quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

COMO PODERIA?

 




O Teu mistério, Senhor, permanece sempre oculto, incompreensível para a lógica humana. Você decidiu nascer assim: é humanamente absurdo. Os que nada têm te adoram, os que não sentem que têm grandes coisas, que são sabe-se lá quem.

Diante do presépio só podemos ficar chocados: o que você quer nos dizer? Você não é o filho de Deus, você não é Deus? Então por que você entrou no mundo assim? Se você entrou no mundo dessa maneira, significa que todos aqueles que desejam conhecê-lo devem seguir o mesmo caminho silencioso e oculto de despojamento e humilhação. O Mistério se manifesta na pobreza. Para quem nasceu e vive bem, essa indicação só pode ser motivo de escândalo e, portanto, rejeitada.

Sim, Senhor, assim que vieste ao mundo foste rejeitado: e não poderia ser de outra forma. De fato, como a escuridão poderia acolher a luz? Como poderia a mentira acolher a verdade? Como os ricos poderiam acolher os pobres? Como eles poderiam? (Dos diários, 24 de dezembro de 2002, Miguel Calmon-BA, Brasil).

sábado, 29 de outubro de 2022

Por um cristianismo pós-cristão. Olhando para o futuro

 




Talvez Collin esteja certo quando afirma que o cristianismo ainda não existe (2020). Tomamos isso como um desejo e como indicação de um caminho, como se dissesse que, quem deseja viver, experimentar a proposta cristã, deve ir na direção oposta ao que havia sido indicado no cristianismo, sem nostalgia do passado, mas olhando para frente com confiança. Neste último parágrafo, após analisar algumas teorias que apresentam um olhar nostálgico ao tempo que foi e não é mais, tentaremos traçar algumas linhas de desenvolvimento no futuro pós-cristão.

Neste ponto do discurso é importante fazer um esclarecimento. O fim da metafísica não significa o fim da religião, mas o fim daquela forma religiosa que utilizou a metafísica para sistematizar seu próprio pensamento. O fim da metafísica ao invés de ser o fim da religião, portanto, abre caminho para novidades novas e interessantes. A seguir, ofereço algumas breves indicações que, sem dúvida, carecem de um estudo mais aprofundado, mas que, de qualquer forma, desejam oferecer uma contribuição ao debate sobre o futuro do cristianismo. Por isso, procuro indicar alguns caminhos de desenvolvimento que, na minha opinião, já estão em andamento.

A primeira delas é a possibilidade de um cristianismo não institucional. Pode-se pensar que o protestantismo já percorreu esse caminho e que, consequentemente, não há nada de novo na proposta. Na verdade, sabemos que as coisas não são bem assim. Se, de fato, é verdade que o protestantismo no início se distanciou das formas institucionais da religião, seu desenvolvimento histórico o descansou no leito da institucionalização. Não é fácil pensar e estruturar uma nova intuição. Na verdade, não basta a intuição, precisamos também de um contexto que permita sua realização. Quando Lutero iniciou sua reforma, a cultura moderna estava se enraizando no caminho do humanismo e afetando todos os setores da sociedade, inclusive a religião. A evolução da teologia moderna para manter um diálogo com o mundo cultural circundante, toma como referência o método científico.

O que, então, significa uma abordagem não-institucional do cristianismo? Como deve ser configurado? Significaria um retorno às origens ou, pelo menos, retomar um caminho inacabado. O pós-cristianismo abre a possibilidade não de restaurar o cristianismo, como gostariam Cuchet, Delsol e Dreher, com diferentes nuances, mas de retomar o caminho interrompido pelo próprio cristianismo, não para reproduzi-lo, mas para se inspirar em suas origens. Abandonar os locais de culto institucionalizados, cada vez mais vazios, para se encontrar lendo a Palavra de Deus em pequenas comunidades domésticas, num movimento que se desenvolve a partir de baixo, sem necessidade de referência institucional, que muitas vezes se torna a causa da lentidão do caminho das comunidades: este é um primeiro desenvolvimento.

Em segundo lugar, apontamos a possibilidade de criar comunidades em que o princípio da igualdade não seja uma utopia, mas o clima natural da viagem. Se a instituição controla os conteúdos e as modalidades da viagem, a liberdade em um caminho básico não institucionalizado lançaria as bases para uma experiência comunitária em que os membros têm os mesmos direitos e deveres, inclusive o da presidência na celebração. Em última análise, o controle das relações em uma cultura patriarcal torna-se opressivo e exclusivo como forma de controle do poder. O cristianismo se permitiu ser moldado pela cultura patriarcal porque, desde seu início, reivindicou o poder. Pelo contrário, numa comunidade que não se preocupa com nenhum poder, mas única e exclusivamente com o bem-estar do povo, a igualdade dos membros torna-se uma exigência implícita. Nesta perspectiva, a futura comunidade cristã será como um ponto de referência seguro no qual todos podem sentir-se parte dela, sem qualquer tipo de exclusão. Comunidades desse tipo, modeladas pelo estilo do Evangelho, podem tornar-se caminhos constantes de humanização, lugares de acolhimento, fraternidade e sororidade.

A comunidade que se estrutura na era pós-cristã, justamente por não ser uma instituição, não precisa de líderes ou guias. Todos podem celebrar e todos podem liderar a comunidade, porque a perspectiva não é mais piramidal, mas circular. É toda a comunidade que se torna celebrante, também porque o número de membros será pequeno e não haverá necessidade de um líder estabelecido. Os membros da comunidade decidirão como distribuir as tarefas para o funcionamento da vida comunitária. Relações igualitárias, que também geram a necessidade de não haver desigualdades sociais entre os membros. Dessa forma, entende-se que o estilo do evangelho exige um caminho em que as relações sejam pautadas pela busca constante da igualdade entre os membros, sem qualquer tipo de discriminação cultural e social. O Reino de Deus anunciado por Jesus encontra no novo contexto cultural pós-cristão uma maior possibilidade de realização, também porque o pós-cristianismo nasce sobre os escombros do cenário moderno do cristianismo. O estilo coercitivo típico da modernidade, deixa necessariamente espaço para um estilo dialógico e democrático.

Uma característica que marcou profunda e negativamente o cristianismo ocidental foi seu entrelaçamento com o poder político e econômico, que muitas vezes se tornou motivo de escândalo. A Igreja como potência do mundo manteve afastados de seu próprio espaço aqueles que deveriam ser acolhidos. As classes mais pobres da sociedade não só não se sentiram acolhidas pela Igreja, salvo em algumas experiências muitas vezes dificultadas pela instituição eclesial, como foram visadas, penalizadas com tributação no limite da resistência. Não só isso, mas a rigidez de seus dogmas, consequentemente, criou um número significativo de pessoas excluídas da comunidade. Divorciados, separados, homossexuais, lésbicas transexuais: há todo um mundo que se sente rejeitado por aquela instituição que deveria ter expressado o sinal tangível da humanidade acolhedora de Jesus. Na era pós-cristã que começamos a viver, haverá a possibilidade de constituir comunidades inspiradas no Evangelho e que se apresentem como uma verdadeira sociedade alternativa à lógica do dinheiro e toda a lógica da opressão.

