domingo, 29 de dezembro de 2024

A CRISE DO DISCURSO. Em busca de uma nova racionalidade

 



Paolo Cugini

Falar de crise do discurso pressupõe que se de pôr certo uma situação cultural na qual o discurso de tipo racional não funciona mais como funcionava antes, ou seja, pelo menos no mundo Ocidental, como veículo unívoco de conteúdos. Importante apreender a não jogar no lixo a água com a criança dentro. Dizer que o discurso é em crise, não quer dizer que precisamos abandonar a razão, o raciocínio, mas sim, avaliar uma maneira de raciocinar. O problema é: de que discurso se trata? Que discurso está em crise? É o discurso Ocidental, que é dedutivo, idealista, que utiliza o raciocínio, mas não o esgota. É neste contexto Ocidental que aconteceu a identificação da razão com a ciência e todas as consequências.

O discurso moderno idealista deixou de fora do debate tudo aquilo que a seu ver não entraria no âmbito do horizonte da razão: religião, sentimentos, valores. São estes elementos que estão emergindo como centro do debate cultural contemporâneo, pós-moderno. A religião está vivendo aquilo que foi chamado de retorno do sagrado, contradizendo a tese dos filósofos da suspeita. A vida sentimental desligadas da valores norteantes está mudando os relacionamentos humanos. A mesma ética, desligada do um centro de referencia racional, está tendo dificuldade a encontrar respostas exaustivas.

Este é um dato de partida que mereceria ser discutido, pois nem todo mundo concorda com isso. O problema da “Crise do discurso” põe em xeque o delicado problema do relacionamento entre pensamento e realidade. Se estamos aqui refletindo sobre a crise do discurso é porque a realidade ao longo dos últimos séculos se rebelou aos próprios intérpretes. A realidade não aceita de ser encurralada dentro um cerca de conceitos já feitos, preestabelecidos. O pensamento forte dedutivo do mundo moderno tentou prender a realidade para dominá-la, mas ela se rebelou. Se o discurso está em crise é porque a maneira de interpretar a realidade típica do mundo moderno falhou, se demonstrou errada, faltosa.

Este dado demonstra outros elementos importantes. A crise do discurso dedutivo desvende a origem das crises políticas da cultura ocidental. O tema em foque nesta altura é a violência e o discurso tipicamente violento de uma cultura forte, que apresenta um discurso único, que pretende ser universal. A violência religiosa tem uma matiz lógica: este é um dado importante. Não é o conteúdo religioso que é violento, mas sim a maneira de interpretá-lo. Quantas pessoas sofreram a violência da Igreja? Quantas guerras foram desencadeadas por motivos religiosos, por interpretações “duras” rígidas, de versículos bíblicos? Mesmo podemos dizer sobre a violência ideológica (Marxismo) dos diferentes totalitarismos que devastaram o Ocidente nos últimos séculos: foram maneiras fortes do discurso racional-dedutivo.

Nem sempre todo o mal vem para destruir. A crise do discurso (dedutivo) além de apresentar toda uma serie de problemas que em parte acabei de mostra, apresenta também novas possibilidades para a cultura Ocidental. Quais são estas possibilidades?

Do ponto de vista filosófico a possibilidade de construir um discurso dialógico que saiba respeitar as diferentes componentes do dialogo (Habermas, Apel). Neste sentido são de extrema relevância as contribuições de Buber, Levianas, Mounier, entre outros.

Do ponto de vista bíblico: mais espaço para uma escuta autentica da Palavra de Deus e uma interpretação mais atualizada (teoria de Vattimo).


sábado, 21 de dezembro de 2024

ASSOCIAÇÃO CULTURAL MORINGA DE TAPIRAMUTA' (BAHIA): UMA HISTÓRIA EXEMPLAR

 





Paolo Cugini


Quase vinte anos se passaram desde que a Associação Moringa, fundada em Miguel Calmon para apoiar a biblioteca, também se instalou em Tapiramutà. 

