sábado, 30 de agosto de 2025

A SOLIDARIEDADE SOB ATAQUE

 



A estranha aliança entre cristãos tradicionalistas americanos e a extrema direita

Paolo Cugini

Nas últimas décadas, observou-se nos Estados Unidos o fortalecimento de uma aliança entre o cristianismo tradicionalista e as formações da extrema direita política. Esse fenômeno pode parecer contraditório, sobretudo considerando que muitas das ideias centrais do cristianismo — como a solidariedade, a acolhida ao próximo e a caridade — parecem estar em aberto contraste com posições que, por vezes, rejeitam ou desvalorizam esses mesmos princípios. No entanto, essa aliança se fundamenta em raízes culturais, históricas e teológicas profundas. Nas próximas linhas, tento explicar por que uma parte significativa dos cristãos tradicionalistas americanos apoia ideologias e movimentos de extrema direita, que interpretam a solidariedade de forma negativa.

Para compreender o fenômeno contemporâneo, é necessário remontar às origens da relação entre cristianismo conservador e política americana. O historiador Kevin M. Kruse, em seu livro "One Nation Under God: How Corporate America Invented Christian America" (2015), sustenta que o vínculo entre cristianismo tradicional e políticas econômicas de direita surge já nos anos 1940 e 1950, quando empresas e líderes religiosos se uniram contra o New Deal e a crescente influência do Estado de bem-estar social. Segundo Kruse, a partir desses anos, o cristianismo foi progressivamente associado aos valores do individualismo, da liberdade econômica e da desconfiança em relação à intervenção pública, vistos como "ameaças" à liberdade do indivíduo.

A antropóloga Kristin Kobes Du Mez, em "Jesus and John Wayne" (2020), mostra como o evangelicalismo branco americano promoveu uma visão do cristianismo como bastião de valores conservadores — autoridade, ordem, patriotismo — muitas vezes em contraste com uma ideia de solidariedade coletiva ou responsabilidade social, e orientado principalmente à defesa da "lei e da ordem" contra qualquer forma de dissenso ou reivindicação de direitos civis. Para entender por que a solidariedade é vista de forma negativa por muitas formações da extrema direita, é útil fazer referência ao pensamento de Patrick J. Deneen, professor de Ciências Políticas em Notre Dame e autor de "Cambio di regime. Verso un futuro post-liberale" (2025). Deneen explica como parte da direita americana acredita que projetos sociais coletivos — frequentemente associados ao termo “solidariedade” — acabaram por produzir apenas dependência e ineficiência, minando a liberdade e a responsabilidade individual.

Entre as fontes mais citadas pelos tradicionalistas, encontra-se também o pensamento de Ayn Rand, embora não cristã. Rand, em "A virtude do egoísmo. Um novo conceito de egoísmo" (2023), defende a superioridade moral do individualismo e considera qualquer forma de solidariedade forçada uma ameaça à dignidade humana. Para Rand, a solidariedade imposta pelo Estado equivale a uma espécie de escravidão moral, que priva o indivíduo de sua autonomia e o obriga a assumir as necessidades dos outros. Muitos líderes cristãos tradicionalistas americanos integraram, de forma paradoxal, essa visão à sua pregação pública, como destaca Michael Sandel em "Justiça. O nosso bem comum" (2013).

Outro elemento decisivo é o surgimento, no pós-guerra, da chamada "teologia da prosperidade" (prosperity gospel), segundo a qual o bem-estar pessoal e material é sinal da bênção divina. Segundo Kate Bowler, autora de "Blessed: A History of the American Prosperity Gospel" (2013), essa teologia levou milhões de cristãos americanos a identificar o sucesso individual como vontade de Deus, desvalorizando toda forma de solidariedade institucional e pública, vista como intromissão indevida na relação privada entre Deus e o fiel.

A Guerra Fria desempenhou um papel central no fortalecimento da desconfiança do mundo cristão tradicionalista em relação à ideia de solidariedade. No contexto americano, a solidariedade era associada ao socialismo ou, pior, ao comunismo soviético. Como sublinha o historiador David W. Swartz em "Moral Minority: The Evangelical Left in an Age of Conservatism" (2012), todo projeto de welfare, redistribuição ou proteção social era atacado como um potencial “cavalo de Troia” das ideologias ateias e totalitárias. Daí nasce uma retórica que identifica a solidariedade como ameaça direta à fé e aos valores fundantes da nação e, ao mesmo tempo, como perigo de uma possível entrada do comunismo no país.

Nos Estados Unidos contemporâneos, segundo Robert P. Jones em "The End of White Christian America" (2016), muitos cristãos tradicionalistas percebem uma crise de valores, acentuada pelo aumento da diversidade étnica, pela secularização e pela perda da centralidade pública da religião. Neste contexto, a extrema direita oferece uma narrativa tranquilizadora, centrada na defesa de uma identidade cultural e religiosa ameaçada por estrangeiros, na qual toda forma de solidariedade universal é vista com suspeita, como se escondesse uma ameaça à ordem tradicional. Daí se compreende a fácil penetração no imaginário americano das ideias do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e de seu projeto político de purificar a América dos imigrantes.

