terça-feira, 30 de dezembro de 2025

A proposta pós-humanista de Leonardo Caffo

 




O filósofo italiano Leonardo Caffo afirma que o pós-humano contemporâneo não é ficção científica tecnológica, mas sim um projeto ético que parte da crítica ao especismo e ao antropocentrismo para repensar a humanidade como frágil, limitada e em relação com os outros seres vivos (Caffo, 2017, p. 82). O autor propõe uma transformação do olhar humano sobre os animais, a técnica e o planeta, convidando à construção de um pós-humanismo dos limites, no qual a renúncia ao domínio se torna a condição mesma de uma nova forma de progresso.

O volume é relativamente breve, mas densíssimo, e divide-se em duas partes principais: Transformação e Especiação. Esta estrutura acompanha o leitor desde o diagnóstico do presente (crítica ao especismo e ao antropocentrismo) até à proposta positiva de uma nova configuração ética pós-humana. A Introdução esclarece que o pós-humano contemporâneo é uma “antecipação de um estado de coisas futuras” (Caffo, 2017, p. VIII) que já tem as suas causas no presente, sobretudo nas relações com os animais e na técnica. Caffo rejeita a versão puramente tecnológica do pós-humano (cyborg, imortalidade, aprimoramento), sublinhando que o verdadeiro nó é ético e político. A proposta, portanto, é a de um caminho de desconstrução (Caffo cita explicitamente Derrida), que consiste em “despir um problema sem se preocupar com a sua nova roupagem” (Caffo, 2017, p. IX).

A primeira parte, Transformação, discute a primeira transformação como inversão do nosso olhar especista sobre o mundo, uma espécie de pílula do antiespecismo, que torna visível o matadouro oculto da sociedade contemporânea. A segunda parte, frequentemente identificada como Especiação, desenvolve a ideia de uma nova forma de humanidade que aceita o limite, renuncia à ideia de domínio absoluto e se pensa inserida numa constelação de vidas e ambientes, e não acima deles.

Transformação

A secção inicial gira em torno do conceito de especismo, definido como a discriminação sistemática das outras espécies em favor do Homo sapiens, que se torna o motor oculto da economia e da nossa organização social. Caffo resgata o termo elaborado por Richard D. Ryder (Caffo, 2017, p. 7), mas relacionando-o às formas concretas de exploração: pecuária, indústria alimentar, vestuário, entretenimento e experimentação científica, todos elementos que estruturam o nosso quotidiano.

Nas páginas iniciais da primeira parte, o autor insiste no facto de que o mundo social, se visto através da pílula do antiespecismo, aparece como um matadouro, onde a morte sem sentido dos animais é normalizada e tornada invisível.

Esquecemo-nos de que não estamos sozinhos. O especismo é o motor da economia: com os animais, e com o que resta dos seus corpos, produzimos literalmente qualquer coisa […]. Portanto, os animais estão em todo o lado, mas não os conseguimos ver, porque, simplesmente, os escondemos: o especismo é também um encobrimento (Caffo, 2017, p. 9-10).

Esta mudança de olhar não é uma simples tomada de consciência moral, mas uma verdadeira transformação ontológica da forma como o humano se coloca no mundo. O eixo ético da primeira transformação consiste em desmontar a ideia de que o planeta é nossa casa no sentido de propriedade exclusiva. Caffo afirma que a humanidade especista convenceu-se de que o planeta é nosso, construindo uma moldura ideológica que justifica toda a forma de exploração. Sem a moldura do especismo, sustenta, o antropocentrismo não teria força para orientar e legitimar a nossa prática quotidiana de domínio. Nesta primeira parte, delineia-se um primeiro perfil do antropocentrismo como um olhar pobre de mundo, que reduz a diversidade do vivente a adorno e fundo da experiência humana. O vivente não-humano surge, assim, como simples recurso ou figura decorativa, e não como sujeito de uma história própria ou portador de um mundo experiencial próprio. “O especismo é um uso da razão como virtude não indiferente: o humano fala, o animal não; o humano pensa, o animal não; o humano é autoconsciente, o animal não” (Caffo, 2017, p.14). A razão como característica distintiva do humano é um dos paradoxos ilusórios do especismo, pois provoca uma leitura distorcida não só da realidade, mas também do que é o humano.

Um ponto central do livro é o confronto com tradições filosóficas que exaltam o super-homem, a força e a vontade de potência, assumidas por vezes como modelos de emancipação. Caffo cita de forma crítica a figura do predador e do jovem dominador que deve aprender o sentido do domínio, imaginando uma juventude terrível e pronta a esmagar todo o limite.

