Paolo Cugini
Se existe um dado inalterável e, ao mesmo tempo,
irrenunciável para abordar qualquer discurso sobre a vocação, é este: é Deus
que chama, é Ele que toma a iniciativa. Encontramos este “fenômeno” já nas
primeiras páginas da Bíblia, quando Javé se dirige a Abraão com estas palavras:
“Sai da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a
terra que eu te mostrarei” (Gen 12, 1). Da mesma maneira, mas em circunstâncias
diferentes, é Deus quem toma a iniciativa para salvar o seu povo do cativeiro
do Egito escolhendo um guia. “Do meio da sarça Deus chamou: ‘Moisés, Moisés!’
Ele respondeu: ‘aqui estou’” (Ex 3,4 ). Assim por diante, nas páginas da
Bíblia, encontramos o chamado de Samuel, Elias, Davi, Isaías, Jeremias, até
chegar ao chamado dos discípulos de Jesus.
O
primeiro dado que aparece nos relatos bíblicos da vocação, é que Deus chama uma
pessoa por nome, buscando a aproximação, o relacionamento pessoal. O segundo
dado, que se apresenta nestas narrações, é que a identidade das pessoas
chamadas por Deus se realiza na mesma relação com Deus. Tudo isso nos leva a
concluir que a prioridade da primeira fase do acompanhamento do vocacionado,
não deveria ser concentrada frisando o serviço à comunidade, mas ajudando o
vocacionado a aprofundar o mistério do chamado de Deus. De fato, se Deus chama
Moisés para salvar o povo de Israel e não chama outras pessoas, isto quer dizer
que, na libertação do povo de Israel e no conhecimento do caminho que ele
realizou para chegar à terra prometida, o conhecimento da identidade e da
pessoa de Moisés é extremamente importante. Isso vale para qualquer personagem
da Bíblia, que tenha um sentido vocacional. É por isso que podemos afirmar com
segurança que, do ponto de vista bíblico, a prioridade da história da salvação
não é o serviço ao povo mas o chamado daquela pessoa específica[1].
Pastoralmente
falando podemos dizer que, se Deus chama, é necessário acompanhar o jovem
chamado para que seja colocado na condição de escutar, para aprofundar o
relacionamento pessoal com o protagonista do chamado, que é Deus mesmo. É isso
que encontramos na experiência dos grandes vocacionados da Bíblia. Abraão é
visitado em várias circunstâncias ao longo da sua vida por Deus, que lhe
manifesta o seu projeto e a renovação das promessas, por causa da sua mesma
obediência e fidelidade. Também Moisés e Elias, que sintetizam todo o Antigo
Testamento -a Lei e os profetas- vivem um intenso relacionamento pessoal com
Deus e o próprio Javé se manifesta
pessoalmente a eles de maneira diferente, conforme o específico da vocação de
cada um (cf. Ex 33, 18s; 1Rs 19, 1-18).
A
experiência pessoal de Deus, é um traço típico do profetismo de Israel. Assim,
encontramos páginas de uma intensidade única no diário de Jeremias[2],
expressões que demonstram uma busca pessoal sem limites, que o distancia em
profundeza de qualquer outra pessoa do povo de Israel. O relacionamento que
Deus institui e cultiva ao longo
dos anos com os seus profetas, os seus escolhidos, não é apenas ministerial,
mas de amor[3].
Deus escolhe os seus enviados, os seus profetas, envolvendo-os de atenção
amorosa, pois o serviço que eles são chamados a realizar é manifestar, com o
próprio testemunho de vida, que Deus é amor e ama o seu povo. Existe um laço de
paternidade incrível entre Javé e seus profetas. Elias, por exemplo, se
encontra no auge da sua missão totalmente desesperado pelo aparente fracasso do
seu trabalho profético[4].
Javé, então, o chama, o alimenta, se apresenta, o anima e estimula para
continuar a missão, mostrando assim que servir o Reino de Deus não é um puro e
simples trabalho material, que busca a
eficiência, a segurança humana dos resultados, mas é apoiado exclusivamente na
confiança em Deus, na sua ternura, no seu amor. Aquilo que aconteceu com Elias,
com matizes diferentes, é vivido também por Jeremias, Davi, Isaías, Ezequiel, Malaquias, Oséias, e tantos outros.
Estas
simples anotações, têm como objetivo frisar o dado bíblico
fundamental que o profeta não é apenas um funcionário de Deus, que deve
realizar um trabalho: é um escolhido de Javé, que ele mesmo chama e
constantemente acompanha e cuida com carinho e amor.