Outra característica da caminhada eclesial pós-cristã é que ela é contagiosa. Se as estruturas rígidas, os sistemas abrangentes que tinham a pretensão e, sobretudo, a presunção de explicar tudo, de explicar todos os aspectos da realidade, estavam entre as características mais significativas da modernidade e do cristianismo moderno, na era pós-cristã que está dando seus primeiros passos, a cultura é fluida e, portanto, contaminável. Enquanto a característica de uma estrutura rígida é proteger-se de possíveis contaminações que possam colocar em risco o sistema, em uma cultura pós-moderna e ao mesmo tempo pós-sistêmica, a fluidez permite e exige a possibilidade de contaminação cognitiva e espiritual. Transpor esses insights para o campo teológico significa reconhecer a presença do Espírito Santo em todas as culturas e reconhecer que o Espírito já está presente em tudo. Também havia conhecimento desse dado teológico na era moderna, mas não era possível vivê-lo plenamente devido à rigidez da mentalidade sistêmica. A contaminação na eclesiologia é um aspecto da inculturação que implica uma atitude de escuta de outra cultura. As comunidades que se desenvolvem no pós-cristianismo serão contaminadas, porque não terão mais o problema de se defender, de proteger uma ortodoxia. Além disso, serão contaminados porque considerarão os conteúdos vindos de fora como uma possibilidade de enriquecimento, de troca e, consequentemente, de crescimento e não uma ameaça.

A mudança não acontecerá da noite para o dia: levará tempo. De qualquer forma, o certo é que a mudança está ocorrendo e a estrutura moderna da cultura ocidental já faz parte do passado. Estamos, portanto, em uma espécie de zona intermediária, na qual não há pontos de referência e esse estado gera inquietação, insegurança, desejo de se apegar às lembranças do passado. Olhar para o futuro em que se encontra Cristo vitorioso sobre a morte significa confiar nele, na sua Palavra, no seu Evangelho, no que ele está fazendo entre nós. Nunca como nesta época de transição para o pós-cristianismo, o mundo precisa de comunidades alternativas, que experimentem todos os dias a bondade da proposta do Senhor ressuscitado.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

QUANDO O PASSADO É PRETEXTO PARA COBRIR O VAZIO DO PRESENTE

 




 

Paolo Cugini

Pintadas 2011

 

 

Estava falando outro dia com um amigo meu, por telefone, e me chamou atenção uma coisa. Enquanto eu estava partilhando a minha vida presente, os trabalhos pastorais na nova paróquia, o trabalho como professor na faculdade, ele ficou lembrando somente os velhos tempos que se foram. Logo, não percebi o teor do diálogo, mas depois, relembrando essa conversa, fiquei matutando dentro de mim e me questionando: por que será que este cara falou somente do seu passado? Será que não tem nada de bom no seu presente? Qual é o seu problema?

Ainda hoje assistimos a situações deste tipo não apenas em conversas entre amigos, mas também em situações políticas e sociais. Lembro o papo furado de um candidato a prefeito de uma das cidades em que passei nesses anos de Bahia. Toda vez que pegava no microfone, independente do contexto, sempre fazia questão de citar a construção daquilo que ele pomposamente chamava de “O maior prédio escolar da Bahia”. Anos de administração pública pífia e muitas vezes corrupta, eram justificados somente com a referência a um passado glorioso que não existia mais, conseguindo enganar o presente do povo pobre, com um discurso vazio feito de lembranças passadas.

 Quanta gente vive desfrutando o próprio passado de glória! Quanta gente sentou sobre as cinzas quentinhas de um passado glorioso, ou até heroico, mas que depois não correspondeu a um presente do mesmo teor. Quanta gente se acomodou sobre os heroísmos da própria juventude, sobre as conquistas realizadas no passado, mas que depois não tiveram continuidade, acomodando-se no sofá da vida, vivendo de lembranças do tempo que foi e que nunca mais será. Quantas pessoas encontrei nesses anos de Bahia que estufam o peito falando das lutas sociais realizadas no passado, quando eram pobres lascados e hoje estão com o bolso cheio! Quantos fantasmas encontramos nas praças das nossas cidades, fantasmas de pessoas que já eram e que não são mais, pelo simples fato de renunciara a lutar, a viver o próprio presente, satisfeitos com as migalhas que ganharam com o passado de glória. Quantas pessoas aprenderam a preencher o vazio da própria vida com as lembranças de um tempo que se foi, renunciando viver o próprio presente e saborear a novidade da vida!

O problema é que o passado não volta e, sobretudo, não existe, pois existe somente o presente. Quem vive só de lembranças não consegue saborear a força e a novidade do presente e, em outras palavras, não consegue viver uma vida autêntica. Esta reflexão tem também um sentido evangélico. De fato, já o profeta Isaías convidava o povo a esquecer o passado para se concentrar na vida presente, que Deus estava querendo realizar. O mesmo Paulo na carta aos Filipenses dizia: “Por causa de Cristo tudo o que eu considerava como lucro, agora considero como perda”(Fil 3,8). É no presente da nossa vida que Deus vem ao nosso encontro. A atenção aos sinais dos tempos que o Senhor coloca na nossa vida para nos mostrar o Caminho, exige uma constante atenção ao presente da história. Quem vive com a mente constantemente virada ao passado, não consegue perceber a passagem do Senhor no presente da vida e, assim, fica endurecendo o coração, se tornando resistente à Palavra de Deus, insensível à ação do Espírito Santo. Sobretudo, porém, quem vive fora do tempo, perde uma ocasião propícia para se converter e colocar a própria vida na trilha que o Senhor traçou.

Quantas vezes nas paróquias em que passei, nas comunidades que encontrei me deparei com situações como esta! Quantas vezes nas paróquias e nas comunidades de base encontrei pessoas com a cabeça virada para o passado, incapazes de colher a novidade da presença do Senhor na história! Quantas discussões e incompreensões por causa disto – a incapacidade crônica de escutar a novidade, amarrados num passado que, graças a Deus, nunca irá voltar. Somos humanos e humano é o medo da novidade presente. A vida espiritual deveria servir a isso, ou seja, a caminhar de cabeça erguida, fitando a glória do Senhor ressuscitado que está em nossa frente para que em nosso presente possamos colocar sinais da Sua presença. A vida espiritual se realiza no diálogo cotidiano com o Senhor da vida e da história que aponta a novidade do caminho que precisamos percorrer. Que o grito do Senhor que encontramos no livro da Apocalipse: “Eis que faço nova todas as coisas” possa encontrar discípulos e discípulas acordados e não dormindo sobre os sonhos do passado, mas atentos para os novos desafios que o Senhor coloca em nossa frente.

 

A CONSOLAÇÃO ENGANADORA DO PASSADO

 




 

Paolo Cugini

Pintadas 2011

 

É sempre importante dar o nome às coisas, aos eventos ou às situações, sobretudo quando não conseguimos detectá-las e entendê-las. Existe toda uma literatura religiosa distorcida sobre o importante tema do pecado, que não permite entender esse fenômeno espiritual na sua justa profundeza. Sem dúvida, o pecado é uma experiência negativa que provoca amargura e tristeza nas pessoas que buscam a Deus com coração sincero. Além disso, o pecado se manifesta de várias maneiras e se camufla de um jeito que, às vezes, podemos confundi-lo com algo de positivo. O pecado é uma alternativa ao plano de Deus que, quando consegue penetrar em nosso horizonte de vida, provoca um profundo mal-estar. Por que, então, entramos nesses caminhos sombrios quando sabemos muito bem que nos causam tristeza e mal-estar?

Os sábios de todos os tempos e culturas indicam na felicidade o grande anseio do homem e da mulher. A busca da felicidade, que se realiza no bem viver, é o foco das nossas preocupações, seja de forma explícita ou implícita. A autenticidade da vivência Evangélica leva para uma vida feliz, que se manifesta como plenitude. Quem na própria vida faz a experiência do encontro pessoal com o Senhor não sente mais necessidade de nada: só Deus basta! É nesse sentido que podemos entender os votos de castidade, pobreza e obediência que, longe de serem imposições externas, são a resposta pessoal a uma profunda experiência de amor, percebida como algo incomparável. 

