sábado, 4 de março de 2023

A origem da vocação: Deus

 




Paolo Cugini


Se existe um dado inalterável e, ao mesmo tempo, irrenunciável para abordar qualquer discurso sobre a vocação, é este: é Deus que chama, é Ele que toma a iniciativa. Encontramos este “fenômeno” já nas primeiras páginas da Bíblia, quando Javé se dirige a Abraão com estas palavras: “Sai da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu te mostrarei” (Gen 12, 1). Da mesma maneira, mas em circunstâncias diferentes, é Deus quem toma a iniciativa para salvar o seu povo do cativeiro do Egito escolhendo um guia. “Do meio da sarça Deus chamou: ‘Moisés, Moisés!’ Ele respondeu: ‘aqui estou’” (Ex 3,4 ). Assim por diante, nas páginas da Bíblia, encontramos o chamado de Samuel, Elias, Davi, Isaías, Jeremias, até chegar ao chamado dos discípulos de Jesus.

O primeiro dado que aparece nos relatos bíblicos da vocação, é que Deus chama uma pessoa por nome, buscando a aproximação, o relacionamento pessoal. O segundo dado, que se apresenta nestas narrações, é que a identidade das pessoas chamadas por Deus se realiza na mesma relação com Deus. Tudo isso nos leva a concluir que a prioridade da primeira fase do acompanhamento do vocacionado, não deveria ser concentrada frisando o serviço à comunidade, mas ajudando o vocacionado a aprofundar o mistério do chamado de Deus. De fato, se Deus chama Moisés para salvar o povo de Israel e não chama outras pessoas, isto quer dizer que, na libertação do povo de Israel e no conhecimento do caminho que ele realizou para chegar à terra prometida, o conhecimento da identidade e da pessoa de Moisés é extremamente importante. Isso vale para qualquer personagem da Bíblia, que tenha um sentido vocacional. É por isso que podemos afirmar com segurança que, do ponto de vista bíblico, a prioridade da história da salvação não é o serviço ao povo mas o chamado daquela pessoa específica[1].

Pastoralmente falando podemos dizer que, se Deus chama, é necessário acompanhar o jovem chamado para que seja colocado na condição de escutar, para aprofundar o relacionamento pessoal com o protagonista do chamado, que é Deus mesmo. É isso que encontramos na experiência dos grandes vocacionados da Bíblia. Abraão é visitado em várias circunstâncias ao longo da sua vida por Deus, que lhe manifesta o seu projeto e a renovação das promessas, por causa da sua mesma obediência e fidelidade. Também Moisés e Elias, que sintetizam todo o Antigo Testamento -a Lei e os profetas- vivem um intenso relacionamento pessoal com Deus e o próprio Javé se manifesta pessoalmente a eles de maneira diferente, conforme o específico da vocação de cada um (cf. Ex 33, 18s; 1Rs 19, 1-18).

A experiência pessoal de Deus, é um traço típico do profetismo de Israel. Assim, encontramos páginas de uma intensidade única no diário de Jeremias[2], expressões que demonstram uma busca pessoal sem limites, que o distancia em profundeza de qualquer outra pessoa do povo de Israel. O relacionamento que Deus institui e cultiva ao longo dos anos com os seus profetas, os seus escolhidos, não é apenas ministerial, mas de amor[3]. Deus escolhe os seus enviados, os seus profetas, envolvendo-os de atenção amorosa, pois o serviço que eles são chamados a realizar é manifestar, com o próprio testemunho de vida, que Deus é amor e ama o seu povo. Existe um laço de paternidade incrível entre Javé e seus profetas. Elias, por exemplo, se encontra no auge da sua missão totalmente desesperado pelo aparente fracasso do seu trabalho profético[4]. Javé, então, o chama, o alimenta, se apresenta, o anima e estimula para continuar a missão, mostrando assim que servir o Reino de Deus não é um puro e simples trabalho material, que busca a eficiência, a segurança humana dos resultados, mas é apoiado exclusivamente na confiança em Deus, na sua ternura, no seu amor. Aquilo que aconteceu com Elias, com matizes diferentes, é vivido também por Jeremias, Davi, Isaías, Ezequiel, Malaquias, Oséias, e tantos outros.

Estas simples anotações, têm como objetivo frisar o dado bíblico fundamental que o profeta não é apenas um funcionário de Deus, que deve realizar um trabalho: é um escolhido de Javé, que ele mesmo chama e constantemente acompanha e cuida com carinho e amor.