A
tudo isso podemos dar um nome: espiritualidade
vocacional. Esta, de fato, não é apenas identificada com a coragem
tipicamente profética de enfrentar reis e políticos, para questionar as
injustiças e, assim, apontar o julgamento de Deus. Esta identificação da
espiritualidade profética com a ação social deles é extremamente limitante e escassamente fundada na Bíblia. A
espiritualidade dos profetas aponta, antes de mais nada, para aquela busca
pessoal de Deus que faz do profeta um apaixonado de Javé. “Tu me seduziste,
Javé, e eu me deixei seduzir. Fostes mais forte do que eu e venceste” (Jer
20,7). Palavras tocantes que desvendam uma
experiência de amor, um envolvimento total, que abrange todo o universo
pessoal. É este o dado que, nestas últimas
décadas, por causa sobretudo dos eventos políticos, sociais e culturais, que afetaram o mundo todo, se perdeu no
caminho formativo. Nas décadas dos anos ‘70 e ‘80, o compromisso social da
Igreja levou a identificar o cristianismo como uma prática social e política, uma atividade. Dizia-se que Cristo é presente nos pobres
e, por isso, não precisava explicitar o Evangelho, ou o nome de Jesus, enquanto
era possível encontrá-lo na ação considerada
especificamente evangélica: a opção pelos pobres. Infelizmente, a história
mostrou que muita gente explorou a opção pelos pobres para se promover
politicamente. O grande santo Charles de Foucauld[5]
nos mostrou que, para amar os pobres de uma forma gratuita e desinteressada,
precisa abastecer a própria alma daquele amor de Deus que se manifestou em
Jesus e que encontramos na Eucaristia. A sua dedicação aos pobres era uma consequência das horas que passava ajoelhado em silêncio perante a
Eucaristia.
Do
outro lado, nos anos ‘90, a Igreja do Brasil assistiu à impressionante expansão
das Igrejas neopentecostais e à explosão
do movimento da Renovação Carismática Católica que, de uma certa forma, se
apoderou da palavra espiritualidade[6].
O contexto religioso e histórico no qual a RCC se desenvolveu no Brasil, fez
com que a palavra “espiritualidade” fosse identificada com individualismo e, do
outro lado, com desempenho no campo
social. E assim está acontecendo, na Igreja do Brasil, aquilo que aconteceu na
época da Reforma. Sendo que Lutero frisava a importância da palavra de Deus,
colocando em segundo plano a Tradição, a contra reforma Católica decidiu, no
Concílio de Trento, priorizar a Tradição da
Igreja, deixando em segundo plano a Bíblia. A história, com a falta de escuta
de um e do outro, levou os protestantes e os católicos por caminhos de
incompreensão que geraram guerras, violências e ódio que se protelaram até os
dias de hoje. Esta atenção à escuta do outro
deveria acontecer hoje dentro da Igreja
Católica do Brasil, para chegar a uma vivência mais coerente e fraterna com o
Evangelho que prega.
A
espiritualidade bíblica aponta para uma unidade da experiência mística pessoal
com Deus com o compromisso, que esta
mesma experiência gera. Nada, então, de contraste e antagonismo entre
interioridade e empenho social, mas unidade profunda entre as duas dimensões da
experiência espiritual[7].
Isso quer dizer que, quando aparecem formas antagônicas entre interioridade e
empenho social, não é por causa da verdadeira oposição entre os dois mundos,
mas por causa de uma falta na compreensão dos dados bíblicos.
Se
Deus deixou na Palavra revelada um modelo de guia que, com a ajuda do Espírito
Santo, deve ser reproduzido, isso quer dizer que espiritual e social não são
duas antinomias, mas sim dois elementos complementares da mesma experiência de
Deus. É porque os profetas eram repletos do amor de Deus, que não aguentavam ver as injustiças dos políticos e ricos do tempo contra os
pobres e os indefesos. Além disso, esta mesma circularidade entre momento
contemplativo e ativo, encontra-se no próprio
Jesus, o qual era acostumado a se entregar na oração de noite ou de madrugada e
depois, ao longo do dia, dedicar o seu tempo para cuidar dos pobres, curar os
doente e liberar os endemoniados (Cf. Mc 1, 17-37).
Na
própria vida de Jesus é assim possível
entender que a busca da intimidade com Deus, longe de ser uma fuga no
individualismo egoísta ou num espiritualismo desencarnado, torna-se uma
exigência profunda na vida do escolhido de Deus. Aliás, talvez seja esta busca
de Deus o sintoma mais claro da autenticidade da vocação.
[1]
Sobre este assunto cf. REINER, J.,
-DREIFUSS, G., Abramo: l’uomo e il
simbolo, Giustina, Firenze 1994; KIRSCH, J., Mosè, una vita, Garzanti, Milano 2005; HESS, R., Giosuè, GBU, Roma 2006. Nessa
altura, achamos interessantes as reflexões de CENCINI, A., Quando Deus chama, Paulinas, São Paulo 2003; e também as reflexões
teológicas de: SANNA, I., Chiamati per
nome. Antropologia teologica, San
Paolo, Cinisello Balsamo 1994.
[2] Cf. sobretudo os capítulos 7,15 e
20.
[3]
Cf SHOKEL, L.A., Profetas I,II, Paulus,
São Paulo 2004, sobretudo o comentário ao capítulo 31 do profeta Jeremias e do capítulos 2 e 11 do profeta Oseias; SICRE, J.L., Profetismo em Israel, Vozes, São Paulo 1996.
[4] Cf. 1 Reis 19,1-18.
[5] Charles de Foucauld (1858-1916).
Para uma primeira abordagem sobre a espiritualidade deste santo, cf.: AA.VV., L’eloquenza di una vita secondo l’Evangelo,
Qiqaion, Bose- Magnano, 2003.
[6] Emanule Mounier, analisando a
situação politica dos anos Trinta na Europa, dizia que quando os movimento de
direita se apoderam da palavra “espiritual”, os movimentos de esquerda começam
a falar de “Mistica”, abrindo o campo a muitas reflexões ambiguas (cf. Cristianità nella storia, cit..p.
78;91).
[7]
É este um dos temas que Mounier enfrenta na sua obra principal:O personalismo, cit. p. 69-77.
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