Moringa é o nome de uma planta que purifica a água além de possuir propriedades antioxidantes que podem ajudar a regular o estresse oxidativo, reduzindo os níveis de açúcar no sangue e protegendo as células do corpo. Quando eu e Gianluca, no início de nossa aventura brasileira, procurávamos um nome para dar à associação cultural que estávamos formando, ao descobrirmos a planta da moringa não tivemos mais dúvidas: a associação se chamará moringa. 

A ideia por trás do projeto moringa era fornecer ferramentas, especialmente aos jovens que conhecemos das classes mais pobres, para poderem construir o seu próprio futuro. O primeiro projeto foi o de uma biblioteca, criada a pedido dos jovens que conhecemos. Em torno do espaço da biblioteca, construído através da reabilitação de um edifício da paróquia de Miguel Calmon, surgiram muitos projetos culturais, como o curso de preparação para o acesso à universidade, a par de outros cursos, alguns realizados em colaboração com a vizinha cidade universitária de Jacobina. Entre os projetos mais significativos destes vintes anos elaborados e levados em frente pala Associação Moringa, foram os projetos de conscientisação política em parceria com o Movimento fé e política (Miguel Calmon e Tapiramutá) e o Movimento Moringa em Pintadas. 

O Movimento Fé e Política de tapiramutá numa ação na cidade de Miguel Calmon


Essa ideia cultural deu frutos diversos nas cidades onde foi plantada. Em Pintadas e Ruy Barbosa, por exemplo, não deu muito certo e foi extinto. O local onde a associação da Moringa até agora trouxe mais frutos foi Tapiramutà. De fato, em torno do projeto da biblioteca, em Tapiramutà, foram desenvolvidos alguns projetos direcionados aos menores de rua, em colaboração com a paróquia e, de modo especial, na pastoral dos adolescentes. 

Uma virada fundamental na Moringa foi a descoberta da organização que repassa recursos do Estado da Bahia para entidades que desenvolvem projetos sociais para as classes mais pobres da sociedade. Ao longo do tempo, este contacto produziu a possibilidade de realização de cursos profissionais de diversas naturezas: pedreiro, eletricista, cabeleireiro, etc. Buscou-se contato com o estado. Este é um ponto importante. De facto, muitas vezes os projetos iniciados em terras de missão pelos missionários italianos, terminavam quando o missionário regressava à sua terra natal, até porque os projetos ativados geralmente dependem de dinheiro vindo de Itália. Com Gianluca, desde o início, tivemos ideias claras, também graças a algumas leituras que esclareceram as nossas ideias. 

Alguns dos tantos cursos de formação política realizados pela Moringa


Li o primeiro durante minha primeira viagem  Milão Salvador: O Banqueiro dos Pobres, de Yunus, ganhador do Prêmio da Paz 2006. Li-o porque uma resenha o indicou como um livro fundamental para os missionários. Yunus ensina como ativar o microcrédito em áreas de pobreza. O dinheiro não é doado, mas deve ser investido para produzir. Trata-se de permitir que as pessoas pobres saiam da pobreza, aprendendo a trabalhar, a produzir e a escapar de uma mentalidade de mendicância.

O segundo livro que nos abriu os olhos também vai nessa direção: A caridade que humilha da economista zambiana Dambisa Moyo. Dambisa afirma que o que destruiu África, reduzindo os africanos à pobreza, foi a ajuda humanitária. Pode parecer um paradoxo, mas não é. Na verdade, Moyo, com dados em mãos, afirma que os milhares de milhões de dólares doados pelas grandes potências e entidades de caridade acabaram nos bolsos de políticos corruptos nos países africanos. Esta ajuda, ao longo do tempo, contribuiu, portanto, para manter no poder políticos corruptos e ditadores inescrupulosos, impedindo os africanos de zelarem pelo seu próprio território. 

Um momento da confraternização deste ano em Tapiramutá


Apenas três anos após a fundação da Associação Moringa, Gianluca deixou não só a gestão, mas a própria associação. Eu o segui logo depois. A ideia desta escolha foi na ordem do que havíamos lido e meditado: deixar o povo brasileiro administrar os projetos criados por suas indicações específicas e, sobretudo, não criar novas formas de dependência colonial. O dinheiro que os amigos italianos ofereciam era sobretudo pra dar o pontapé e nada mais. 

