Paolo Cugini
Durante o VI encontro Inter
eclesiástico realizado em Trindade, no estado de Goiânia, tomou corpo uma ideia
que já vinha sendo acalentada há algum tempo pelos agentes de pastoral das
CEBs, a saber, o Projeto Político Popular. Este projeto surge lentamente na
trajetória das CEBs na consciência da responsabilidade da construção de uma
nova sociedade, que deve surgir a partir das ruínas causadas pela ditadura
militar, que encerrará sua experiência em 1985. Há a consciência de que a
sociedade ser nova na medida em que consegue aliviar o sofrimento dos pobres,
oferecendo-lhes os meios para viver com dignidade.
Quem mais do que ninguém
ajudou a formalizar esse projeto básico foi o teólogo e escritor Frei Betto. O
Dominicano fez muitas contribuições sobre o delicado tema da relação entre
comunidades de base e compromisso político. Em um artigo de 1986, ele argumentou
que:
A consciência evangélica das
CEBs não aceita a sociedade atual com tantos sinais de morte. Por isso a
palavra “Libertação” surge como súplica constante em cada oração, canto ou
comentário. Entre os militantes não é possível apreender o significado político
do termo a partir das CEBs. A libertação é um passo necessário e decisivo para
conhecer ou conquistar outra qualidade de vida.
Após a queda da ditadura militar, há nas CEBs
um sopro de ar novo, a consciência da grande contribuição dada ao país para que
a mudança política fosse implementada, mas sobretudo a consciência do
necessário compromisso que os militantes da as CEBs são chamadas a se oferecer
para construir a nova empresa brasileira. Nos círculos bíblicos fala-se de
utopia, de terra prometida e a nova situação política criada torna-se um
instrumento hermenêutico de interpretação dos textos.
A nova sociedade é a grande
utopia subjacente, a versão atual da terra prometida, onde fluirá leite e mel e
onde não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor (Ap 21.4). Na
consciência popular esta utopia situa-se deste lado da análise política que
permite decifrá-la com um mínimo de rigor e precisão; na realidade, indica
outro lugar.
Nas reflexões bíblicas
realizadas nos círculos bíblicos do período em questão, cada vez mais se
consolida uma identificação, nomeadamente a relação entre a libertação e o
Reino de Deus. De facto, se é verdade que o Reino de Deus ainda não está entre
nós. de forma definitiva, pode ser construída com a prática popular. O Projeto
Político Popular, afirma Frei Betto, assim como o Reino de Deus está sendo
construído na dupla dimensão de conscientização e organização.
A conscientização nas CEBs
passa por cursos de capacitação, clubes bíblicos, programas de rádio, reuniões
sindicais, subsídios para trabalhos em grupo e muitas outras atividades. Na
realidade, mais do que momentos teóricos, o que molda as consciências dos
militantes das CEBs é toda a prática social constituída pela participação nas
lutas dos conflitos populares, o que impõe também a necessidade de um maior
nível de organização. A participação no sindicato também é considerada um
importante fator de sensibilização na trajetória das CEBs para a construção do
Projeto Político Popular. Como afirma Frei Betto no artigo citado: «Os
militantes das CEBs adquirem consciência crítica dos problemas nacionais e das
próprias condições de trabalho quando participam de algum grupo de oposição
sindical».
A participação nos movimentos
sindicais é muito mais significativa e importante no campo, onde os
agricultores sofrem muito com as perseguições e injustiças cometidas
diariamente pelos grandes proprietários. Fora de casa, o Movimento dos Sem
Terra, que surgiu na década de 1970 graças também ao impulso da Pastoral da
Terra, é um dos movimentos sociais que ainda hoje está presente no Brasil. Além
disso, é importante destacar que no segundo congresso nacional da CUT
(Sindicato dos Trabalhadores - Central Única dos Trabalhadores), realizado no
Rio de Janeiro, predominaram delegações das áreas rurais do Brasil.
Durante o encontro
intereclesial realizado em Trindade, emergiu o fato significativo da
consciência dos militantes das CEBs de que na realidade o Projeto Político
Popular já está em andamento: basta organizá-lo melhor.
Grupos de trabalho coletivo,
demandas organizadas, sindicatos autênticos, oposições sindicais, cooperativas,
movimentos de mulheres, organização negra, comitês pró-constituinte,
administrações populares, apoio a candidatos populares, luta pela terra, hortas
comunitárias, movimentos pró-favela, bibliotecas populares, movimentos
organizacionais em defesa da vida, da saúde comunitária: todas essas realidades
já existentes indicam que o Projeto Político Popular já está em andamento.
