terça-feira, 17 de setembro de 2024

MIGUEL CALMON História de uma experiência pastoral na Bahia

 


O bispo de Reggio Emilia, dom Adriano, visitando Miguel Calmon no ano 2000


Paulo Cugini

 

Cheguei em Miguel Calmon no dia 11 de fevereiro de 2000 à tarde. Era uma sexta-feira. Entrei na igreja onde estava acontecendo um casamento com algumas pessoas. No domingo celebrei a missa da manhã e da tarde. Fiquei impressionado com o pequeno número de presenças. Na segunda-feira comecei a visitar os bairros de Miguel Calmon: queria perceber aonde tinha chegado. Fiquei imediatamente impressionado com a situação de pobreza e abandono dos bairros. Foi como se ninguém, ao longo do tempo, tivesse pensado a estas famílias que encontrei. Afinal, eu estava no Brasil há pouco tempo e ainda estava atordoado com a grande desigualdade que percebi. Em poucos metros avistavam-se casas muito pobres e, do outro lado da rua, bairros muito bonitos e bem cuidados. Miguel Calmon não fugiu à regra. A poucas centenas de metros ficava o bairro muito bem estruturado onde moravam o médico, o comerciante e o prefeito e, do outro lado da rua, o bairro Populares, muito pobre e desolado. Com meu amigo Gianluca, a quem liguei para vir me ajudar, decidimos ir morar no bairro Populares. Queríamos seguir os passos de Jesus, que, de rico, tornou-se pobre, como nos lembra São Paulo (2 Cor 9,10), e compreender a cidade não a partir do centro, onde se situava a casa paroquial, mas a partir da periferia, como fizera Jesus, que não nasceu em Jerusalém, mas na periferia, em Belém. É a partir deste observatório particular, vivendo por cinco anos sem luz e com água racionada, como os habitantes do bairro, que fizemos as nossas escolhas pastorais, que seguiram em três direções.

Saudade desta turma


Em primeiro lugar, a atenção aos pobres, o que significou uma visita sistemática e constante a mais de sessenta comunidades da zona rural e onze comunidades dos bairros da cidade. No segundo ano da minha estadia em Miguel Calmon, dividi a zona rural em oito regiões. Isso me permitiu visitar cada comunidade uma vez a cada dois meses. Saia na segunda à tarde e voltava na sexta à noite. Foi uma verdadeira imersão na vida das pessoas das comunidades. Cada dia visitava uma comunidade da região onde passava a semana. Comia e dormia em suas casas, compartilhava suas experiências. Na verdade, perguntei-me como era possível celebrar a Eucaristia, que na perspectiva de Jesus é uma refeição entre amigos, se não houvesse um mínimo de aproximação com as pessoas com quem celebrava. Viver em comunidades permitiu-me, ao longo do tempo, compreender os reais problemas das pessoas e das comunidades e sentir que estava em caminho com elas. Nas experiências pastorais realizadas na Itália sempre abri as portas da casa paroquial aos pobres, especialmente aos estrangeiros de origem africana. No Brasil foi o contrário: deixei que me hospedassem. Foi um verdadeiro banho de humanidade.

Olha a dupla em ação


A segunda escolha feita junto com Gianluca foram os jovens. Não poderia ser diferente. O bairro Populares, onde morávamos, estava lotado de crianças e adolescentes. Gianluca sempre teve o dom de saber lidar com crianças e isso também aconteceu no Brasil. No bairro onde morávamos e onde construímos uma das 14 capelas construídas nos cinco anos passados ​​em Miguel Calmon, considerando as construídas nos bairros da cidade e as da zona rural, Gianluca criou vários projetos voltados especialmente para os adolescentes. Na cidade o projeto mais significativo foi o coral. Em poucos meses Gianluca montou um coral com cerca de 150 crianças e adolescentes, que se reuniam duas vezes por semana, não só para ensaiar as músicas, mas também para treinar, auxiliados por um grupo de jovens. De minha parte, trabalhei na formação de grupos de jovens tanto nos bairros como na zona rural. Aos poucos, foi sendo visível a presença dos jovens na vida da paróquia. Lembro-me que no domingo, a missa da noite estava lotada de gente e de muitos jovens. Foram alguns deles, que naquela época estudavam na Universidade Jacobina, que nos pediram de comprar alguns livros. Os pobres não têm dinheiro para comprar as coisas necessárias, muito menos para comprar livros. A ideia de uma biblioteca para satisfazer as necessidades culturais dos jovens de famílias pobres, nasceu exatamente assim. Lembro-me das jornadas de estudo realizadas nos novos espaços da biblioteca, situada no primeiro andar do centro paroquial de São José, construída com a contribuição de amigos italianos. Também foram muito bonitos e intensos os dias de espiritualidade realizados na casa paroquial de Tapiranga, que enchi de beliches, justamente para acolher os jovens que vinham participar destas experiências espirituais.