Qualquer experiência humana, também a mais profunda como pode ser a autêntica experiência de fé, é moldada na estrutura antropológica humana. Somos humanos e não deuses; estamos sujeitos ao tempo que passa, à caducidade com as suas influências na nossa estrutura psíquica. As experiências humanas, por serem humanas, passam através do crivo do tempo e, assim, tendem a esfriar, enfraquecer e, às vezes, a se derreter para sempre. Quanto mais profunda for a experiência de fé ou uma experiência de amor humano, maior será a força para aguentar o peso do sofrimento dos problemas que encontramos no tempo presente. Infelizmente, nem sempre conseguimos manter a concentração no nosso presente, sobretudo, nem sempre conseguimos elaborar rapidamente novas motivações, necessárias para enfrentar o tempo presente com os seus desafios.

É exatamente nessas passagens da nossa vida que se insinua o pecado, assim viramos para o passado na busca da consolação naquilo que não é mais, mas que já foi bom, muito bom. O pecado, nesse sentido, busca empurrar o homem e a mulher no passado da vida, tirando-o do presente, sobretudo quando este se apresenta como duro, insuportável e, então, dificulta o anseio constante de felicidade humana. E, assim, insatisfeitos com o nosso presente, nos transferimos ao passado, tentando ressuscitá-lo, mergulhando nele, como se fosse algo real. É a necessidade humana da consolação que nos leva a este sutil caminho do pecado, vivendo no presente com a cabeça no passado. Claramente, não é a única forma com a qual o pecado se apresenta à nossa consciência, mas é um dos caminhos que ele percorre, sobretudo nas pessoas adultas, com uma discreta e significativa bagagem de sonhos.

Por que o pecado se manifesta, nestes casos, como fuga no passado tirando-nos da realidade do nosso presente? A resposta, para os cristãos, não é muito difícil. De fato, é no presente da história humana que Cristo se manifesta. É no hoje da nossa vida que podemos encontrar misteriosamente e, de fato, a presença real de Jesus Cristo, para nos convertermos a Ele e segui-lo. “Hoje a Salvação entrou nesta casa” (Lc 19). Foi com essas palavras que Jesus se apresentou na casa de Záqueu, oferecendo para ele um caminho novo de vida. Somente permanecendo no presente da vida teremos chance de encontrar o Senhor que nos convida no Caminho da vida. Nesse sentido, podemos entender a vida espiritual como um constante esforço de manter os pés no chão da nossa realidade, desmascarando as insistentes tentativas de fuga na busca da consolação do passado. E assim, a oração, longe de ser uma alienação, torna-se um necessário exercício cotidiano de mergulho no presente da história – não de qualquer presente, mas daquele presente que Deus nos apontou e continua nos apontando como único espaço para alcançarmos a vida verdadeira.

 

COMO SE MUDA PARA NÃO MORRER




 

 

Paolo Cugini


São as palavras de um refrão de uma música italiana cuja autora é conhecida também no Brasil, porque cantou com alguns cantores brasileiros: Fiorella Mannoia. Uso estas palavras como ponto de referência para a reflexão que estou realizando nesses dias. É difícil ficar coerente com os próprios ideais, com as decisões tomadas na juventude. Percebe-se esta dificuldade, não apenas nas pessoas superficiais, mas, também, naquelas acostumadas a refletir, a pensar e ponderar os passos da própria vida. É difícil ser coerente a vida toda. É fácil ser coerente quando a vida corre nas veias, quando tudo vai bem, quando o tempo é nosso aliado, quando a nossa vida esbanja saúde. Muito mais difícil é ser coerente com os próprios ideais quando o mundo anda do lado oposto ao qual decidimos viver e tudo parece andar na corrente contrária. É difícil ficarmos coerentes quando somos ameaçados, quando alguém nos pressiona, quando recebemos ofertas extremamente vantajosas. É raro encontrar uma pessoa que fica de pé quando é tentado pelo dinheiro ou pelo poder: se deita logo, nem precisa apertar muito. Nesses casos, nos impele a tentação das massas, de fazer parte da maioria, como se a Verdade fosse um problema de maioria e não de conteúdo. Sentimos o sabor da vida boa, daquela que todo mundo quer: que se danem os ideais!

 

Quantas pessoas, até amigas, nesses anos todos de vida mudaram por medo de ficar de fora, na minoria? Quantas pessoas mudaram de religião só porque não aguentaram o confronto com os irmãos e as irmãs da caminhada? Quantas pessoas mudaram de partido só por interesse pessoal? Quantas pessoas que um tempo eram doentes por um partido ou uma ideologia, de repente, se tornam doentes do partido da oposição? Quantos amigos e amigas se tornaram inimigos? Quantas pessoas encostaram por um período na minha vida somente para tirar uma lasquinha e depois “tchau!”? Muda-se para não morrer, para não ficar isolado, esquecido; só que muitas vezes, são exatamente estas mudanças que acabam conosco, com a nossa moral, com a seiva da nossa vida. E, assim, enquanto estamos fazendo de tudo para não perder o trem da multidão e da massa e, sobretudo, da vida boa, na realidade estamos perdendo aquilo que dava o sabor à nossa existência, que fazia com que a gente fosse diferente, com uma qualidade, um valor autêntico: uma ideologia, uma fé, um credo.

 

Ficando bem atentos aos processos da nossa consciência, ou seja, com aquilo que acontece em nossa vida interior, percebemos que, ao longo dos anos, a matéria se torna sempre mais protagonista em nossa existência, exigindo sempre mais espaço. É a lei da sobrevivência, do instinto que manda em nossos passos corriqueiros. Se na juventude são os grandes ideais que nos emocionam e empolgam, ao longo dos anos, a necessidade de sobreviver, de viver amparados, a sedução da vida estética, o medo da morte e das doenças estimulam o nosso lado instintivo. Como lidar com isso?

 

Seremos pessoas autênticas somente quando ficarmos fieis aos nossos ideais. Por isso, a verdade da nossa existência se realiza quando os ideais nos quais acreditamos não se desmancham perante a força agressiva da vida instintiva. O exemplo de tudo isso, mais uma vez, é Jesus. De fato, a prova da grandeza dEle, não devemos procurá-la nos milagres que Ele fazia, mas sim na firmeza que Ele teve na hora da paixão. Foi nessa hora de grande sofrimento, que os instintos exigiam um compromisso com o mundo, e a consciência puxava pela fuga, que Jesus demonstrou a toda humanidade o sentido da palavra homem, da palavra mulher. Sim, o homem, a mulher é tal quando assume a própria identidade, quando não se esconde atrás de nada e de ninguém e, sobretudo, quando sabe enfrentar as consequências da fidelidade das próprias ideias. Jesus, na hora do sofrimento, não mudou de religião, na hora do aperto, não mudou de partido: Jesus foi fiel até o fim. É este o seu grande ensinamento. Jesus não mudou para não morrer, mas morreu para dar um novo sentido à vida (Tapiramutà-2009).

PASTORAL DA JUVENTUDE – CONTINUANDO A REFLEXÃO

 



Paolo Cugini (2006)

 

No número de junho do Jornal “Caminhar Juntos” comecei uma reflexão sobre a pastoral da juventude. Naquele artigo coloquei algumas exigências que parecia-me imprescindíveis para participar de um grupo jovem da Igreja católica: o amor a Cristo e o amor a Igreja. Salientei isto porque perante a multidão de jovens que não freqüentam a Igreja, a tentativa para atraí-los ou de conduzi as lideranças dos grupos abaixaram o nível da proposta. Só, que desta forma engana-se os jovens. Também o problema não é este, os salões no Sábado a noite de jovens, mas, criando ambientes vivos, onde os jovens experimentam antes de mais nada uma amizade, um relacionamento humano, uma atenção pessoal.