A tudo isso podemos dar um nome: espiritualidade vocacional. Esta, de fato, não é apenas identificada com a coragem tipicamente profética de enfrentar reis e políticos, para questionar as injustiças e, assim, apontar o julgamento de Deus. Esta identificação da espiritualidade profética com a ação social deles é extremamente limitante e escassamente fundada na Bíblia. A espiritualidade dos profetas aponta, antes de mais nada, para aquela busca pessoal de Deus que faz do profeta um apaixonado de Javé. “Tu me seduziste, Javé, e eu me deixei seduzir. Fostes mais forte do que eu e venceste” (Jer 20,7). Palavras tocantes que desvendam uma experiência de amor, um envolvimento total, que abrange todo o universo pessoal. É este o dado que, nestas últimas décadas, por causa sobretudo dos eventos políticos, sociais e culturais, que afetaram o mundo todo, se perdeu no caminho formativo. Nas décadas dos anos ‘70 e ‘80, o compromisso social da Igreja levou a identificar o cristianismo como uma prática social e política, uma atividade. Dizia-se que Cristo é presente nos pobres e, por isso, não precisava explicitar o Evangelho, ou o nome de Jesus, enquanto era possível encontrá-lo na ação considerada especificamente evangélica: a opção pelos pobres. Infelizmente, a história mostrou que muita gente explorou a opção pelos pobres para se promover politicamente. O grande santo Charles de Foucauld[5] nos mostrou que, para amar os pobres de uma forma gratuita e desinteressada, precisa abastecer a própria alma daquele amor de Deus que se manifestou em Jesus e que encontramos na Eucaristia. A sua dedicação aos pobres era uma consequência das horas que passava ajoelhado em silêncio perante a Eucaristia.

Do outro lado, nos anos ‘90, a Igreja do Brasil assistiu à impressionante expansão das Igrejas neopentecostais e à explosão do movimento da Renovação Carismática Católica que, de uma certa forma, se apoderou da palavra espiritualidade[6]. O contexto religioso e histórico no qual a RCC se desenvolveu no Brasil, fez com que a palavra “espiritualidade” fosse identificada com individualismo e, do outro lado, com desempenho no campo social. E assim está acontecendo, na Igreja do Brasil, aquilo que aconteceu na época da Reforma. Sendo que Lutero frisava a importância da palavra de Deus, colocando em segundo plano a Tradição, a contra reforma Católica decidiu, no Concílio de Trento, priorizar a Tradição da Igreja, deixando em segundo plano a Bíblia. A história, com a falta de escuta de um e do outro, levou os protestantes e os católicos por caminhos de incompreensão que geraram guerras, violências e ódio que se protelaram até os dias de hoje. Esta atenção à escuta do outro deveria acontecer hoje dentro da Igreja Católica do Brasil, para chegar a uma vivência mais coerente e fraterna com o Evangelho que prega.

A espiritualidade bíblica aponta para uma unidade da experiência mística pessoal com Deus com o compromisso, que esta mesma experiência gera. Nada, então, de contraste e antagonismo entre interioridade e empenho social, mas unidade profunda entre as duas dimensões da experiência espiritual[7]. Isso quer dizer que, quando aparecem formas antagônicas entre interioridade e empenho social, não é por causa da verdadeira oposição entre os dois mundos, mas por causa de uma falta na compreensão dos dados bíblicos.

Se Deus deixou na Palavra revelada um modelo de guia que, com a ajuda do Espírito Santo, deve ser reproduzido, isso quer dizer que espiritual e social não são duas antinomias, mas sim dois elementos complementares da mesma experiência de Deus. É porque os profetas eram repletos do amor de Deus, que não aguentavam ver as injustiças dos políticos e ricos do tempo contra os pobres e os indefesos. Além disso, esta mesma circularidade entre momento contemplativo e ativo, encontra-se no próprio Jesus, o qual era acostumado a se entregar na oração de noite ou de madrugada e depois, ao longo do dia, dedicar o seu tempo para cuidar dos pobres, curar os doente e liberar os endemoniados (Cf. Mc 1, 17-37).

Na própria vida de Jesus é assim possível entender que a busca da intimidade com Deus, longe de ser uma fuga no individualismo egoísta ou num espiritualismo desencarnado, torna-se uma exigência profunda na vida do escolhido de Deus. Aliás, talvez seja esta busca de Deus o sintoma mais claro da autenticidade da vocação.



[1] Sobre este assunto cf. REINER, J., -DREIFUSS, G., Abramo: l’uomo e il simbolo, Giustina, Firenze 1994; KIRSCH, J., Mosè, una vita, Garzanti, Milano 2005; HESS, R., Giosuè, GBU, Roma 2006. Nessa altura, achamos interessantes as reflexões de CENCINI, A., Quando Deus chama, Paulinas, São Paulo 2003; e também as reflexões teológicas de: SANNA, I., Chiamati per nome. Antropologia teologica, San Paolo, Cinisello Balsamo 1994.

 

[2] Cf. sobretudo os capítulos 7,15 e 20.

[3] Cf SHOKEL, L.A., Profetas I,II, Paulus, São Paulo 2004, sobretudo o comentário ao capítulo 31 do profeta Jeremias e do capítulos 2 e 11 do profeta Oseias; SICRE, J.L., Profetismo em Israel, Vozes, São Paulo 1996.

[4] Cf. 1 Reis 19,1-18.

[5] Charles de Foucauld (1858-1916). Para uma primeira abordagem sobre a espiritualidade deste santo, cf.: AA.VV., L’eloquenza di una vita secondo l’Evangelo, Qiqaion, Bose- Magnano, 2003.

[6] Emanule Mounier, analisando a situação politica dos anos Trinta na Europa, dizia que quando os movimento de direita se apoderam da palavra “espiritual”, os movimentos de esquerda começam a falar de “Mistica”, abrindo o campo a muitas reflexões ambiguas (cf. Cristianità nella storia, cit..p. 78;91).

[7] É este um dos temas que Mounier enfrenta na sua obra principal:O personalismo, cit. p. 69-77.

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