Como está se delineando a vida
neste novo contexto cultural? Como viver numa realidade que não oferece mais um
quadro de referência e orientação? Com quais critérios as pessoas podem tomar
decisões importantes quando falta uma estrutura de valores fixa? Nesse nível do
discurso, mais que apontar ideias certas e seguras, podemos humildemente
esboçar algumas veredas que estão se apresentando no horizonte cultural
pós-moderno.
Uma primeira mudança
significativa consiste em buscar as soluções perante situações conflitantes,
não mais se apoiando sobre sistemas metafísicos cuja fundamentação objetiva
encontra-se no além, fora do mundo fenomênico e ao alcance da vida real, mas
utilizando uma forma dialógica, sinodal. Como vimos nos parágrafos anteriores,
uma característica fundamental da cultura pós-moderna consiste no fim da
racionalidade metafisica, naquele tipo de mentalidade que buscava apoio para a
confirmação das próprias decisões. O filósofo alemão Jürgen Habermas há
anos vem desenvolvendo uma reflexão que busca uma nova objetividade para
orientar as decisões a serem tomadas, sobretudo quando envolvem a sociedade,
que não são mais fundamentadas numa ontologia de tipo metafisico, mas sim na
busca de uma convergência entre as pessoas envolvidas na discussão. Na
sociedade moderna, as religiões (e em especial o Cristianismo) estão num
contraste crescente com as estruturas da racionalidade, que se emancipam e cada
vez mais se diferenciam e se especializam. Habermas, do ponto de vista
empírico, observa uma tendência à subjetivação e à privatização da fé, que
perde a função de imagem do mundo capaz de fornecer uma interpretação
unitária do ser e apresentar um sentido do todo, capaz de estabilizar as
contingências inevitáveis, justificando-as à luz de um imperscrutável plano de
salvação da humanidade e de todo o cosmos (HABERMAS, 1998). Com a passagem ao
pensamento moderno, as interpretações religiosas do mundo, assim como acontece
com todo passo evolutivo crucial, “são desvalorizadas no seu sistema
categorial, seja qual for o seu conteúdo, uma vez que não é mais esta ou
aquela razão que não convence, mas o tipo de razão utilizada”
(HABERMAS, 1998, p. 89). A esses elementos de contraste com a racionalidade
moderna, que são todos eles comuns também às concepções metafísicas do mundo,
poder-se-ia acrescentar um outro, que é, por sua vez, específico das religiões:
o fato de ligarem a interpretação global, indissoluvelmente verídica e
normativa, a uma oferta de sentido capaz de propiciar consolo diante das
situações individuais de negatividade insuperável uma tarefa que, segundo
Habermas, a filosofia pós-moderna jamais assumiria.
Fora da igreja, fora do
governo e fora da vida doméstica, existe um espaço para as pessoas discutirem
sobre vida. Habermas chama isto de esfera pública onde ideias são examinadas,
discutidas e argumentadas. O espaço dessa esfera pública tem diminuído sob a
influência das grandes corporações e do poder da mídia. Uma implicação óbvia é
que isto é uma estratégia de divisão e conquista. Um recente evento
interessante é o surgimento da Internet como uma nova esfera pública. Habermas
argumenta que qualquer um que usa a linguagem, presume que ela pode ser
justificada em quatro níveis de validade:
a.
Que
o dito é inteligível, ou seja, a utilização de regras semânticas compreendidas
pelos outros;
b.
Que
o conteúdo do que é dito é verdadeiro;
c.
Que
o emissor se justifica por certos direitos sociais ou normas que são invocadas
no uso de idioma;
d.
Que
o emissor é sincero no que diz, não tentando enganar o receptor.
Isto
é o que o Habermas classifica de comunicação não distorcida (HABERMAS, 2012, p.
134). Quando uma das regras é violada, ou seja, o locutor está mentindo, então
a comunicação está distorcida. Esta teoria de comunicação tem muitas
implicações, inclusive uma definição de verdade de caráter universal. E em cada
um desses temas expressa-se a característica de Habermas, herança explícita da
Escola de Frankfurt, isto é, a abordagem dita crítica a respeito das
teorias, das ciências e do próprio presente, construindo, assim, um
conhecimento engajado e revolucionário. Seguindo esse eixo e introduzindo uma
nova visão a respeito das relações entre a linguagem e a sociedade, em 1981
Habermas publicou aquela que é considerada sua obra mais importante: A teoria
da ação comunicativa.