 

Isto que parece-me o ponto central do problema. O risco das dioceses e das paróquias com falta de vontade e criatividade, é de apresentar uma proposta morna, insossa, sem amor, aquela mesma proposta que o mundo oferece, embora com conteúdos diferentes. As praças e as boates nas festas ficam cheias de jovens anônimos que não se conhece, e continuam no anonimato depois da festa. Tudo começa e termina na festa. A empolgação vai embora um dia depois e nínguem lembra mais de ninguém. Pelo contrário Jesus quando encontrava alguém parava para dialogar com ele, se afastava da mutidão e da confusão para que o diálogo pudesse descer em profundidade. Sem dúvida quem encontrava Jesus lembrava dele; era um encontro que marcava a vida. Encontrar os jovens dessa forma é aquilo que está precisando. Nessa altura da pra entender que o problema não está na sigla (PJ, MP, PJ, PJR, PJE, RNC...), mas na intensidade da relação que conseguimos tecer com os jovens que encontramos.

 

Por isso queremos nos comprometer para formarmos grupos de amigos, de pessoas que se amam, se respeitam, que aprende através da vida de grupo, a se perdoar, a partilhar, a dialogar. O mundo não oferece nada disso por isso para formar grupo jovem desse tipo é preciso passar para uma forte experiência de Deus. Não se formam grupo jovem simplesmente porque quer desenvolver um trabalho. Se começa um grupo jovem com o desejo de ajudá-los assim encontrarem com Jesus Cristo para fazer a experiência dele, para viver como Ele. O grupo jovem da Igreja católica tem uma identidade bem precisa: o Evangelho de Jesus cristo. Se é assim, pode coordenar um grupo jovem só aquela pessoa que está buscando conhecer a Jesus e está amando a sua Igreja.

 

Os trabalhos (políticos, sociais, educativos... ) que o grupo desenvolve torna-se uma conseqüência e nunca a prioridade. De fato, a experiência desses anos ensina-nos que quanto mais os jovens de um grupo se esforçam para aprimorar a vida espiritual e a vivencia na Igreja, tanto mais se comprometem com vontade e dedicação os trabalhos sociais. Pelo contrário quem começa um grupo jovem para “fazer um trabalho” sem cuidar da vida espiritual é destinado ao fracasso. “queremos ver Jesus: Caminho, Verdade e Vida”: O tema do projeto pastoral da CNBB para os próximos anos. Que este desejo de ver Jesus esteja nos corações de todas as pessoas de boa vontade que trabalham para e com a juventude da nossa paróquia.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

MISSIONÁRIO

 





Paolo Cugini

Você não se torna um missionário porque vai em missão. É algo que uma pessoa deve ter dentro de si como baptizado, como discípulo de Jesus, que quer imitá-lo, quer seguir o seu exemplo. E então com entusiasmo tomamos as ruas, as casas para encontrar as pessoas onde as pessoas vivem e ali sem mediação, sem subterfúgios, o Evangelho de Jesus é anunciado E não precisa de estruturas, de coisas muito sofisticadas. Ele precisa simplesmente de um coração que o acolha e que ao acolhê-lo se torne testemunha, portador, anunciador.

Jesus não precisa de sofisticação: é o engano do mundo que complica tudo e sobretudo que tenta fazer tudo à mercê dos ricos, daqueles que não aceitam as coisas, mas as compram. Jesus, por outro lado, não o compramos. Talvez, alguém pense que está comprando, mas a realidade é diferente. Também porque Jesus foge e se esconde: esconde-se onde a humanidade não o procura, ou seja, nos pobres, nos sofredores, nos excluídos, nos marginalizados, nos sem-teto e sem terra. Nesta perspectiva missionária, missionário não é apenas aquele que anuncia o Evangelho à humanidade, mas ao mesmo tempo está em constante busca do Senhor. Porque a verdade é que ninguém possui o Senhor, também porque o Senhor não se deixa possuir por ninguém, e há uma necessidade contínua de buscá-lo. E então, enquanto o missionário anuncia o Senhor, ele o encontra nos pobres que recebem o anúncio, ele o encontra toda vez que tenta sair: fora das igrejas, dos oratórios, dos esquemas pré-estabelecidos; para um encontro mais verdadeiro e autêntico, porque é pobre e despojado de tudo. Um missionário é aquele que, como Cristo, está em busca de homem, mulher e vai procurá-lo para entrar em sua casa, procurar uma aproximação, um relacionamento. De fato, o missionário é antes de tudo um homem, uma mulher de relacionamento, que busca a relação, que ama conhecer os outros e se deixar conhecer.

É claro que o espírito missionário envolve um cansaço, um retorno. Isso significa que, assim como há tempo para sair, também há tempo para entrar. E é o momento da oração, da reflexão, da volta diante do Pai. É o momento, também, de acolher o outro. A missão, para quem a vive, envolve também uma mudança. Toda aproximação, se for autêntica, implica uma mudança. Há algo que deve morrer para dar lugar ao outro, à novidade do outro. E o outro é o irmão, a irmã a quem me aproximei para levar um anúncio de salvação que é o conhecimento do Senhor. E neste encontro descobrimos que há algo que não sabíamos; descobrimos que enquanto carregamos o Senhor, Ele mesmo nos espera no irmão, na irmã. Por isso, há sempre uma morte no encontro do anúncio, porque o novo mata o passado, o velho, para dar lugar ao novo. Não há ressurreição sem morte (Diário, Miguel Calmon, capela da casa  no bairro das Populars,  2000).

 

segunda-feira, 18 de julho de 2022

UM MUNDO CRISTÃO DESMORONANDO

 



 

Paolo Cugini

Não existe mais o sistema que sustentava tudo, e é por isso que há uma sensação de vazio. Aquela estrutura cultural, o sistema cristão, que ao longo do tempo, ao longo dos séculos, havia criado ritos, formas de pensamento, um modo de vida pontuado por momentos religiosos, rapidamente desapareceu. Era um sistema que governava tudo, que dava sentido aos dias, às escolhas, nos mínimos detalhes. Nada se movia fora dele. Ao longo dos séculos o cristianismo se infiltrou no labirinto da cultura e da sociedade, que tudo falava dele, do cristianismo, tudo era profundamente cristão. Não só o assunto da vida corriqueira tornou-se inteiramente cristão, mas também a consciência humana, a ponto de, uma decisão, uma ação que estava fora da perspectiva cristã, causava um sentimento de culpa muito forte, uma dor no peito irresistível, a ponto de que se percebia a necessidade de confessá-lo, expulsá-lo do corpo, para continuar a viver pacificamente no mundo cristão. Tudo era cristão. Havia missa dominical, à qual toda a família compareceu. Havia a confissão mensal. Em todos os países havia o padre, figura fundamental na estruturação da vida social. E depois havia as precessões, as festas dos padroeiros, o catecismo para crianças e também para adultos. Toda a vida social era marcada pelo calendário do tempo religioso. Porque, em certo sentido, tudo era religioso. Os cavalheiros eram religiosos e os pobres também. Tudo remontava à religião: a distinção entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o puro e o impuro. Era impossível viver fora do sistema religioso. Por isso, quem desobedecesse a um preceito religioso era severamente punido.

A sociedade era toda religiosa, era intrinsecamente religiosa. Cada cidade tinha sua própria igreja de culto e sua torre sineira que ditava os ritmos religiosos do dia. Era impensável que alguém crescesse sem o sentimento religioso, o desejo de fazer a vontade de Deus. Era impensável porque o medo do inferno, da condenação eterna, da alma para sempre imersa no fogo eterno, causava uma dor excruciante na consciência de quem ousava desobedecer aos mandamentos de Deus que, na verdade, eram os preceitos da igreja, que não é a mesma coisa. Lá estavam os senhores e os servos, os ricos e os pobres, os camponeses e os fazendeiros: todos estavam na missa ouvindo o padre que, do púlpito, xingava os pecadores e ameaçava a condenação eterna no inferno.