Em Ruy Barbosa e Pintadas a experiência não durou muito. Apesar das aparências e dos muitos projetos realizados, não despertou muito interesse. Em Miguel Calmon a experiência continua ativa, sobretudo ligada à biblioteca. Atualmente está em fase de impasse e precisaria de uma reforma, principalmente no pessoal que administra a experiência.

A experiencia de Tapiramutà é diferente. Nesta cidade quem tem o comando é um grupo de pessoas, quase exclusivamente mulheres, que abraçaram a causa, considerando o projeto não só importante, mas necessário para a sua cidade. Entre estas mulheres há algumas com condições económicas significativas e com uma atitude crítica em relação à classe política. Como disse o dominicano Frei Betto, um dos protagonistas do caminho das comunidades eclesiais brasileiras: a opção preferencial pelos pobres é feita pela classe média e, sem ela, é difícil provocar mudanças radicais. E assim foi em Tapiramutà.



Além de acionarem um contacto com o município para pagar os salários dos responsáveis do projeto, estas mulheres conseguiram envolver muitas pessoas – cerca de oitenta – para apoiar o projeto, inclusive financeiramente. Este grupo de pessoas acompanha os projetos há vinte anos, fechando alguns, ativando outros e desde o início sempre procuramos incluir os vários projetos em colaboração com a pastoral social das paróquias e, consequentemente, aproveitando os seus espaços . A associação, com o contributo dos seus associados, compromete-se a manter a ordem e a renovar os espaços que utiliza. 


Nos últimos dias recebi fotos da festa de confraternização Natalina da associação Moringa presente em Tapiramutà. Muita gente festejando, feliz por contribuir para a realização de um sonho: ajudar os pobres a se levantarem e caminharem com os próprios pés, sem esperar durante toda a vida receber esmolas. Entre os que passaram pela aventura da ACMOR (Associação Cultural Moringa) nos últimos anos estão pedreiros, eletricistas, cabeleireiros, mas também engenheiros, arquitetos, farmacêuticos e até dois médicos. A maior satisfação para mim é que só estive presente no início deste projeto: elas, eles cuidaram do resto. 


terça-feira, 3 de dezembro de 2024

EXPANSÃO

 




 Paulo Cugini


Os astrofísicos nos explicaram que o universo está muito longe de poder ser definido e compreendido com sistemas rígidos e fixos, porque está em movimento contínuo: ele se expande. Após a explosão inicial, segundo a teoria do Big Ben, o universo nunca parou de se expandir. Esta é a natureza da realidade: um movimento constante de expansão que. traduzido em filosofia significa que, quem segue o caminho do desenvolvimento de sistemas rígidos, segue um caminho destinado ao fracasso. O que é rígido, num universo em expansão, quebra. Esta é a triste conclusão da história da narrativa ocidental da realidade. Seu fracasso está, infelizmente, à vista de todos. As repetidas crises do sistema económico são o sintoma de uma interpretação errada, que foi imposta apenas pela força, mas a força não determina a autenticidade de uma verdade. O mesmo se aplica às alterações climáticas em curso, fruto do Antropoceno, daquele mundo criado à imagem e semelhança do homem ocidental que felizmente não é Deus. O que é rígido num universo em movimento se rompe. Esta discussão leva-nos a compreender que a realidade, tal como se manifesta e tal como a ciência nos descreve, não necessita de um pensamento que se deixe guiar pelo instinto de sobrevivência humano, que tende a fixar as coisas, a enrijecê-las para dominá-las. , mas deve ir exatamente na direção oposta. É o caminho da escuta que a energia do universo nos sugere. 