Para Habermas a linguagem
serve como garantia da democracia, uma vez que a própria democracia pressupõe a
compreensão de interesses mútuos e o alcance de um consenso. Contudo, para que
a linguagem assuma este papel democrático, no pensamento habermasiano é
necessário que a comunicação seja clara. “O conceito do agir comunicativo pressupõe a
linguagem como médium de uma espécie de processos de entendimento ao longo dos
quais os participantes, quando se referem a um mundo, manifestam de parte a
parte pretensões de validade que podem ser aceitas ou contestadas”. (HABERMAS,
2012, p. 191)
Para Habermas, a distorção de
palavras e de sua compreensão impede uma comunicação efetiva, o consenso e,
portanto, a prática efetiva da democracia. O uso correto das palavras,
entretanto, só ocorreria quando fosse abandonado o uso exclusivo da razão instrumental
– ou iluminista – a razão utilizada pelo sujeito cognoscente ao conhecer a
natureza com o fim de dominá-la, ou seja, a confusão do conhecimento com a
dominação, exploração e poder. Dessa
maneira, a razão torna-se um instrumento de uma ciência que, deixando de ser
acesso a conhecimentos verdadeiros, torna-se meio de dominação e poder da
Natureza e dos próprios seres humanos. Dessa
maneira, torna-se necessária uma razão que não seja instrumento de dominação,
mas de democracia: a razão comunicativa. A razão comunicativa, além de
compreender a esfera instrumental de conhecimentos objetivos, alcança a esfera
da interação entre sujeitos, marcada por simbolismo e subjetivismo,
experiências pessoais e a contextualização dialógica de agentes linguísticos. A prática da ação comunicativa não se limita apenas à
busca do consenso da democracia, mas também é instrumento para pedagogia,
filosofia e muitos outros campos da ação humana. (HABERMAS, 2014)
Outra mudança que nos chama
atenção consiste na dificuldade de levar em frente as decisões tomadas,
sobretudo aquelas que deveriam ser definitivas. É o para sempre que
assusta. Essa mudança percebe-se folheando as páginas dos registros de matrimônio
que se encontram nas paróquias: simplesmente despencaram. A mesma atitude se
percebe nas vocações religiosas. Os conventos são vazios, os seminários também.
Há algumas décadas, como nos ensinou o filósofo canadense Charles Taylor, a
identidade pessoal era construída sobre convicções sólidas, alicerçadas em valores
que pareciam eternos, inquebrantáveis. Hoje, esse modelo existencial não
aguenta mais. O desmoronamento das metanarrações está nos mostrando o caráter
fictício dos assim chamados valores eternos que, aos olhos do novo contexto
cultural, não são tão eternos. O novo contexto cultural nos mostra que aquilo
que era chamado de vocação, produzindo rios de escritos espirituais sobre este
aspecto, na realidade trata-se de um fato sociológico. Até a chamada vocação
religiosa é fruto de um contexto sociocultural. Esta análise não tira a bondade
da existência de tantas pessoas que, ao longo dos séculos, abraçaram este específico
estilo de vida, mas simplesmente é possível salientar, graças ao novo contexto
que desmascara as construções culturais, que aquilo que era chamado de vocação
com um sentido marcadamente espiritual e, por isso, algo que tinha uma
proveniência extra fenomênica, que dava a este estilo de vida um marco de
definitividade, é o fruto de um específico contexto cultural que molda também o
mundo religioso. A fenomenologia da religião nos ensina há anos as interligações
entre religião e os vários setores da sociedade (VAN DER LEEUW, 2017).
O fracasso dos sistemas
produzidos, seja na época medieval, seja na modernidade, está desmascarando a
alegada eternidade dos valores apontados. Esse aspecto abre o caminho para o
niilismo de um lado e o relativismo ético do outro. Em âmbito religioso,
niilismo e relativismo sempre foram marcados negativamente, mas escondem algo
de positivo, que vale a pena analisar. Como nos alertava Nietzsche, o niilismo
é a consequência do fim da metafísica, ou seja, daquela forma de pensar o mundo
antecipando a realidade, para interpretá-la e colocá-la dentro de esquemas pré-constituídos.