Tudo girava em torno da figura de Jesus, mesmo que ninguém o conhecesse. Este é o aspecto mais significativo da história do cristianismo ocidental, o paradoxo dos paradoxos, se quisermos colocar assim. Toda a civilização cristã foi construída na Idade Média, inspirada num personagem que o povo não teve a oportunidade de conhecer. A inspiração moldou uma narrativa que criou uma realidade, mas a fonte, ou seja, o Evangelho, não era acessível à maioria. Toda uma sociedade foi modelada durante séculos em torno da figura de Jesus, filtrada pela casta sacerdotal, pelos presbíteros, pelos bispos, pelo Papa, o sumo pontífice. Não tendo acesso às fontes, as pessoas podiam acreditar em qualquer coisa e, sobretudo, a casta sacerdotal podia impor qualquer coisa, como de fato aconteceu. Toda a sociedade, todo o mundo cristão, construído, modelado, inspirado por aqueles Evangelhos, que ninguém folheou e ninguém conhecia, que ninguém teve a oportunidade de ler, que nem mesmo a casta sacerdotal conhecia, senão algumas páginas. Nesse estado de ignorância coletiva, tudo podia ser repassado e passado como algo bom, religioso, vontade de Deus. Séculos de civilização cristã, que inspiraram uma copiosa produção literária e artística, filosófica e teológica, fundada na ocultação das fontes. Isso parce engraçado, mas é fortemente dramatico.

Talvez seja por isso que, uma vez que os evangelhos foram colocados nas mãos dos fiéis, os palácios da gloriosa civilização cristã começaram a ranger? Será que vai sobrar alguma coisa?

 

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Porque fazer a vigília? Vigílias de oração pelas vítimas da homotransfobia

 



Paolo Cugini

 

Todos os anos, em meados de maio, grupos de cristãos LGBT+ na Itália e na Europa organizam vigílias de oração pelas vítimas da homotransfobia. Estas vigílias, de cunho ecumênico, são organizadas a partir de um versículo escolhido online através do Projeto Gionata, portal nacional de fé e homossexualidade ativo desde 2007. O versículo escolhido para as vigílias deste ano é um trecho de Paulo: "Onde o espírito do Senhor, há liberdade" (2Cor 3,17). De acordo com o relatório homophobia.org, de 2013 até hoje na Itália houve 1.384 vítimas de homofobia, das quais 147 só este ano. "O número de vítimas de violência física - comenta o site - anteriormente inferior ao de vítimas de episódios não agressivos, representa 56%". Estamos, portanto, diante de um fenômeno que não pode ser silenciado ou banalizado.

Estas vigílias de oração têm como principal objetivo quebrar o muro do silêncio, que se encontra não só na sociedade, mas também na Igreja sobre esta questão. Ao mesmo tempo, é uma ferramenta para ajudar a comunidade cristã a caminhar na realização de relações autênticas, acolhendo cada homem e mulher. A questão da homossexualidade é, sem dúvida, uma questão delicada, que não pode ser banalizada, muito menos tratada de forma superficial. São muitas as comunidades cristãs que nos últimos anos abriram as suas portas a grupos de cristãos LGBT+, sinal de que o trabalho de sensibilização e formação foi feito e está a dar frutos. Aqueles que negam a homofobia muitas vezes vêm de caminhos existenciais e até espirituais nos quais o problema não foi abordado ou foi lido à luz de preconceitos enraizados em nossa cultura patriarcal, difíceis de riscar, se não através de um sério processo de estudo.

Quem assiste acredita que a oração tem grande força para desarticular os obstáculos que a razão cria e que o preconceito fortalece. É na oração que as comunidades cristãs experimentam a presença da luz do Ressuscitado que atravessa qualquer parede, penetra qualquer resistência, transforma tudo. Participar destas vigílias significa iniciar um caminho de conversão, disposto a deixar-se moldar pelo amor do Senhor, que nos ajuda a ver irmãos e irmãs onde a ignorância nos mostra inimigos. No verso do folheto preparado para as vigílias deste ano, são indicados alguns motivos para estes momentos particulares de oração: “para quem pede direitos, para quem quer ser ele mesmo, para quem quer justiça e um lugar no mundo. Estamos atentos às vítimas da homotransfobia e ao fim da homotransfobia. Venha assistir conosco” (Alessandro Previti).

sábado, 23 de abril de 2022

Uma liturgia com os traços da humanidade de Jesus

 



Paolo Cugini

Só podemos compreender o sentido da liturgia na vida da comunidade cristã voltando às origens e, de modo especial, olhando para Jesus, para os Evangelhos. Há um traço marcante no modo de Jesus se relacionar com o mundo, com as pessoas: sua humanidade. É este aspecto da humanidade de Jesus que deve moldar a celebração litúrgica.

Há um caminho de humanização que a vida cristã deve percorrer. A Gaudium et Spes lembra-nos que: "quem segue a Cristo, torna-se também mais homem" (GS 4). É na qualidade humana dos crentes individuais e das comunidades cristãs que se manifesta a credibilidade da mensagem cristã. É a qualidade de vida humana que faz a diferença. O humanismo evangélico em sua profunda cumplicidade com o humano autêntico, representa o presente e sobretudo o futuro do cristianismo. O que há para ver de Deus, vimos em Jesus: aqui estão todos os discursos possíveis sobre o sentido humano da liturgia. A busca de uma liturgia mais humana não é simplesmente evocar a dimensão ética da liturgia, nem mais uma estratégia pastoral, mas é de natureza teológica e, portanto, essencial para que seja uma liturgia cristã e não um mero rito religioso como muitos outros. A nossa liturgia é cristã se for conforme à humanidade de Jesus.

Se o mistério de Deus foi revelado através da humanidade de Jesus, da mesma forma a liturgia deve ser fiel ao caminho desta revelação. A celebração da revelação de Deus deve ter também a forma do Evangelho. O modo de celebrar na liturgia deve estar em conformidade com o modo como Deus se revelou em Jesus, na sua humanidade. A liturgia é revelação em ato. O documento conciliar Sacrosantum Concilium nos lembra que “ a obra de nossa redenção se realiza através da liturgia ” (SC 1). São essas ideias que orientaram a reforma do Concílio Vaticano II, para restaurar a liturgia à sua origem, ou seja, ao Evangelho. Jesus falava a língua do povo, e não uma língua sagrada. Jesus falou e se fez entender. Ele celebrou a Eucaristia pela primeira vez em torno de uma mesa. Os primeiros discípulos em suas casas partiram o pão. Uma humanidade, a de Jesus, caracterizada pelo convívio constante: Jesus sentou-se à mesa com todos. O jantar é o último de muitos jantares com seus discípulos. A centralidade do altar de nossas igrejas nos lembra que a comunidade cristã é uma comunidade da mesa, porque Jesus assim o quis e, consequentemente, a Eucaristia remete à relacionalidade, ao cuidado dos gestos entre as pessoas que dela participam.