O processo de construção deste
projeto político conduz, segundo Frei Betto, a uma sociedade onde o poder
político será exercido pelo povo ao serviço do povo e os meios de produção
serão socializados. A leitura marxista da realidade sociopolítica utilizada
naquela época tanto pelos teólogos da libertação quanto pelos militantes das
CEBs é bem destacada nesta passagem. O Projeto Político Popular se concretiza
através da confiança que os pobres depositam no seu irmão pobre, na medida em
que nas pequenas lutas são derrotados limites como o medo, a violência e a
desigualdade.
No universo social do Brasil
predominam cinco esferas da sociedade que merecem nossa atenção: as da
pastoral, as dos movimentos populares, as dos movimentos populares específicos
(negros, mulheres, índios, etc.), as do sindicato movimentos e os dos partidos.
Será através desses setores, afirma Frei Betto, relendo os dados que emergiram
do encontro Inter eclesiástico de 1986, que se construirá o Projeto Político
Popular. Há uma clara consciência de que os militantes das CEBs serão tanto
mais igreja quanto mais estiverem presentes na dinâmica do Reino de Deus já
presente na terra na proximidade dos pobres e despossuídos.
Todos os cinco setores são
igualmente importantes, mas para a construção do Projeto Político Popular é a
militância do partido político que, segundo Frei Betto, tem vantagem sobre os
demais setores. Após a queda da ditadura militar em 1985, período em que as
CEBs atingiram a plena maturidade social e eclesial, houve a consciência da
necessidade e da possibilidade de terem um impacto mais significativo. «É fato
indiscutível que as CEBs – afirma Frei Betto – constituem hoje um movimento
profundamente político no Brasil. Os militantes são formados através das
comunidades e os movimentos populares são fortalecidos”.
O compromisso social e
político dos cristãos formados pela trajetória das CEBs, especialmente naqueles
militantes que assumiram posições de liderança, produziu uma consciência civil
que exige ser investida no bem do país, que naquele período era chamado a um
ponto de inflexão. Como traduzir todo este potencial em ações para a
transformação da Nação?
É justamente o problema
mencionado no final do parágrafo anterior que será central no desenvolvimento
da trajetória das CEBs. Segundo a maioria dos teóricos das CEBs, a estrutura
deste modelo eclesial particular é composta pela integração da fé e da vida, da
escuta atenta da realidade, iluminada pela Palavra celebrada nas pequenas
comunidades, para um caminho que conduz à transformação da sociedade.
precisamente neste ponto que divergem as posições, ou seja, sobre os métodos a
seguir para a transformação da sociedade. Na verdade, embora alguns defendam
que a trajetória das CEBs não pode ser identificada com um partido político
específico e que a transformação da sociedade deve se dar no trabalho constante
de conscientização das bases e do compromisso com os movimentos sociais e a
pastoral, segundo outros, a verdade da transformação que as CEBs são chamadas a
trazer ao tecido social brasileiro deve se manifestar no compromisso partidário
que, no caso do Brasil, será o Partido dos Trabalhadores (PT).
A este respeito, Comblin
afirma que:
As CEBs nunca conseguirão
concretizar o seu projeto se caírem no sectarismo, no elitismo ou se se
identificarem com determinados projetos sociais ou políticos. Se se
identificarem com um sindicato ou com um partido político, nunca conseguirão
unir todos os católicos pobres. Se definirem uma linguagem, usarem símbolos,
partidários ou elitistas, nunca conseguirão atrair as massas.
O tema em questão é muito delicado e tem sido
objeto de intermináveis debates no âmbito das próprias CEBs e das
coordenações. Tratava-se de compreender como dar continuidade à possibilidade
de transformação da sociedade brasileira, ao sonho almejado nos meios bíblicos
e nutrido nos encontros inter-eclesiásticos de uma sociedade mais justa e
solidária, atenta ao grito dos pobres. Quanto mais avançava o percurso, mais
claro se tornava que era muito difícil levar a cabo esta transformação de outra
forma que não fosse transformar o compromisso político em compromisso
partidário.