Num trecho significativo do livro, o autor faz referência a um discurso em que se invoca uma educação para a predação, para a vitória a todo o custo, para o apagamento do medo da morte. Esta retórica, que evoca tanto Nietzsche como tendências políticas do século XX, representa para Caffo a versão extrema do antropocentrismo armado e violento. Caffo sublinha que grande parte do nosso antropocentrismo quotidiano assenta na humanização da diversidade animal, ou seja, na projeção de esquemas humanos (vontade, desejo, intenção) em formas de vida que permanecem, contudo, alheias à nossa experiência. Em vez de reconhecer a alteridade radical dos animais, aplica-se uma espécie de homem vitruviano à teoria da mente, medindo todo outro ser vivo pelos parâmetros humanos. Este processo violento marca profundamente o discurso ético:

Os grandes desafios éticos que caracterizam o presente, desde a ecologia profunda até ao feminismo radical que, com razão, pretende eliminar definitivamente a posição de inferioridade da mulher em muitas sociedades contemporâneas, têm todos o mesmo limite: o que não é humano, simplesmente, está ausente. O especismo é o limite de toda a moral (Caffo, 2017, p. 16).

Neste quadro, o pós-humano contemporâneo não é um simples além-do-humano em sentido de potencialização, mas sim um contra esta tradição de domínio, que transformou a superioridade de espécie em destino político e cultural. A ideia de super-homem é, assim, repensada não como intensificação da potência, mas como abandono da centralidade violenta do Homo sapiens. Perante este cenário, que parece sem retorno, Caffo propõe um caminho em que se deveriam realizar três transformações.

A primeira transformação é o eixo ético, que deveria levar-nos a olhar a realidade com novos olhos. “Enquanto for como espécie humana que pensamos em nós mesmos, sem compreender que cada vivente é antes de mais nada uma mônada que se abre ao exterior, o estaleiro permanecerá aberto” (Caffo, 2017, p. 26). Neste percurso, é preciso ter cuidado para não ficarmos presos nas grelhas conceptuais elaboradas pelo antropocentrismo. Se o especismo, de facto, é uma narrativa positiva, pois convida-nos a fazer o que queremos sem nos preocuparmos com o destino dos animais, por outro lado, o anti-especismo propõe uma narrativa exclusivamente negativa. Segundo Caffo, precisamos de conhecer um mundo possível alternativo em relação àquele que é criticado.

A segunda transformação está sempre na ordem do caminho de desconstrução. Houve, de fato, um processo de identificação indevida do Homo sapiens com o ser, que conduz, como consequência lógica, a deslocar para o plano do não-ser tudo aquilo que não pertence à identificação indevida. É necessária, portanto, uma transformação de tipo metafísico, que saiba também considerar o contributo cognitivo de outras culturas, como a oriental, que “convive há séculos com esta crença segundo a qual a natureza se diferencia quantitativamente, mas nunca qualitativamente” (Caffo, 2014, p. 37). Trata-se de uma passagem que nos conduz a um descentralização, que nos desloca para a periferia. Se eliminarmos o centro, elimina-se também qualquer possibilidade de discriminação local: “não só o humano como ideal, mas também o ideal de humano tornam-se símbolos de um passado superado” (Caffo, 2017, p. 39).

Por fim, a terceira transformação passa pelo eixo científico, que, a partir das intuições de Darwin, reconsidera o delicado tema colocado pelo criacionismo. Esta última transformação entrega um homem não criado, nem criador e, consequentemente, não dominador, como ocorreu na história não apenas ocidental. “Não vir dos céus, mas das entranhas da terra, muda radicalmente a postura filosófica com a qual observamos a realidade” (Caffo, 20217, p. 49). Somos estrangeiros migrantes vindos de um lugar desconhecido, adentrando um tempo limitado que compartilhamos com todas as outras formas de vida. Nessa nova perspectiva, muito semelhante às indicações da física quântica, a filosofia se abre ao que está fora de nós, plantas e animais. Talvez, conclui Caffo, a nova metafísica seja a ecologia. “O pós-humano começa aqui, pela tomada de consciência de um fracasso: nosso corpo, agora despido de seus três falsos trajes, está pronto para a mutação definitiva, a transformação final” (Caffo, 2017, p. 51).

Especiação

A segunda parte do livro, intitulada Especiação, desloca a atenção da crítica do presente para a construção de uma possível humanidade futura. O pós-humano contemporâneo é definido como uma configuração em que o humano se redesenha, aceitando sua própria fragilidade, a interdependência com outros seres vivos e uma relação não predatória com a técnica. Caffo afirma que o pós-humanismo que defende é “a compreensão da positividade do conceito de limite” (Caffo, 2017, p.56): parar, quando avançar equivaleria a violência, torna-se o único modo verdadeiro de progredir. Os limites não são barreiras a serem derrubadas, mas recursos que permitem evitar novas formas de dominação, sobretudo sobre os mais vulneráveis, humanos e não humanos (Caffo, 2017, p.58).

