espirituais, mesmo que os autores nunca tenham-se conhecido, como é o caso de
Mounier e Péguy. As amizades culturais que marcam uma vida, porque vão fundo,
abrem passagens na alma e no coração, dirigem o pensamento, constituem um guia
tão importante que se mantém sempre presente durante o percurso da vida. Ao
longo dos anos, ao aprofundar o pensamento de Mounier, encontrei alguns autores
cujas reflexões se referiam constantemente ao pai do personalismo comunitário.
Uma delas é a filósofa francesa Simone Weil. Muitas vezes me questionei sobre o
motivo da falta de colaboração entre os dois pensadores e, por isso, decidi
dedicar algumas páginas ao tema.
O último esforço de pesquisa é voltado para eventos
atuais. Aqui o caminho se complica, porque o risco é de se atolar no pântano do
imediato, das simpatias temáticas, correr o risco de perder de vista a
seriedade do caminho, a atenção às perspectivas que se pretende observar. Por
isso, considerei oportuno comparar o personalismo com o meu campo específico de
trabalho, que é a pastoral, que consiste no esforço diário de anunciar o
Evangelho no contexto específico de uma paróquia. Este é o conteúdo da quarta e
última parte desta pesquisa.
Sem dúvida, a reflexão de Mounier apresenta alguns
aspectos ultrapassados, pois estão vinculados ao período em que sua proposta
foi elaborada. A situação política e cultural de nossos dias mudou e, em alguns
aspectos, não se pode propor paralelos. De qualquer forma, o que há de
significativo no personalismo de Mounier é a capacidade de pensar os problemas
encontrados sem buscar respostas imediatas capazes de satisfazer a maioria, mas
de elaborar uma proposta para a frente. Tentaremos ao longo dos capitulos, de
mostrar os conteudos que aindam podem oferecer sentido ao nosso caminho, nesta
cultura pós moderna e pós cristã.