Lendo a literatura sobre o
tema, percebe-se como se tornou difícil manter a mente clara e desapegada
diante de uma situação histórica que exigia respostas imediatas. Havia o risco
de permanecer apenas no nível intelectual ou de descarrilar a grande esperança
almejada, na utopia idealista. De qualquer forma, percebemos uma tendência
subjacente de canalizar a força adquirida com a experiência das CEBs para um
partido político que melhor representasse o Projeto Político Popular,
estruturado ao longo de todos esses anos. O debate tornou-se particularmente
acalorado entre 1981 e 1986. Nessas duas datas aconteceram os IV e VI Encontros
Intereclesiais das CEBs: no meio houve 1985, ano do fim da ditadura militar. Em
nossa opinião, este é o período crucial do debate político que ocorreu dentro
das CEBs, um debate que marcará não apenas o caminho de uma experiência
particular da Igreja, mas também de uma nação inteira. Na verdade, não devemos
esquecer a grande capilaridade das CEBs da década de 1980 no Brasil, da sua presença
não só em todos os estados e cidades do Brasil, mas sobretudo, nos principais
movimentos sociais e sindicais.
Se isto for verdade, não se deve esquecer
outro fator importante, que não esteve muito presente nos debates de então,
nomeadamente a consciência de que a escolha partidária nas CEBs não
corresponderia às consequências da reflexão em curso. Os pobres, especialmente
nas zonas rurais longe dos grandes centros, sabem que as suas vidas e as vidas
dos seus familiares dependem dos poderosos. Se o Projeto Político Popular
implementado na década de 1980 na trajetória das CEBs esperou muito para ser
traduzido na prática, é devido ao distanciamento da base pobre dos ideais da
classe média envolvida nos setores sociais. Não é por acaso que Lula conseguiu
eleger-se presidente do Brasil apenas em 2002, após ser derrotado três vezes,
treze anos após a primeira tentativa. Esta é a prova de quando afirmamos, ou
seja, que para ser eleito politicamente entre os pobres não basta o contacto
eclesial. Os pobres precisam sentir o poder daquele que pretende ser candidato.
Vamos, então, para entender melhor a dinâmica do ocorrido.
O encontro intereclesial de
1981: primeiros indícios da delicada relação entre política e partidos nas CEBs
O problema já havia se
manifestado durante o quarto encontro Inter eclesiástico das CEBs realizado em
Itaici (São Paulo) em 1981 com o tema: Povos oprimidos se organizando para a
libertação. Leonardo Boff, num artigo em que fez um balanço dos resultados da
reunião, sustentou que: «Os membros das CEBs são livres de votar no partido que
quiserem, mas a partir do nível de consciência desenvolvido nas comunidades, o
os membros tendem a apoiar os partidos que realmente vêm do povo para defender
os interesses e direitos dos trabalhadores."
No mesmo ano, novamente na revista REB,
apareceu um artigo de Luiz Gomez de Souza com o título inequívoco: A política
partidária das CEBs. No artigo o autor mostrou como os jornalistas presentes na
reunião de Itaici estavam convencidos de que durante o evento seria decidido em
qual partido os membros das CEBs votariam nas eleições. Em 1981, Gomez de Souza
notou a incapacidade dos partidos então presentes no Brasil em ouvir a voz das
classes sociais, especialmente daqueles movimentos sociais que se expressavam
com tanta tenacidade no Brasil da ditadura militar.
No quarto encontro Inter
eclesiástico ficou clara a necessidade de construir um plano político, capaz de
articular as lutas que os movimentos populares, em sua maioria oriundos das
fileiras das CEBs, estavam promovendo, para não correr o risco de se
dispersarem tanto. muita energia positiva. Por isso, pensou-se em incentivar a
pedagogia popular, no estilo inaugurado por Paulo Freire, uma pedagogia que
ajudasse os militantes a caminharem juntos, respeitando os diferentes ritmos de
luta que surgiram em algumas situações emergentes, como a ocupação de terras ou
a organização nas grandes favelas, que se estabeleceu nas periferias das
grandes cidades brasileiras do Sul devido ao "gigantesco processo de
migrações internas" daqueles anos. A pedagogia popular como ponto de
encontro entre o ritmo dos agricultores pobres e o dos estudantes
universitários que naqueles anos quentes se colocaram ao lado dos pobres,
estudantes cheios de ideais e ansiosos por ver resultados.
No documento final do IV
Encontro Inter eclesiástico, ao mesmo tempo que se especifica que “a política é
a grande arma que temos para construir uma sociedade justa como Deus quer”, por
outro lado, adverte contra que a política só seja capaz de explorar os pobres.
Os membros das CEBs saíram da reunião de 1981 com a consciência de que:
boa política é tudo o que fazemos para nos
organizarmos na justiça e para criar novas relações entre pessoas e grupos. Uma
boa ação política é quando nos reunimos para defender as nossas vidas contra
mentirosos e exploradores, através de associações de bairro, sindicatos e
outras formas de organização popular.