O niilismo, assim entendido, não aponta simplesmente o fim dos valores
construídos na modernidade, mas indica também um novo caminho. O desmoronamento
dos valores da modernidade revela uma maneira errada de abordar a realidade
que, forçando a natureza, constrói um mundo e uma realidade fictícia, irreal,
tornando a mesma existência irreal e, então, falsa. Dessa maneira, o niilismo
não indica apenas o esvaziamento dos valores metafísicos, mas sobretudo, o
desmascaramento de uma realidade construída sobre conjeturas. A cultura
pós-moderna abre o caminho para uma nova maneira de se relacionar com a
realidade, com o cosmo, enfim, uma maneira mais respeitosa. Não precisamos mais
viver uma existência moldada em valores eternos, mas simplesmente buscando o
bem corriqueiro que brota das relações humanas, do concreto viver. O sentido de
valores se descobre vivendo no dia a dia, em contato direto com as pessoas e
com a natureza. Acostumados a sacrificar o presente em prol de bens futuros, a sacrificar
a vida real no altar do paraíso futuro, ficamos desnorteados perante esta
perspectiva: não somos preparados e, por isso, não sabemos para onde ir, nem por
onde começar. É estranho pensar que o homem e a mulher não estejam preparados
para viver o presente, a realidade corriqueira, mas infelizmente é aquilo que
percebemos. Vem à nossa mente as palavras pronunciadas por Nietzsche em “Assim
Falou Zaratustra” quando, depois de ter anunciado a morte de Deus e a vinda do
super homem, constatando o sarcasmo e a incompreensão das pessoas que escutaram
a mensagem, se questiona se talvez o anúncio não foi adiantado demais.
(NIETZSCHE, 2018).
Aprofundando o discurso,
podemos nos questionar: o que significa viver no presente, escutar a realidade?
Do ponto de vista geral, significa aprender a não antecipar o contato com o
fenomênico, mas acolhê-lo assim como se oferece à consciência. O momento da
elaboração racional deveria acontecer numa segunda fase. É isso que nos ensina
o Papa Francisco, quando afirma que a realidade é mais importante do que a
ideia.
A
ideia – as elaborações conceituais – está ao serviço da captação, compreensão e
condução da realidade. A ideia desligada da realidade dá origem a idealismos e
nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam ou definem, mas não
empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio (FRANCISCO, 2016, n. 231-233).
O grande risco que acompanhou
ao longo dos séculos o mundo ocidental é a possibilidade de viver um mundo
artefato e, por isso, irreal. Os idealismos como construções racionais voltadas
a sistemas que organizam a realidade, conforme princípios pré-constituídos, é
uma forma de se defender da realidade, percebida como perigo. Este dado
cultural é altamente paradoxal, pois nos alerta sobre uma cultura que se
estruturou não para viver a realidade, mas para defender-se dela. Como nos
lembrou Jean Luc Marion, um dos maiores fenomenólogos da atualidade: “O ser não
pode ser pensado que no momento em que se oferece” (MARION, 2010, 46). Acolher
o ser, como se manifesta no presente da história, é o único caminho para não
deformar a realidade, moldá-la ao nosso gosto, subjugá-la para que realize os
nossos desejos. É também, o único caminho que temos para experimentar a realidade
que se manifesta no tempo presente. Antes der ser uma ameaça, é um dom.
A intuição de Papa Francisco
acenada anteriormente, é bem visível no princípio da encarnação do Verbo.
Depois da vinda de Jesus, não é mais possível falar de Deus sem se deparar com
a realidade histórica do Verbo encarnado. É a realidade de Jesus que precede
qualquer ideia ou ideologia sobre Deus. A teologia só pode ser reflexão a
partir da escuta da realidade que se manifestou em Jesus e continua se
manifestando através da ação do Espirito Santo na Igreja e fora dela. Quanta
teologia foi produzida sem levar em conta este princípio fundamental do Cristianismo.
Muita teologia não foi nada mais que ideologia a serviço de interesses
particulares. Ainda hoje, toda vez que uma teologia se declara em defesa de
valores eternos, imóveis, inalteráveis, fixos uma vez por todos, está se
colocando fora da realidade de Jesus, que viveu uma dinâmica histórica feita de
nascimento, existência concreta, relações humanas, morte e ressureição.
Acompanhar a realidade da encarnação do Verbo significa a humildade de depor as
armas filetadas das ideologias cômodas elaboradas num escritório, para se colocar
a serviço da vida, que é dinâmica, em movimento e, por isso, sujeita à
mobilidade.