A referência de Jesus na Última Ceia não é o contexto sacrificial, mas o contexto doméstico, comunitário, uma liturgia conduzida pelo pai de família, num contexto informal próximo da vida. Jesus queria uma mesa partilhada em contexto familiar para a sua comunidade; isso significa que as formas rituais que a expressam não devem afastar-se da vida. Por isso, não compreendemos as atitudes reverentes e distantes, típicas de um contexto sacrificial e sacral, mas totalmente alheias ao contexto familiar e humano desejado por Jesus. Na liturgia devemos encontrar a gramática da vida. Isto também se aplica à linguagem da liturgia. O Vaticano II deu a possibilidade de acessar as línguas faladas justamente para recuperar o dado primordial de toda relação autêntica: a língua. Não há possibilidade de relacionamento sem a possibilidade de compreender o que o outro está dizendo. Jesus falava em aramaico, a língua do seu tempo, graças à qual se fazia entender. Jesus não falava uma língua sagrada, mas usava expressões da vida do povo. Jesus não morava nas sacristias nem nas universidades e usava o vocabulário da vida cotidiana, muito mais do que o religioso. "As multidões se maravilhavam com o seu ensino " (Mt 7:28). " Nunca um homem falou assim " (Jo 7:46).

A relação entre liturgia e vida apresenta-se de uma maneira nova em relação ao tempo do Concílio. Hoje declina pedindo que a celebração seja um lugar vital, para regenerar a vida dos crentes individuais. A liturgia como lugar que gera e regenera o crente na vida, fonte da vida comunitária, exige atenção constante à reprodução no contexto litúrgico dos traços da humanidade de Jesus. Tudo o que os Evangelhos referem a Jesus com seu povo é uma antecipação do significado da liturgia. A liturgia, portanto, deve ser uma continuação dos Evangelhos, de tal forma que as pessoas que participam dos ritos, se sintam envolvidas pela humanidade de Jesus e o reconheçam presente neles. Nos Evangelhos encontramos afirmações que expressam o desejo do povo de encontrar Jesus e que são verdadeiras expressões litúrgicas: " Senhor, ajuda-me !" (Mt 15:25); " Jesus tem piedade de mim!" (Mc 10,47) ; " Senhor, o meu servo está em casa sofrendo " (Mt 8,6). Esta liturgia dos Evangelhos fala-nos de um homem Jesus, que escuta os pedidos vitais do povo, que caminha com os homens e mulheres do seu tempo, se deixa tocar, pára para ouvir, acaricia, ri, chora: há tanta humanidade em seus gestos. Por isso, a partir de agora, depois de Jesus, o sagrado não precisa mais ser revestido com os sinais de poder para induzir o medo e a reverência, mas deve ser despido, porque o Pai, por meio do Filho, decidiu colocar uma tenda no meio de nós. É a simplicidade dos gestos humanos que falam da grandeza do amor de Jesus, que encontramos na sua humanidade. Jesus travou uma batalha pela vida e lutou até a morte. Perante a vastidão da mensagem cristã, o hiperactivismo da vida paroquial, a complexidade dos nossos ritos, a sua redundância barroca, impressiona a simplicidade da liturgia dos Evangelhos. Voltar aos gestos simples da humanidade de Jesus é a tarefa atual da liturgia na Igreja, tarefa indicada pelo Concílio Vaticano II.

O teólogo alemão Christoph Theobald disse que: “ vida e fé estão intimamente ligadas ”. A fé não pode ser transmitida sem transmitir fé na vida. A celebração dos sacramentos da fé é um lugar de contato entre a vida de Cristo e a vida do homem e da mulher hoje. Nas passagens decisivas da vida, únicas e definitivas, onde a vida é mais vida, os sacramentos da Igreja projetam a luz do Evangelho. A finalidade dos sacramentos deve ser significar a vida à luz do mistério pascal, afastá-los da lógica do acaso e do destino. Toda a humanidade da liturgia se revela nos sacramentos. A pastoral dos sacramentos é hoje a Galiléia dos povos. Dentro da questão dos sacramentos há um sentido profundo da vida que deve ser reconhecido e honrado, há uma forma germinal daquela fé natural que todo ser humano tem na vida: é a fé em Deus, o autor da vida.

Só uma liturgia humana sabe celebrar a vida humana, no caminho traçado por Jesus: o sofrimento é o lugar mais alto da humanidade. O critério da verdade da liturgia é assumir o peso do sofrimento: abandono, exclusão, solidão. A tarefa de uma liturgia humana é ajudar a humanizar a realidade. Comunhão, caridade, acolhimento: a liturgia é um recurso da humanidade. Assim como todos aqueles que se sentiram excluídos da sociedade foram para Jesus, também hoje todos aqueles no mundo que se sentem excluídos, marginalizados, ridicularizados, discriminados devem ser acolhidos. É no sinal dos cravos que se manifesta o amor daquele que o Pai ressuscitou. Da mesma forma, é em uma comunidade que coloca os pobres, os crucificados da história no centro de suas liturgias, que o mundo pode reconhecer a luz do Ressuscitado. Na Oração Eucarística Va lemos: “ dai-nos olhos para ver as necessidades e os sofrimentos dos irmãos”. A celebração eucarística é o lugar da fraternidade. A Eucaristia é o mais alto ensinamento da humanidade. Não podemos receber inocentemente o pão da vida sem compartilhar o pão da vida com os necessitados. Nossa fé eucarística nos chama a viver uma ética eucarística, que nos leva a viver uma humanidade mais profunda para com os necessitados. É Cristo que na liturgia vem ao nosso encontro com os pobres, os migrantes, os excluídos. A Eucaristia é um protesto contra a desigualdade. A Eucaristia contém uma utopia: não é possível ser humano quando é celebrada e ser desumano quando se deixa a Igreja.

 

terça-feira, 12 de abril de 2022

UMA LITURGIA FORTEMENTE MARCADA PELO PESO DO PASSADO

 



Paolo Cugini

 

O tema da liturgia é importante porque reflete o modo de entender Deus: do modo como uma comunidade celebra a Eucaristia, entendemos o que Deus acredita. A insistência no preceito resultou no esvaziamento da dimensão relacional e comunitária, que está na base do sentido da liturgia eucarística, entendida como ação do povo. A pregação que durante séculos insistiu na obrigatoriedade do preceito dominical se, por um lado, fez difundir o costume da missa dominical como hábito necessário para a salvação, por outro o entregou definitivamente nas mãos da classe sacerdotal e a tirando-a, assim, ao povo de Deus. Houve, portanto, um processo de distorção em relação ao significado original que Jesus quis dar à Eucaristia, como sinal de sua presença no meio de seus irmãos e irmãs e como um momento dela entrega sua mensagem central à comunidade.

O novo contexto cultural em que estamos imersos, se por um lado se mostra insensível aos aspectos religiosos devido à sua marcada significância materialista, por outro nos permite recuperar alguns aspectos que foram perdidos ao longo do tempo. O esvaziamento da leitura metafísica e ontológica da realidade, completada na era pós-moderna, abriu caminho para a pluralidade de narrativas possíveis dos acontecimentos. Dessa forma, passamos de uma abordagem constritiva da religião, com preceitos, obrigações e deveres, que circunscrevem o modo de pertencimento ao sagrado, para um tipo de abordagem livre, baseada mais na compreensão subjetiva do que na coerção.

Hoje a geração jovem é totalmente indiferente às obrigações e ameaças aos preceitos religiosos. Passar de um estilo coercitivo para uma proposta que estimule o livre interesse das pessoas pela proposta religiosa, exige uma mudança radical de paradigma, que exige a disposição de não identificar a bondade da proposta com a quantidade numérica dos participantes. O controle coercitivo do povo pela casta sacerdotal, amparado pelo clima político e social que permitia esse estilo coercitivo, provocou de imediato a presença massiva dos fiéis nos momentos religiosos. A certa altura do caminho, a Igreja, ao invés de ter o cuidado de propor o estilo do fundador, deixou-se levar pela possibilidade real de controle das massas que, ao mesmo tempo, significava a possibilidade de contar com o poder político e debates sociais. Quem controla as massas controla o poder. Certos dispositivos doutrinários, como a confissão obrigatória diante da Eucaristia, exacerbaram o controle da classe sacerdotal sobre os fiéis, ao invés de propor um caminho de liberdade como proposto pelo Mestre. O mesmo se pode dizer da imposição do celibato sacerdotal aos candidatos ao sacerdócio, que estigmatizou um processo de diversificação do clero em relação ao povo e, em particular, às mulheres.

