“Vi, então, um novo
céu e uma nova terra, morada de Deus com sua gente (…).
Nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor.
Sim! As coisas antigas passaram! Eis que faço novas todas as coisas”
(cf Ap 21, 1- 5).
“Cristo aponta para Amazônia”
A convocação
de São Paulo VI, que repetidas vezes nos inspirou como interpelação, se
configura agora como profecia: os olhares se voltam para Amazônia, pela riqueza
da sua biodiversidade e de seus povos, e isto nos alegra; mas também olhares
ambiciosos, que lançam sobre a região um avanço de depredação e ameaça à vida,
e isto nos causa indignação. Como Igreja Católica, também nós, lançamos nosso olhar vigilante, nossa
escuta contemplativa e esperançosa, nosso
comprometimento inequívoco; levantamos nossa voz, renovamos os
apelos à ecologia integral, ao cuidado com a casa comum, à proteção e
preservação da região e renovamos nosso empenho como aliados dos povos
desta Querida Amazônia.
Nós, bispos
da Amazônia, presbíteros e diáconos, religiosos e religiosas, cristãos leigos e
leigas em profunda sintonia com o Sínodo Pan-Amazônico, reunidos nos dias 18 e
19 de maio de 2021, desta vez nos servindo das tecnologias de comunicação, de
distantes nos fizemos próximos, como nos fazemos próximos do nosso povo como
uma Igreja que se põe à escuta e acolhe as culturas e tradições amazônicas,
expressão do Espírito de Deus. No exercício de nossa missão evangelizadora
dirigimos esta mensagem a toda sociedade, aos povos da Amazônia, aos homens e
mulheres comprometidos com a defesa da vida. E o fazemos profundamente
sensibilizados pela situação de vulnerabilidade e ameaças que sofre toda casa
comum, agravada pela pandemia da Covid-19, e pelo acirramento das disputas
territoriais com expansão das atividades minerais e do agronegócio em terras de
populações tradicionais. A consequência desse cenário de morte tem sido
as inúmeras e incontáveis vítimas da pandemia. Chegamos aos quase 440.000
mortos, além dos que sucumbiram diante de processos de violência no campo e na
cidade. Nos solidarizamos com todos os que tombaram vítimas do descaso e dos
projetos de morte. Como o salmista, reconhecemos a preciosidade da vida de cada
homem e de cada mulher que partiu: “É de alto preço, aos olhos do
Senhor, a morte dos seus fiéis” (Sl 116,15).
Nosso olhar vigilante
Acompanhamos
estarrecidos, mas não inertes, o desenrolar de um arquitetado projeto genocida
que, por sua vez, revela o devastador agravamento de uma crise que escancara a
pobreza diante da escandalosa concentração de riquezas. Este é o sinal evidente
da perversidade de uma economia de mercado, embasada no capital especulativo,
que se alimenta das necessidades dos estados nacionais, fazendo destes seus
novos consumidores. Assim, o capital sequestra a autonomia dos Estados, exige e
dita os novos rumos da política, rompe com as históricas conquistas sociais,
desmonta as instituições e políticas de seguridade, alimenta-se das posturas
extremistas, que por sua vez buscam na religião sua legitimidade de expressão.
Essa perversidade busca revestir-se de um maquiado desejo de liberdade e de
autonomia diante da lei, derruba os marcos legais que garantem o equilíbrio das
relações e a salvaguarda do bem comum. As lutas das populações da Amazônia têm
diante de si o escandaloso desafio da pretensiosa legalidade do ilícito. Ou
apelamos para a garantia legal da vida e dos territórios, ou nos defendemos
quando o extermínio se torna lei!
Este
dinamismo é escancaradamente presente diante da questão das lutas dos povos
indígenas. O cenário político indigenista vivido no Brasil é de retrocesso, com
o agravamento das violações dos direitos destes povos, principalmente no que se
refere à regularização dos seus territórios. Eles enfrentam invasões de suas
terras, incentivadas por estratégias políticas que favorecem a exploração, por
garimpeiros, mineradoras, madeireiros, desmatadores, agentes do agronegócio,
entre tantos outros, gerando toda espécie de violências e violações de direitos
humanos e da natureza. Somam-se os incêndios, poluição das águas dos rios,
contaminação de peixes, contaminação das pessoas e dos animais; assassinatos,
violência sexual, pandemia, desassistência.