Na frente da casa no bairro das Populares


A terceira escolha que marcou minha presença em Miguel Calmon foi a formação. Gosto de ajudar as pessoas que encontro no meu caminho, a compreender melhor o Mistério em que acreditamos: Deus que veio entre nós. Assim que cheguei em Miguel Calmon, encontrei um estudo bíblico semanal na cidade, que estruturei e incentivei. Foi impressionante descobrir, quando voltava das comunidades nas noites de sexta-feira, quase uma centena de pessoas dos bairros da cidade reunidas no salão paroquial, para meditar sobre um capítulo da Bíblia. Além deste momento semanal fundamental, tinha criado um mensal, aos domingos, para a formação teológica de leigos e leigas que, de diferentes formas, se empenharam no serviço às comunidades, tanto na cidade como na zona rural. Sempre fiquei muito impressionado com a grande participação nesses momentos de formação. Juntos estudamos os artigos do Credo, a história e a teologia dos sacramentos, os principais documentos do Concílio Vaticano II e muito mais. Caminhamos juntos ouvindo a Palavra de Deus e o Magistério da Igreja. É por isso que, depois de cinco anos de caminhada, havia tanta harmonia entre nós. Momentos formativos de grande importância foram os retiros espirituais com adultos e jovens, nos tempos fortes da igreja, nomeadamente o Advento e a Quaresma. O curso de formação política de 2003, tanto para candidatos como para cidadãos, foi fundamental neste processo de formação. Os jovens do Movimento Fé e Política foram uma presença maravilhosa no processo eleitoral de 2004, demonstrando com grande entusiasmo o desejo por um mundo mais justo e menos desigual.

Encerro esta breve narração com uma experiência pessoal. Só Deus sabe quanta alegria provocavam em mim as missas dominicais celebradas na igreja de Miguel Calmon. Todos os domingos à noite, durante a missa, parecia colher os frutos do trabalho pastoral realizado nas comunidades, encontrando muitas pessoas e muitos jovens. Era lindo olhar para os muitos rostos presentes e descobrir que, lentamente, domingo após domingo, eles foram passando do anonimato à identidade, porque os reconhecia um por um e ainda hoje os carrego todos no coração.

domingo, 15 de setembro de 2024

Quando a religião mexe com sociedade e a política

 





A ROMARIA MARIAL DE IPIRÁ


Paolo Cugini

 

 

A caminhada da Igreja Católica no Brasil, desde os anos ’70 do século passado e, sobretudo, depois do Concilio Vaticano II (1962-65), se caracteriza por uma busca da ligação entre fé e vida. As Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) foram o berço de uma experiencia de igreja incarnada na realidade, caminhando perto do povo, sobretudo os mais pobres e excluídos. É verdade que a caminhada atual da Igreja do Brasil, mudou o foco, tornando-se mais carismáticas, renunciando ao compromisso sociopolítico que a caracterizou no começo da caminhada. Apesar disso, as características principais das Cebs, como o engajamento dos leigos, a ministerialidade, a centralidade da Palavra permanece ainda hoje como um estímulo pela Igreja do mundo todo.

As grandes manifestações religiosas, como as romarias, sempre foram eventos e ainda hoje são, que envolvem não apenas o povo das comunidades, mas também pessoas que manifestam a própria religiosidade de forma espontânea, sem ser necessariamente ligada a uma caminhada de Cebs ou de paróquia. Romarias como de Padre Cicero ou de Bom Jesus da Lapa, que reúnem milhares de fiéis, atraem pessoas simples cuja devoção os leva a buscar lugares considerados sagrados, ponto de referência dos caminhos espirituais dos fiéis das mais variadas proveniência e pertença.

A Romaria Marial de Ipirá, sendo um evento organizado pela equipe paroquial, envolve quase exclusivamente o povo das comunidades, aliás é o evento que marca o caminho anual das Cebs desta paróquia. Este evento nasceu nos anos ’80, numa época de grandes tensões sociais, ligadas sobretudo ao problema da terra, do latifúndio. A diocese de Ruy Barbosa dos anos ’80, era muito sensível ao grito do povo das comunidades, que clamava por um pedaço de terra, numa região castigada pela seca e pela corrupção política. Padre Riccardo Camellini, um padre italiano que, naquele período, era pároco de Ipirá, em linha com a caminhada da diocese, abraçou a causa e orientou a Romaria Marial como um evento que, envolvendo as Cebs da paróquia, representasse, também, um grito pela terra. Como se deram os eventos não cabe a mim narrar. Aquilo que importa é o marco de luta social e política que, uma manifestação religiosa de grandes proporções, como a Romaria Marial, tomava naquela época, manifestando publicamente que, a capela da comunidade não era um lugar fechado em si mesmo, mas sabia traduzir em lutas sociais aquilo que escutava no Evangelho.