A jurisprudência canônica, a teologia e a espiritualidade que se desenvolve a partir do século X d.C. se aliam para sustentar o mesmo discurso da necessidade de uma classe sacerdotal para administrar o sagrado. A liturgia é o espaço mais adequado para se manifestar esse fenômeno mais político do que religioso. A arquitetura dos espaços religiosos é o documento histórico mais visível desse processo de desconstrução política da mensagem evangélica, em favor de uma instituição que, em determinado momento, decide seguir seu próprio caminho, esquecendo a origem do mesmo caminho. Nos edifícios utilizados para eventos litúrgicos, o espaço em que a classe sacerdotal administra o sagrado sofre uma dupla operação arquitetônica. Existe, de facto, um processo de separação do espaço atribuído ao sacerdote, que desempenha as suas funções do resto do povo. Essa separação é destacada por estruturas específicas - as balaustradas - que indicam até onde as pessoas podem ir. Em segundo lugar, há uma progressiva elevação da área denominada presbitério, com o objetivo de tornar visível o espaço sagrado. Os historiadores da liturgia nos alertam que essas mudanças ocorrem no período em que, devido às invasões bárbaras, que assolam o Império Romano, os dados bíblicos e patrísticos se perdem e a liturgia sofre a nova abordagem materialista do mundo religioso. Não busca-se mais a chamada dimensão ontológica dos acontecimentos que acompanharam a vida de Jesus, para repropor na liturgia, mas tenta-se reproduzir o mais fielmente possível o que aconteceu materialmente. A elevação do presbitério deveria, nesta perspectiva, significar o monte das oliveiras em que Jesus viveu a paixão.

Simultaneamente a esse fenômeno, há outro que o acompanha. Esta é a identificação progressiva da igreja com o Império Romano, que se tornou o Sacro Império Romano. Um sinal muito claro no campo litúrgico dessa identificação são as vestes litúrgicas, que mais do que sinal da presença da pobreza do mestre, são o símbolo do poder político do Império Romano. Além disso, nos séculos de dominação temporal da igreja, haverá liturgias nas quais se manifestará o poder da igreja sobre príncipes, reis e imperadores. Estas deformações da mensagem original convergidas para a liturgia, permitem compreender não só a necessidade de uma reforma litúrgica ocorrida no Concílio Vaticano II, mas, sobretudo, a dificuldade de implementá-la devido aos saudosos de plantão, que não conseguem libertar suas mentes das formas do passado.

Afinal, como disse Thomas Khun, as estruturas culturais se acomodam a tal ponto que mesmo uma revolução cultural não é capaz de provocar mudanças imediatas. Sessenta anos de história são quase nada comparados aos quinze séculos do cenário anterior.

 

sexta-feira, 1 de abril de 2022

NADA A COMEMORAR

 





No dia como hoje, não temos nada a comemorar, porém temos muito que refletir sobre a monstruosidade que foi a Ditatura Militar, pós o golpe de 1964.

Um período onde o (des)governo da época nos proporcionava violência, sangue, covardia, censura,  sofrimento, custo de vida altíssimo, inflação, dívida externa astronômica, privilégios para a elite política e econômica, subserviência ao imperialismo norte-americano, impunidades aos criminosos, controle do Judiciário e as casas parlamentares enfim, tudo que há de pior num governo onde massacrava toda a sociedade.

Devemos refletir e lembrar sobre esse período para que nunca mais se repita e que discursos e falsas narrativas sobre esse período pós-golpe de 64 sejam devidamente rechaçados.


Abaixo, selecionei 45 filmes e documentários importantes sobre esse período de trevas para que todos, principalmente os mais jovens, vejam e não se iludam com a Direita conservadora e reacionária.

Os filmes se encontram completos e abertos no YouTube

 Giuliano Furtado.

31/03/2022

Lamarca:

https://www.youtube.com/watch?v=Wy1g8kRMD5Q

 

ARAGUAYA conspiração do silencio:

https://www.youtube.com/watch?v=SKagL2WmH-0

 

O Que É Isso, Companheiro?

https://youtu.be/ZIPn2I5-knA

 

Zuzu Angel:

https://www.youtube.com/watch?v=duCoCVG2tt8

 

O dia que durou 21 anos

https://youtu.be/ltawI64zBEo

 

O Ano em que meus Pais Saíram De Férias:

https://youtu.be/yplwrQIWgIw

 

Pra Frente, Brasil

https://youtu.be/d3M-ybJiBZQ

 

Cidadão Boilesen - Um dos Empresários que Financiou a Tortura no Brasil:

https://www.youtube.com/watch?v=yGxIA90xXeY

 

Documentário | João Goulart: Jango:

https://www.youtube.com/watch?v=1O4SZQZ-ikk

 

marighella - retrato falado do guerrilheiro

https://www.youtube.com/watch?v=4BP-OMjP08Q

 

Eles não Usam Black-tie:

https://www.youtube.com/watch?v=Uzl2K1bDRog

 

Ação entre Amigos

https://youtu.be/Qm6yxx6ycgU

 

Cabra Cega:

https://youtu.be/h8zRYbrwLFQ

 

Militares da Democracia: os militares que disseram NÃO:

https://www.youtube.com/watch?v=6hD8JIHbu3w

 

Osvaldão

https://m.youtube.com/watch?v=cZEMVK2VtKo&feature=share

 

Batismo de Sangue

https://youtu.be/YuwY9vkkAYw

 

Retratos de Identificação

https://youtu.be/7tmN6VMaP8o

 

Carlos Eugênio Paz (Clemente) - Depoimento completo

https://youtu.be/OEPCT8E9ArA

 

Chumbo Quente, a série sobre a Ditadura Militar no Brasil

https://youtu.be/UTuC0r4KZo0

 

Cúmplices? - A Volkswagen e a Ditadura Militar no Brasil

https://youtu.be/1iWmAmvNMNg

 

Janto- O filme

https://youtu.be/SaU6pIBv9f4

 

30 Anos de Anistia

https://youtu.be/IMAQJIIjue4

 

Carlos Marighella - Quem samba fica, quem não samba vai embora

https://youtu.be/KkFozCuVm1M

 

Advogados Contra a Ditadura

https://youtu.be/Vuyz-M6vRyE

 

Tempos de Resistência

https://youtu.be/J2MrSLoB6BI

 

Araguaia, Presente!

https://youtu.be/dEZS0OKl2eE

 

Guerrilha do Araguaia - As faces Ocultas da História

https://youtu.be/jJV8DrN8-uc

 

Brasil: O Relato de uma tortura 1971

https://youtu.be/CCmA80YgwDY

 

Caparaó

https://youtu.be/qGlbHfG8aGA

 

Memórias Femininas da Luta Contra a Ditadura Militar

https://youtu.be/YWtuhUsn5ao

 

1964 - Um golpe contra o Brasil

https://youtu.be/GhoI8FdFF6w

 

Barra 68 - Sem Perder a Ternura.

https://youtu.be/XgK50b7oUf8

 

(A.H.F.) Vladimir- 30 anos depois

https://youtu.be/pB8XCSwyOeU

 

Soldados do Araguaia

https://youtu.be/dg6UE6hFYzM

 

Se um de nós se cala

https://youtu.be/Uu-VzWN6m_I

 

Setenta

https://youtu.be/8lJ-_IaI2z4

 

Hércules 56

https://youtu.be/J3ZOtHwSc9Q

 