Percebemos,
também, que a crise socioambiental, denunciada em 2019 durante o Sínodo,
acentuou-se durante a pandemia e revela os limites de um sistema que está sendo
rapidamente destruído e que tende a perecer se a crise não for
detida. Preocupa-nos a cadeia de iniciativas em vista do desmonte e
fragilização da legislação socioambiental e fundiária: O PL 3729/2004 que
desmonta o sistema de licenciamento ambiental; o PL 2633/2020 e PL 510/2021 que
abrem as “porteiras” para a grilagem de terras; o PL 191/2020 permitindo a
mineração e atividades econômicas em terras indígenas; o PL 6299/2002 que
flexibiliza fabricação e uso de agrotóxicos. A profecia não silencia diante
destas práticas: “Ai dos que inventam leis injustas, dos
escribas que referendam a injustiça para oprimirem os pobres no julgamento” (Is
10,1-2).
Enquanto
escrevemos estas linhas, populações que há mais de 30 anos estavam presentes em
seu chão, são despejadas no Assentamento Jacutinga em Porto Nacional –
Tocantins, contrariando a recomendação do Conselho Nacional de Justiça de não
executar decisões desse tipo em tempo de pandemia.
Outra série
de agressões vão se acumulando neste cenário que não escapa aos nossos olhos:
as ameaças às unidades de conservação, o acirramento da violência no campo e na
cidade, a crise migratória, o feminicídio, a exploração sexual, o trabalho
escravo, o tráfico de pessoas, entre tantos. Como se não bastassem essas crises
provocadas pela intervenção humana, o fenômeno das enchentes, que pode ser
agravado pelas mudanças climáticas, castiga nossas populações ribeirinhas. De
olho nas águas, percebemos uma iminente crise hídrica como pauta de um próximo
embate.
Somos
sabedores que os governantes têm o dever constitucional de agir para evitar a
destruição das riquezas naturais e implementar políticas públicas que amenizem
a situação de desigualdade e pobreza, porém, na Amazônia isso não vem
acontecendo. Assistimos um governo que vira as costas a esses clamores, opta
pela militarização em seus quadros, semeia estratégias de criminalização de
lideranças e provoca conflito entre os pequenos. Dói em nossos corações de
pastores as imagens de escárnio e zombaria das dores de nossa gente: “Nossa alma está farta, em extremo, da zombaria dos satisfeitos e
do desprezo dos soberbos” (Sl 123,4).
Não obstante
este cenário, mantemos viva e acesa nossa esperança no Ressuscitado: “No mundo tereis aflições, mas tende coragem! Eu venci o
mundo”. (Jo 16,33)
Nossa escuta contemplativa e esperançosa
Aprendemos
da experiência do Sínodo da Amazônia um olhar esperançoso. A Amazônia é também
resposta! Ela irrompe como novo sujeito e como novo paradigma pela questão
ecológica e pelos seus povos originários. A partir da Amazônia fomos desafiados
a assumir esses novos paradigmas em nossa ação evangelizadora. Os caminhos
traçados pelo Sínodo da Amazônia, catalogados em forma de compromisso no
novo Pacto das Catacumbas pela Casa Comum, deixaram
evidente a necessidade de superar uma lógica colonizadora, de escolher a
periferia como centro da Igreja, de assumir o caminho da inculturação e
interculturalidade, seja no campo dos ministérios como das estruturas: uma
Igreja com o rosto Amazônico.
Constatamos
com alegria a atuação de uma infinidade de comunidades constituídas e milhares
de lideranças de cristãos leigos, na sua maioria mulheres, que atuam no campo
da evangelização e educação socioambiental. A partir dos relatórios dos
Regionais da CNBB na Amazônia, verificamos que estamos a passos lentos, mas
progressivos, tornando concretos os caminhos de conversão propostos no
Documento Final do Sínodo e os quatro Sonhos do Papa Francisco na Exortação
Apostólica pós-sinodal Querida Amazônia.