No plano da vida social, a
tentativa de viver a realidade presente deveria significar elaborar uma
política, uma economia não como projeção de cálculos que devem demostrar um
sistema previamente elaborado, mas sim levando em conta as reais condições das
pessoas. Como nos lembra o economista francês Thomas Piketty, a desigualdade
social é interligada ao sistema econômico dominante (PIKETTY, 2015). Uma
economia, que não leva em conta a realidade e o contexto social das pessoas,
não pode produzir uma proposta solidária, de partilha entre todos e, ao mesmo
tempo, uma política que ajude as pessoas a viverem bem. Enquanto a justiça, o
bem e a solidariedade forem considerados conceitos, ideias abstratas,
continuaremos a viver mal, a produzir monstros e a destruir o planeta. Mas
agora, quando estamos assistindo ao desmoronamento das projeções dos sistemas
elaborados no passado, desmoronamentos bem visíveis na eterna crise econômica,
na crescente desigualdade social, no contundente colapso ecológico, é possível
mudar de rumo, deixando de elaborar projeções que passam por cima da realidade
para finalmente focar o nosso interesse no bem da humanidade na sua totalidade,
que abrange também o mundo animal e o mundo material. É ainda este
desmoronamento que está manifestando a verdade das economias e das políticas
produzidas na modernidade, que se revelam ideologias a serviço não da vida do
povo, mas de interesses particulares de poucos.
Nesta fase intermediária, que
gera ansiedade e insatisfação pela incapacidade de encontrar novas resposta que
oriente a vida, a tentação existencial é a fuga. A relativização dos valores absolutos
e a perda de sentido do fim, provoca como consequência um esmagamento
existencial no presente. Nesse sentido, a tentação da fuga, que acompanha a
fantasia da geração pós-moderna, não é num mundo fantasioso, como poderia ter
sido na época moderna, mas, pelo contrário, trata-se de uma fuga no tempo
presente, um mergulho em tudo aquilo que pode oferecer o instante atual,
liberado de toda forma de estrutura metafisica, que forçava a existência e a
coletividade a projetar-se num mundo futuro a detrimento do tempo presente. Não
é um caso que encontramos, logo após a queda do muro de Berlim, considerado por
muitos pensadores como um dos eventos que marcaram o fim da época moderna
(VATTIMO, 2002), alguns assim chamados profetas da pós-modernidade que falaram
de fim da história (FUKUJAMA, 1992) e do fim da era das utopias (FEST, 1992). Faltando
uma estrutura metafísica que justifique valores transcendentes, toda a atenção
é dada àquilo que o tempo presente pode oferecer. Enquanto, num tempo, as
pessoas se apoiavam sobre valores eternos partilhados pela comunidade, que
ajudava as pessoas a levar em frente por toda a vida as decisões tomadas na
juventude, agora esse esforço de fidelidade parece sem sentido. Ninguém, de
fato, quer mais sacrificar o presente por algo que não se percebe e talvez não
exista mesmo. O mundo dos valores espirituais, que fundamentavam as decisões da
época moderna, deixa livre o campo para aproveitar ao máximo aquilo que a
realidade presente oferece. Essa mudança radical de perspectiva, incide, também
na estruturação da identidade pessoal. Bauman sustenta que, no mundo líquido,
como ele define a cultura pós-moderna, não é mais possível agarrar-se num único
tipo de identidade, como acontecia na modernidade. A rapidez de mudanças do mundo
líquido exige a capacidade de um grande espirito de adaptação. O risco é ficar
de fora e tornar-se inatual, fora do tempo e do lugar (BAUMAN, 2005).
A inquietação provocada pela
rapidez das mudanças torna difícil se apegar a uma única opção de vida e,
sobretudo, a levar em frente essa única opção pela vida toda. Papa Francisco,
em várias circunstâncias,
alertou os fiéis sobre a tentação de viver uma vida dupla, seja no matrimônio,
seja na vida religiosa. A frustração causada por uma escolha que não satisfaz
mais, leva a pessoa a buscar outro caminho mantendo válida, porém, a primeira
escolha. Tudo isso, é causado pela necessidade de salvar de um lado a aparência
social, do outro, a não causar uma fratura na identidade forte, que exige uma
continuidade com as escolhas tomadas. Essa necessidade de salvar a aparência
típica da cultura moderna, brota da necessidade de permanecer fiel à única
possibilidade de vida escolhida. Talvez seja esse um dos limites daquela
proposta que exige das pessoas uma identificação única, pela qual o ser da
pessoa é identificado com a tarefa que assume no contexto social em que vive.