Verdade 12.528

https://youtu.be/7l9OJOGfOc0

 

Manhã Cinzenta

https://youtu.be/3p-ozsRH0xY

 

Em busca da verdade

https://youtu.be/BUiFjNBP77Y 

 

Memória para uso Diário

https://youtu.be/Ys4781EYPBU

 

Que bom te ver viva

https://youtu.be/zqpybT37k9A

 

Vala comum

https://youtu.be/2AheyN37l8Q

 

Camponeses do Araguaia - a guerrilha vista por dentro

https://youtu.be/4q8hoZTrc30

 

Do Buriti a Pintada - Lamarca e Zequinha na Bahia

https://youtu.be/CgJb-8u9TDA


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O FENÔMENO DAS IGREJAS INCLUSIVAS NO BRASIL

 




Paolo Cugini

 

Há um fenômeno religioso interessante, estimulado pela presença LGBT na sociedade, que envolve comunidades cristãs no Brasil há mais de vinte anos. Este é o fenômeno chamado: igrejas inclusivas , que diz respeito àquelas realidades eclesiais que não apenas abriram as portas de suas igrejas aos cristãos LGBT ao longo do tempo, mas, em vários casos, propuseram mudanças significativas nos conteúdos teológicos, que costumam definir a 'homossexualidade . O fenômeno das igrejas inclusivas no Brasil diz respeito sobretudo ao mundo evangélico, ou seja, aquelas denominações eclesiais muito difundidas no território brasileiro, que remetem à experiência protestante. Relato abaixo alguns dados e conteúdos resultantes de algumas pesquisas produzidas nos últimos anos em universidades brasileiras, que tentaram descrever e analisar o fenômeno (as pesquisas utilizadas estão relatadas no final do artigo).

Em comparação com as práticas religiosas das igrejas ditas convencionais, nas quais o diabo e os traumas familiares são usados como justificativas para a homossexualidade, nas igrejas inclusivas ocorrem deslocamentos discursivos que buscam retirar a diferença sexual da área do pecado de acordo com natureza. A etnografia das comunidades inclusivas destaca, assim, os vínculos entre religião, sexo e política em torno da produção de discursos positivos em prol da diferença. Não se trata de exercer secretamente a sexualidade gay ou lésbica, como acontece com muitos fiéis homossexuais que vivem em vínculo tenso com igrejas evangélicas pentecostais, “ mas de defender ideais de visibilidade e aceitação social da sexualidade que fogem da norma ”. As regras de conduta do culto inclusivo não proíbem o exercício de relações homossexuais ou expressões de identidade LGBT. Nesses grupos, liderados por pastores gays e lésbicas, a vivência de uma orientação diferente da norma heterossexual é considerada uma prática que não viola os códigos de santidade. A teologia inclusiva, em geral, questiona o dogma religioso que condena a homossexualidade, procurando oferecer leituras bíblicas alternativas, que visem apagar os estigmas que afetam a diversidade sexual. Iniciativas de inclusão estão surgindo em todo o Brasil, com seus discursos de afinidade eletiva com as demandas dos movimentos cristãos. Assim, há muitos papéis que podem ser preenchidos por gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais em igrejas inclusivas.

Existem duas redes nacionais de grupos cristãos LGBT no Brasil: a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT e Evangélicos pela Diversidade. É possível observar que esse movimento tem abrangência nacional: a rede católica conta com 21 grupos atuantes em 16 cidades brasileiras, enquanto “E vangelici per la Diversity ” tem coletivos em 9 capitais. No total, são 30 grupos cristãos LGBT ligados a essas duas redes nacionais (os dados referem-se a uma pesquisa de 2021). A rede de “ Evangélicos pela Diversidade ”, por sua vez, não faz parte de nenhuma rede global ou internacional, embora mantenha diálogo com grupos e entidades de outros países. Em entrevista, Bob Botelho , coordenador executivo da entidade, disse que: “ Devido à grande diversidade de denominações evangélicas e a estrutura de autonomia de cada uma, além do catolicismo, é difícil criar uma rede internacional de grupos LGBT cristãos desta natureza ". Há também igrejas e instituições religiosas já criadas dentro de uma perspectiva de acolher pessoas LGBT em espaços cristãos, principalmente evangélicos. Essas igrejas diferem das demais, entre outros fatores, na celebração de casamentos LGBT e no acesso de pessoas LGBT aos cargos de sacerdócio e liderança.

Algumas das igrejas cristãs tradicionais também reformaram seus cânones para melhor acomodar a população LGBT. A Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, após mais de 20 anos de discussões, decidiu autorizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo em seus templos. Criada no século XVI na Inglaterra, tornou-se uma congregação de alcance internacional, a partir do processo de colonização e do imperialismo britânico. Atualmente, está travando uma dura batalha interna em relação à inclusão de mulheres e LGBT. Enquanto o casamento gay continua sendo proibido na Igreja da Inglaterra, a Igreja Episcopal dos Estados Unidos passou a reconhecer esse tipo de união desde 2015 e a Igreja Episcopal da Escócia em 2017. No Brasil, esse conflito causou uma cisão no Igreja Anglicana. Os debates começaram em 1997 e continuam até hoje. Em 2005 as dioceses de Recife, João Pessoa e Vitória, localizadas no nordeste do Brasil, separaram-se da nacional e criaram a “ Igreja Anglicana do Brasil ”. Em seu portal institucional, a igreja alega que seus pastores foram excomungados pela Igreja Episcopal Anglicana do Brasil “ por estarem em desacordo com essa denominação quanto à normalidade da prática homossexual e à ordenação de pessoas que a praticam ao sagrado ministério pastoral ” . (ANGLICANA NO BRASIL, 2020).

Entre as muitas experiências eclesiais inclusivas que podemos citar, indicamos uma como exemplo: a comunidade cristã Nova Esperança (CCNE) criada em 2004 na cidade de São Paulo por fiéis da Igreja de Acalanto , incluindo o pastor Justino Luiz, que se tornou presidente da congregação. No site da instituição consta que “ a CCNE é uma igreja evangélica pentecostal que prega uma teologia inclusiva, nesta comunidade todos são bem vindos, independente de sua orientação sexual, cor, raça, somos uma igreja que acolhe toda diversidade humana ” ( CCNE, 2020). O site também indica os nove endereços do CCNE no Brasil e dois no exterior (Argentina e Portugal).

Além das igrejas e grupos já apresentados, com dimensão mais nacional, há uma série de movimentos locais dentro e fora das congregações tradicionais para abrir espaços de discussão sobre as questões da diversidade sexual e de gênero, também em diálogo com as questões raciais, para a inclusão de pessoas com deficiência, pobres ou sem-teto. Em Brasília, por exemplo, destaca-se a Comunidade Família Cristã Athos , uma igreja inclusiva que tem entre seus participantes o teólogo Alexandre Feitosa .

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FAGNER ALVES MORELIRA BRANDÃO, Religião e omossexualidade. Uma abordagem histórica e sociocultural das igrejas cristãs inclusivas em Goiás , Dissertação de Mestrado da Universidade Estadual de Goiás, 2021.

MARCELO VARES NATIVIDADE, Cantar e dançar para Jesus: sexualidade, filho-de-lei e religião nas religiões inclusivas pentecostais, Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 37 (1): 15-33, 2017.

LILIA DIAS MARIANNO, Diversidade de genro em ambiente religioso: ética relacional para um organismo ciborgue , Mandrágora, Universidade Metodista de São Paulo, v.27, n. 2, 2021, pág. 237-267.

FATIMA WEISS DE JESUS, Igrejas inclusivas em perspectiva JESUS (da inclusão radical, Seminário Internacional Fazendo 10Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN2179-510X.