O parágrafo seguinte do mesmo
documento esclarece a necessidade de tomar medidas concretas no sentido de
aumentar a consciência política também através do compromisso com um partido. A
este respeito, especificamos a necessidade de examinar cuidadosamente os
programas dos partidos para descobrir quais são os seus verdadeiros interesses,
para compreender que mudança na sociedade eles propõem. É significativo notar
que, em 1981, a trajetória das CEBs não estava identificada com nenhum partido:
Pensamos também que a
comunidade eclesial de base não é nem pode ser um núcleo partidário, mas é o
lugar onde devemos viver, aprofundar e celebrar a nossa fé, onde devemos
comparar a nossa vida e a nossa prática à luz da Palavra de Deus, para ver se a
nossa acção política está de acordo com o plano de Deus.
O encontro Inter eclesiástico
de 1986: a escolha partidária das CEBs
A atitude será muito diferente
em 1986, ou seja, no período imediatamente posterior ao fim da ditadura,
período que exigiu tomadas de posição imediatas em relação às novidades que se
abriam diante dos olhos da nação brasileira. Tratava-se de orientar um caminho
de fé que desde o início fez da relação intrínseca entre fé e política o ponto
forte e específico deste caminho eclesial. Em alguns artigos do período que
analisamos, Frei Betto discorda daqueles que estão na trajetória das CEBs e que
não conseguem compreender a urgência do momento e dar o próximo passo em
direção à organização partidária. Segundo Betto, que expressa a opinião daquele
ramo da teologia da libertação que pressiona para que se dê uma forma
partidária ao processo político iniciado nas CEBs, há muita improvisação e
sobretudo um grande desconhecimento sobre o significado profundo da o
compromisso político dos cristãos. «O espontaneísmo é a tendência de assumir
que a ação política pode ser improvisada, sem vínculos com outras forças
sociais e políticas e sem uma visão estratégica que venha da análise da
realidade, que permita que a luta seja travada de forma mais ampla».
É fruto de uma mentalidade
espontânea, afirma Frei Betto, de ocupar terras, como aconteceu na década de
1980 através do Movimento dos Sem Terra, sem se preocupar com a violência que a
polícia exerceu sobre os ocupantes. Outro grande sintoma de ignorância política
entre os integrantes das CEBs é o chamado “basismo”.
«A posição que considera todo político
profissional, investido de um mandato, como um inimigo potencial é Basista. No
nível eclesial, o homem da base faz um corte estrutural entre as CEBs e o
Vaticano, como se não tivesse relação entre os dois”.
A última posição que Frei
Betto crítica é a daqueles que se acham progressistas pelo impulso messiânico
que os anima, insistindo em querer fazer coincidir o tempo pessoal do militante
com o tempo histórico da revolução. Cada vez que nas CEBs uma posição política
é julgada correta sem aceitar qualquer tipo de crítica, atribuindo os fracassos
à falta de consciência do povo, estamos diante desse estilo “progressista”.
Esses grosseiros erros de
perspectiva só podem ser superados através de um trabalho sério de formação
política, para evitar o risco de transformar a religiosidade das CEBs numa
espécie de ideologia pastoral, como se a motivação da fé fosse um mero suporte
para lutas sociais ou legitimação divina de certas bandeiras políticas. Não se
trata, então, segundo Frei Betto, de construir um novo cristianismo, indicando
a formação de um partido cristão, mas de orientar o Projeto Político Popular
para aquele partido que mais se identifica com o Caminho das CEBs.
Frei Betto é contra a ideia apresentada por
alguns líderes das CEBs – entre eles Clodovis Boff – que naqueles anos
pressionavam pela criação de um partido especificamente cristão, como havia
acontecido em outros países. A oposição de Betto se deve à especificidade da
trajetória das CEBs que sempre quis ser, desde suas origens, não um espaço
fechado para poucos seletos, mas aberto a todos aqueles que se reconhecem no
projeto de um país mais justo e solidário. mundo. Pois bem, entre estes não
podemos excluir tanto irmãos e irmãs de outras religiões, como também pessoas
abertamente ateias ansiosas por participar na realização deste sonho comum.
Segundo Frei Betto, voz de uma corrente predominante dentro das CEBs, a ação
política que se busca só pode surgir a partir de uma abordagem socialista e,
portanto, de esquerda.
À luz do horizonte ético da
fé, nas condições históricas atuais, não se encontra uma ideologia de caráter
libertador, antagónica à exploração capitalista, capaz de reconhecer a classe
trabalhadora como protagonista das transformações sociais, fora do marxismo.
Palavras claras que indicam o
Partido dos Trabalhadores – PT – como interlocutor privilegiado dos militantes
das CEBs nos anos seguintes.