O autor distingue seu pós-humano das versões tecno-utópicas do pós-humanismo e do transumanismo, que visam ao aprimoramento ilimitado, à hibridização total homem-máquina ou à fuga da condição mortal. Em vez de superar a morte e a fragilidade, o pós-humano contemporâneo assume esses aspectos como constitutivos de nossa posição no mundo e os integra em uma ética da responsabilidade e do cuidado. Aqui, o referencial de um realismo pós-antropocêntrico torna-se central: o mundo existe independentemente de nós, mas o que conhecemos é sempre a interação entre sujeito e objeto, que chamamos de ambiente. Cada forma de vida observa a realidade segundo sua própria dotação cognitiva, e, no entanto, existe uma só realidade a interpretar, razão pela qual o realismo e a hermenêutica são inseparáveis.

A segunda parte do texto de Leonardo Caffo inicia-se com a proposta de um percurso em sete etapas para definir a parte construtiva de seu pensamento, propondo o pós-humano contemporâneo não como uma metáfora, mas como uma verdadeira nova espécie biológica que se distancia do Homo sapiens. “O pós-humano como obra aberta contrapõe-se, por princípios e parâmetros, ao humano como obra fechada do humanismo: é a maior mutação que nossa espécie está prestes a sofrer” (Caffo, 2017, p. 56).

Definição de pós-humano contemporâneo: O pós-humano é entendido como um substantivo que identifica uma espécie já existente, caracterizada por uma mudança de hábitos e adaptação biológica em resposta à crise ambiental e à superpopulação.

Uma nova ética: A passagem para uma conduta que supera o antropocentrismo, baseada na consciência de que o homem não é superior aos outros seres vivos.

Uma nova arte da interpretação: Uma revisão hermenêutica do mundo que não coloca mais o sujeito humano no centro de todo significado.

Teoria da antecipação (Arte e Arquitetura): O uso das disciplinas criativas para prever e construir os futuros espaços de vida da nova espécie.

Uma política da espécie: Uma reflexão sobre como organizar a convivência além dos limites de nação ou classe, olhando para a espécie como unidade política.

Evolução e Especiação: A análise do processo de especiação em curso, onde uma parte da humanidade abandona os traços destrutivos do Sapiens para sobreviver.

A hibridação: A etapa final que sintetiza a superação do domínio humano em favor de uma existência integrada e consciente de sua própria fragilidade dentro do ecossistema.

Essas etapas (Caffo, 2017, p. 56-87) servem ao autor para demonstrar que o pós-humano já está aqui e se manifesta através de quem escolhe viver de modo não antropocêntrico. Vale a pena retomar a proposta da sétima etapa. Caffo defende uma hibridação fraca, distanciando-se de forma clara das hibridações fortes do pós-humano tradicional.

A hibridação fraca é a imagem da vida como uma reta real, um conjunto totalmente ordenado (densamente ordenado) em que entre dois extremos do conjunto de pontos há sempre um terceiro elemento compreendido entre os dois primeiros; tal reta, que é a vida, não tem buracos, porque é essencialmente uma estrutura (Caffo, 2017, p. 87).

O que o autor pretende defender é que sua proposta não está alinhada com as teses daquele pós-humanismo radical que desemboca no transumanismo, propondo hibridações que tendem a favorecer toda tentativa de remover do humano aquilo que até agora o caracterizou, ou seja, o sofrimento, a dor, a morte. O título Humanidade frágil indica uma linha teórica precisa: não uma humanidade a ser potenciada até a invulnerabilidade, mas uma humanidade que reconhece a fragilidade como condição compartilhada com outros seres vivos e como fundamento de um novo ethos. A fragilidade não é um defeito a ser corrigido, mas a chave para desativar o dispositivo especista e antropocêntrico que justificou até agora o domínio sobre a alteridade animal e natural. Nas páginas finais, Caffo insiste que o pós-humanismo dos limites não é um retorno nostálgico ao passado, mas uma forma diferente de futuro, em que a técnica é repensada em função da redução da violência e não do aumento de poder. Parar diante da possibilidade técnica de explorar ou potencializar sem limites é apresentado como gesto político e ético radical, não como renúncia conservadora.

O livro se encerra deixando entrever um projeto filosófico mais amplo, em que antiespecismo, crítica ao capitalismo extrativo e pós-humanismo se entrelaçam na tentativa de desenhar uma nova espécie de humanidade, capaz de habitar o planeta sem pretender sua posse absoluta. Nesse sentido, a humanidade frágil é tanto diagnóstico do presente quanto programa para uma transformação futura, situada entre a ética animal, filosofia política e teoria crítica da técnica.

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