Se de um lado esta proposta, que moldou o ocidente por muitos séculos, facilita
a vivência numa específica sociedade, que assim permite classificar as pessoas
e identificá-las, do outro lado, essa identificação, tão estrita, aperta demais
a existência, sufocando a liberdade das pessoas, que se sentem forçadas a viver
no único modelo escolhido. A fuga desse modelo existencial era, anteriormente, considerada
um ato desafiador pela inteira sociedade, porque se sentia questionada no seu
alicerce moral. No novo contexto cultural, não apresenta notas tão negativas. De
fato, a pós-modernidade, concentrando-se na vida real do tempo presente, ajuda
a aliviar a pressão de salvar, a qualquer preço, escolhas que, com o passar do
tempo, perdem sentido, visando verificá-las continuamente, buscando novos sentidos
a partir das mudanças vivenciadas. Viver no presente significa abandonar as
fáceis seguranças oferecidas pelos horizontes metafísicos, mas que lentamente
esvaziam o sentido de escolhas realizadas e nunca atualizadas, em prol da
coragem de levar responsavelmente em frente a própria vida, renovando em cada
momento o rumo da existência pessoal. Nesse sentido, a fuga na realidade como
paradigma da pós-modernidade, longe de ser algo negativo, apresenta aspectos
positivos. É verdade que uma vida esmagada na realidade presente, perdendo um
horizonte de vida mais abrangente, corre o perigo constante de uma deriva
materialista. Famosas são, a este respeito, as páginas de Bauman quando analisa
o vazio que o consumismo está gerando no mundo líquido. Sem pontos referenciais
aos quais se apoiar, a vida pessoal, acostumada a se escorar neste apoio
estrutural, preenche sempre mais o vazio com a matéria (BAUMAN, 2008). É também
verdade, porém, que o esforço de acolher a realidade como um dom, aprendendo a
viver no presente da história permite resgatar aqueles elementos da vida que a
tradição ocidental deixou de lado e muitas vezes menosprezou. Talvez seja nesta
época que o dionisíaco e o apolíneo podem voltar a viver em harmonia, sem
querer que um prevaleça sobre o outro. Uma harmonia alcançada como fruto de uma
atenta escuta da realidade mergulhada no presente da vida, mas não esmagada
nele. A fuga na realidade presente não significa esquecimento do passado nem
recusa de pensar o futuro. Pelo contrário, aprender a escutar a realidade para
acolher os dons que ela traz consigo, significa valorizar a experiência que vem
do passado, porque no presente da história encontramos traços significativos do
tempo que foi. Ao mesmo tempo, a vida no presente, contextualizada na
comunidade em diferentes níveis de pertencimento, ajuda a assumir a
responsabilidade que as relações humanas exigem. Caminhar no presente da
história, levando consigo os ensinamentos do passado rumo a uma meta que não
está planejada de antemão, mas que é construída dia após dia, é o sentido desse
itinerário. Trata-se, então, de uma fuga do mundo irreal planejado com
antecedência, que não permite às pessoas viverem o presente, para finalmente
poder sentir na pele o ar da vida real. Mais uma vez, é a este nível que é
possível reconstruir a antiga harmonia de apolíneo e dionisíaco, sentimento e racionalidade, espírito e
matéria. É esta harmonia que, respeitando profundamente a realidade da nossa
estrutura antropológica, nos ajuda a saborear a novidade que a realidade
manifesta a cada dia no tempo presente.
Na homilia do 5 de maio 2017, na capela de Santa
Marta, o Papa Francisco falou: “São
os rígidos de vida dupla: se mostram belos, honestos, mas quando ninguém os vê,
fazem coisas feias. Ao invés, este jovem era honesto, acreditava nisso. Quando
falo disso, penso em muitos jovens que caíram na tentação da rigidez, hoje, na
Igreja. Alguns são honestos, são bons, devemos rezar para que o Senhor os ajude
a crescer no caminho da mansidão”. É interessante notar a ligação intrínseca
entre rigidez, típica da formação da cultura moderna, e vida dupla produto
negativo da mesma.