Com a virada carismática da Igreja do Brasil, também a Romaria Marial de Ipirá mudou de sentido, focando exclusivamente na dimensão religiosa. Sem dúvida esta mudança de rumo, afetou a caminhada das Cebs, que perderam o marco importante do profetismo visualizado nas denúncias contra o poder político corrupto e a arrogância dos latifundiários locais, totalmente insensíveis no que concernia a pobreza do povo. Dava até medo, nos dias de Romaria, ver caminhões lotados de fiéis, com bandeira, faixas e cartaz, manifestando a própria indignação contra uma desigualdade, que não permitia uma vida digna para a maioria das pessoas. Maria, mãe de Jesus, mãe pobre e exilada quando Jesus era criança, era identificada como protetora, pois ela mesma tinha passado pelo sofrimento da humilhação dos poderosos. Não a caso, o cântico Magnificat, lembra que Deus: Manifestou o poder do seu braço: desconcertou os corações dos soberbos.  Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes.  Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos (Lc 51-53). Existe uma espiritualidade bem fundamentada na Bíblia, que não precisava de grandes explicações exegéticas, porque o povo simples das Cebs, pela maioria camponeses, agricultores, entendia muito bem que Maria era com eles, apoiava a causa dos pobres e humilhados. A Romaria Marial dos primeiros tempos, em Ipirá, representava esta grande intuição evangélica: Deus está sempre do lado dos pobres, dos injustiçados.

Não é um caso que, no mesmo Brasil, depois da experiencia negativa da ditadura militar, no 1989 nasceu o Movimento Nacional Fé e Política com o objetivo de alimentar a dimensão ética e espiritual que deve animar a atividade política. Deixar-se animar pelo Espírito de vida, é a essência do Movimento Fé e Política, “que não propõe diretrizes para ação política dos cristãos, nem se comporta como se fosse uma tendência político-partidária, mas que luta pela superação do capitalismo por meio da construção de um sistema sócio-econômico solidário e respeitoso da vida do Planeta”.[1] Este Movimento, que se espalhou em todo o território Nacional e até mesmo na Bahia, ajudou bastante e continua a formar as consciências dos cristão[2] que desejam levar na sociedade as indicações assimiladas na leitura do Evangelho feita na comunidade. É isso que falou Frei Betto, um dos fundadores e assessores do Movimento que, no último encontro afirmou que: “O Reino de Deus é a proposta para o futuro da humanidade. Jesus não estava falando lá de cima, mas aqui na terra. Que o seu reino venha até nós. O Reino para Jesus indica a relação no amor e na partilha dos bens. Compartilhar os bens da terra e os frutos do trabalho humano. Até que a humanidade compartilhe os bens da terra, não realizaremos o Reino de Deus”[3].

 

 



[2] O XII0 encontro Nacional do Movimento Fé e Política aconteceu em Belo Horizonte no mês de abril 2024: https://fepolitica.org.br/12-encontro-nacional-2/

[3] ´possível encontrar um relatório do XII encontro do Movimento Fé e Politica neste site: https://matutan.blogspot.com/2024/04/12-encontro-nacional-de-fe-e-politica.html

sábado, 14 de setembro de 2024

PROJETO MARGENS A que ponto se encontra?

 




 

Paulo Cugini

Cerca de seis meses após a apresentação da proposta, consideramos importante fazer uma avaliação inicial. A razão do nome. Margens em português significa margens e refere-se ao Rio do Amazonas e a todos os rios que atravessam o território amazônico. Nas margens desses rios vivem muitas pessoas, os chamados ribeirinhos, que se encontram dentro de comunidades que surgem às margens dos rios. A paróquia de São Vicente de Paulo, que administro há cerca de um ano, é formada por sete comunidades, três das quais fazem fronteira com o Rio Negro, grande afluente do Rio Amazonas, e as outras quatro são muito perto. Possui uma população de aproximadamente 35 mil habitantes. O bairro Compensa é famoso por estar localizado em uma das chamadas áreas vermelhas de Manaus, vermelha porque é perigosa. A situação geral de pobreza aliada aos problemas de segurança, levou-nos a desenvolver, com um querido amigo italiano, um projeto à longo praz, que pode intervir a vários níveis para a promoção cultural e social da população local.