Foi justamente para retomarmos o ardor do Sínodo da Amazônia e apreciar os
passos dados que fomos convocados para este encontro. Perguntamo-nos: “Que
mudanças efetivamente têm ocorrido em nossa ação evangelizadora desde as
indicações do Sínodo?”
Nosso comprometimento inequívoco
A Igreja na
Amazônia já tem um caminho. Somos uma Igreja que age sob a força e inspiração
do Espírito de Deus. A liberdade e ousadia do Evangelho são mais fortes que as
amarras e os desgastes das estruturas. A conversão pastoral, desde a Conferência
de Aparecida (2007), nos interpela, a conversão integral, desde o Sínodo da
Amazônia, nos inquieta. Somos sabedores dos desafios de manter a unidade em
tempos de conflitos, do nosso papel mediador. Não somos ingênuos de pautar
nosso agir em polarizações agressivas, como insistem até mesmo alguns que dizem
professar a fé em Jesus Cristo, mas não haja dúvidas de que lado nós estamos:
por causa do Evangelho e do Reino reafirmamos nossa incondicional escolha por
estas populações, por estes territórios, por estas vidas ameaçadas. Em nada nos
fascina qualquer aproximação com esses sistemas perversos, mas também aos que
neles se envolvem, anunciamos a Boa Nova de Jesus: “Cumpriu-se o tempo, e está próximo o Reino de Deus.
Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15)!
Não estamos
sozinhos, há outros interlocutores da fé cristã, de outras expressões
religiosas, de organizações populares, novos sujeitos emergentes; a partir dos
pequeninos nos sentimos irmanados neste compromisso. “Tudo isso nos une. Como não lutar juntos? Como não rezar juntos e
trabalhar lado a lado para defender os pobres da Amazônia, mostrar o rosto
santo do Senhor e cuidar de sua obra criadora?” (Querida
Amazônia 110).
Sentimo-nos
impulsionados e animados a reafirmar alguns compromissos:
- Prosseguir e avançar em nossa pauta
pastoral as reflexões e indicações ousadas do Sínodo em torno dos
ministérios, como apresenta o Documento Final do Sínodo nos números 103 e
111, e da formação inculturada dos nossos agentes;
- Elaborar um plano estratégico com
diretrizes pastorais, que encarne o sonho social, ecológico, cultural e
eclesial para a Pan Amazônia;
- Incentivar a questão da segurança alimentar
como estratégia de cuidado pela vida;
- Reafirmar nosso envolvimento efetivo com o
Pacto pela Vida e pelo Brasil, unindo-nos ao “coro dos lúcidos” fazendo
nossas as suas pautas: a vacina para todos, a defesa do SUS, o auxílio
emergencial digno, pelo tempo que se fizer necessário e a investigação da
responsabilidade pela má gestão do sistema de saúde em meio à pandemia do
coronavírus. Da mesma forma tornar vivo o Pacto Educativo Global, proposto
Papa Francisco, em todas as regiões da Amazônia. Conclamamos todas as
instâncias eclesiais e a sociedade como um todo a unir-se neste
engajamento;
“O que vos é sussurrado ao ouvido, proclamai-o sobre os telhados” (Mc 10,27). Tendo descoberto a
capilaridade das novas dinâmicas de comunicação, das quais nos servimos para
chegar junto às nossas comunidades em tempos de distanciamento social,
igualmente queremos por meio destes recursos fazer chegar a todos e todas estas
nossas inquietações, esperanças e compromissos.
Exortamos,
às mais variadas lideranças de cristãos leigos e leigas, que não desanimem da
luta, que renovem continuamente o senso de comunhão eclesial, que a paixão pelo
Reino de Deus seja sempre alimentada, e que a sensibilidade para com os mais
pobres seja permanente.
Não nos
faltem a intercessão de nossos mártires, companheiros de caminhada, e o olhar
benevolente da Senhora de Nazaré, Mãe da Amazônia: “esses vossos olhos
misericordiosos a nós volvei”! A Mãe de Deus está conosco. Sigamos em frente!