Caminhos de escuta, que se tornam caminhos de descoberta do desconhecido, daquilo que só podemos aprender. Nesta viagem descobrimos povos indígenas com uma visão de mundo oposta à ocidental. Se, de fato, desde o início do desenvolvimento do pensamento lógico-filosófico, o homem sempre se considerou no centro do mundo fechado, separado do resto, que considera como à sua disposição, a perspectiva da cultura indígena em que o homem e mulher sentem-se parte do cosmos. Diferentes visões de mundo que produzem diferentes caminhos, diferentes formas de estar no mundo. Quando nos sentimos parte de algo nós protegemos, cuidamos, nos interessamos por isso. Pelo contrário, quando a realidade é percebida como externa a nós, ela nos interessa na medida em que nos pode ser útil. Concepções de mundo que abrem diferentes horizontes e perspectivas, que deixam uma marca profunda na história, para o bem ou para o mal. Bastaria reler as páginas da astronomia aristotélica em De Coelo ou Física para compreender como se moveu Aristóteles, um dos protagonistas da formação do pensamento ocidental. Um mundo ordenado e finito, estruturado em 55 esferas, com a terra no centro. O movimento só poderia ser esférico, porque a esfera, na mentalidade dos primeiros filósofos, é a forma mais perfeita. O universo é então finito, porque tem um centro, nomeadamente o centro da terra e, na lógica aristotélica, um corpo com centro só pode ser finito. Um universo feito assim pode ser gerenciado pela mente humana, pode ser controlado e, acima de tudo, não gera surpresas. 

O homem ocidental considerava-se o centro de um universo finito com movimentos circulares perfeitos. Do caos desordenado passamos para a ordem do cosmos. Como sabemos, a Igreja adotou este modelo, que foi assimilado ao sistema teológico de São Tomás, que utilizou o sistema filosófico aristotélico para sistematizar os principais mistérios da revelação bíblica de forma clara e ordenada. Existe uma necessidade de ordem que foi impressa no caminho da cultura ocidental, uma necessidade que moldou todas as formas de conhecimento ao longo do tempo, incluindo o conhecimento religioso. Neste caminho de passagem do caos à ordem, a realidade foi compreendida e ordenada a partir de princípios a priori. O mundo que circunda o homem entrou no sistema desenhado pelo homem e respondeu aos propósitos indicados pela cultura. Há, portanto, uma relação de força que orienta o caminho da cultura ocidental na sua relação com um mundo que não é compreendido senão na medida em que é interpretado a partir de esquemas de pré-compressão. Mais uma vez, é possível ler nesta perspectiva o sofrimento do planeta Terra, gradualmente violado por uma cultura que, antes de ouvir a realidade, classificou-a e obrigou-a a enquadrar-se em padrões pré-definidos. 

Nem todas as culturas percorreram o mesmo caminho. Permanecendo no terreno dos povos indígenas acima mencionados, a sua visão de mundo, que não é movida pela necessidade de ordem e controle, mas pela percepção de fazer parte do Todo, produziu uma forma diferente de habitar a terra. Pesquisas recentes de um grupo de antropólogos, arqueólogos e pesquisadores brasileiros identificaram, com as novas ferramentas oferecidas pela tecnologia, que no subsolo da chamada região Pan-Amazônica, que envolve nove países, existem cerca de dez mil sítios arqueológicos, sinal de uma região altamente habitada, ao contrário das estimativas feitas por pesquisas anteriores, muitas vezes ditadas por razões ideológicas e políticas. A característica que permitiu aos arqueólogos identificar estes sítios é a biodiversidade. O fato surpreendente, de fato, é que a presença dos povos indígenas ao longo dos séculos produziu a proteção e o desenvolvimento da biodiversidade no território habitado, exatamente o oposto do que aconteceu no Ocidente onde, os homens chegaram, produziram não apenas a morte e destruição de outras culturas, mas também a deterioração da biodiversidade local. 

Mais uma vez fica claro que a nossa forma de pensar o mundo e a realidade envolvente determina um estilo de vida, uma forma de habitar a realidade. Não se trata de contrastar culturas ou de elogiar umas e desprezar outras, mas simplesmente de realçar a diversidade de percursos culturais e a diferente abordagem ao mundo envolvente que provocam. Há quem gostou de inventar sistemas, rabiscar doutrinas, forçar a realidade a caber nas elucubrações da sua mesa de centro, e quem, em vez disso, passava o tempo em contacto com a natureza, procurando viver em harmonia, percebendo uma certa sacralidade, protegendo e respeitando isso. Diferentes caminhos que produziram diferentes mentalidades e sociedades.