Um primeiro nível de intervenção é o apoio a projetos de sensibilização sociopolítica já presentes no território paroquial, mas pouco incentivados. Nos últimos meses acompanhamos quatro deles:

a.      Faça bonito. É um evento de conscientização contra o abuso infantil, uma verdadeira praga por aqui. Ajudamos em algumas despesas – camisetas, banners, panfletos – para viabilizar o evento. O evento contou com o envolvimento de crianças, jovens e adultos das sete comunidades

 


b.      Movimento de fé e cidadania. Quando cheguei esse movimento, nascido na década de 1980, estava desativado há duas décadas. Tendo em conta as eleições municipais, que se realizam neste ano e que provocam muitos conflitos nas próprias comunidades e muitas vezes divisões no seio das famílias, devido à corrupção política, que entra nas classes pobres, oferecendo de tudo para comprar o voto dos pobres, temos decidido reativar o Movimento. O projeto Margens veio com financiamento significativo, pagando camisetas, 5 mil exemplares da lei 9.840 contra a corrupção eleitoral, ônibus para movimentação de integrantes do Movimento. Além de um curso de formação, realizamos cinco eventos em que membros do Movimento foram de casa em casa para distribuir o texto da lei e realizar teatro de rua sobre o tema em questão.

 


c.       Setembro amarelo. É um projeto brasileiro de prevenção ao suicídio. A paróquia está muito atenta ao tema, até porque, após a construção da ponte sobre o Rio Negro, os suicídios aumentaram dramaticamente. Há um grande sofrimento mental na região. Dom Hudson decidiu que a nossa paróquia realizará um evento diocesano no último sábado de setembro, para sensibilizar a população sobre o tema. O projeto Margens entra com financiamento para suportar alguns custos do projeto.

 

d.      PASCOM: é o nome da pastoral que ajuda a divulgar os acontecimentos das sete comunidades. O projeto Margens interveio através da aquisição de uma máquina fotográfica, que também será utilizada para ativar cursos de fotografia, quando os espaços estiverem prontos.

 


e.       PJ: é a sigla da Pastoral Juvenil. Com a Margens intervimos com bolsas de estudo para permitir aos jovens o ingresso nos cursos de teatro, música e dança ativados pela paroquia, e adquirir parte do material que foi utilizado nos bailes juvenis (quadrilhas) realizados nos meses festivos de Junho e Julho. .

 


f.        Projeto de assistência psicológica. A situação precária da região levou-nos a decidir envolver duas psicólogas - Vanessa e Wanilda - para atender às necessidades de muitas pessoas que pediam ajuda. Margens juntou-se ao projeto para arrumar o quarto e comprar alguns livros e jogos para os menores que são acompanhados.

 

As psicologas Vanessa e Wanilda

Outro tipo de intervenção foi financiar algumas ferramentas que poderiam ser utilizadas pela comunidade para realizar um serviço social específico.

1.      Comunidade São Pedro. Situado na zona mais perigosa da paróquia, com o projeto Margens contribuímos para a compra de uma cerca de arame farpado para colocar no portão. Além disso, financiamos a compra de um bebedouro que é utilizado quando a comunidade recebe funcionários municipais, que realizam jornadas com enfermeiros e médicos para vacinar a população e outros tipos de serviços médicos gratuitos.

 


2.      Santo Inácio. Precisáva de uma fritadeira para vender alimentos e arrecadar fundos e por isso intervimos para adquiri-la.

 


3.      ão Vicente. Substituímos a antiga cozinha por uma nova, que serve para preparar comida dos eventos da comunidade e da paróquia.

 


Um terceiro nível em que intervimos e continuaremos a intervir é a disposição de alguns espaços. A intuição dos colaboradores do projeto Margens não foi construir nada específico, mas sim consertar estruturas já existentes para envolver as comunidades locais. Pedimos às comunidades que desenvolvessem projetos sociais a partir do seu observatório específico e, a partir do que vão apresentando, criamos um calendário de intervenções.

a.       Salão Paroquial. A primeira intervenção, que envolveu boa parte dos fundos da Margens, foi um salão que, até então, se encontrava sem utilização e, portanto, em condições verdadeiramente precárias. As obras de remodelação permitiram recuperar um espaço onde já começámos a organizar encontros com jovens e agendamos projetos de dança, música e teatro.

 



b.      Próximas intervenções. As comunidades de Santo Ignácio, Rosário e San Sebastião apresentaram uma série de projetos sociais e culturais que incluirão intervenções nas estruturas.