Um papel-chave é desempenhado pelos meios de comunicação conservadores, como a Fox News ou a Christian Broadcasting Network, que promovem uma visão segundo a qual as políticas de solidariedade são representadas como instrumentos de controle estatal e de corrupção moral. Segundo o sociólogo Arlie Russell Hochschild em "Por amor ou por dinheiro. A comercialização da vida íntima" (2016), muitos cristãos tradicionalistas se reconhecem em uma narrativa que vê a extrema direita como defensora das liberdades religiosas e individuais contra o opressivo “politicamente correto” e das “ideologias globalistas” da solidariedade universal.

O apoio dos cristãos tradicionalistas americanos à extrema direita que desvaloriza a solidariedade é o resultado de uma complexa teia de fatores históricos, teológicos, sociais e midiáticos. Se o cristianismo das origens colocava no centro o amor ao próximo e a partilha, o americano contemporâneo — ao menos em sua versão tradicionalista e politizada — frequentemente privilegiou a defesa do indivíduo, da propriedade privada e das liberdades negativas, percebendo a solidariedade pública como ameaça. Compreender as raízes profundas desse fenômeno é essencial para enfrentar os desafios políticos e sociais dos Estados Unidos contemporâneos.

 

terça-feira, 5 de agosto de 2025

A liturgia como espaço de contaminação teológica

 




Diálogos entre tradição, cultura e fé no rito

Paolo Cugini

A liturgia, entendida como expressão ritual da fé, sempre representou um dos lugares privilegiados onde a teologia toma forma, se transforma e se confronta com as múltiplas dimensões da experiência humana. Nessa perspectiva, a liturgia não é um conjunto estático de gestos e palavras, mas um espaço vivo de contaminação teológica: um cruzamento onde diferentes tradições, sensibilidades e reflexões se encontram, dialogam e frequentemente se fundem, gerando novas formas de expressão do sagrado e novas interpretações da fé. Isso, pelo menos, é o que deveria acontecer, ou seja, a possibilidade de participar de liturgias que sejam um espaço autêntico de encontros de caminhos diversos e, sobretudo, a possibilidade de expressar o Mistério em uma linguagem que entre em sintonia com quem participa.

Ao longo da história, a liturgia sempre refletiu uma multiplicidade de tradições teológicas. Já nos primeiros séculos do cristianismo, as maneiras de celebrar a Eucaristia, o Batismo ou as Horas litúrgicas diferiam sensivelmente entre as diversas comunidades locais, de acordo com as influências culturais, linguísticas e teológicas do contexto. Essa pluralidade nunca esteve isenta de tensões: as lutas entre as diferentes escolas teológicas, os debates doutrinários e as necessidades pastorais atravessaram constantemente o espaço litúrgico, gerando contaminações fecundas mas também conflitos e cismas. A própria história da Igreja — basta pensar no contraste entre oriente e ocidente, entre rito romano e ritos orientais, entre protestantismo e catolicismo — pode ser lida como uma contínua dialética de contaminações e separações, frequentemente evidentes justamente na liturgia.

Falar de “contaminação” na esfera litúrgica e teológica não significa necessariamente pensar em corrupção ou perda de pureza. Ao contrário, a contaminação pode ser entendida como uma dinâmica positiva, capaz de gerar vitalidade, abertura e criatividade dentro da comunidade cristã. Ao longo dos séculos, a liturgia soube acolher e integrar elementos provenientes de culturas, povos e tradições mesmo muito diferentes entre si. As melodias gregorianas dialogaram com as escalas orientais, os textos litúrgicos se enriqueceram com simbolismos e mitos locais, as arquiteturas dos lugares de culto incorporaram estilos diferentes, dando origem a uma polifonia que reflete a riqueza e a complexidade da fé vivida.

Um dos conceitos-chave para compreender a liturgia como espaço de contaminação teológica é o da inculturação. A liturgia, longe de ser um monólito dogmático, é frequentemente o resultado de um processo sincrético no qual elementos pré-cristãos, práticas populares e novas sensibilidades espirituais encontram lugar ao lado dos ritos institucionais. As reformas litúrgicas, como a promovida pelo Concílio Vaticano II, representaram momentos cruciais de abertura e diálogo: a tradução dos textos para as línguas locais, a inserção de músicas e simbolismos típicos das diferentes culturas, e a participação mais ativa dos fiéis favoreceram uma contaminação capaz de renovar e tornar mais autêntica a celebração.

Se a teologia é reflexão sobre a fé vivida, a liturgia representa o laboratório onde essa reflexão encontra sua verificação e expressão concreta. Aqui, experimentam-se novas formas de oração, redefinem-se os símbolos, resignificam-se os gestos tradicionais. A contaminação teológica torna-se assim o motor de um processo criativo que renova a compreensão do mistério cristão e o torna acessível às gerações seguintes. Um exemplo emblemático são as liturgias ecumênicas, nas quais cristãos de diferentes confissões se reúnem para celebrar juntos, integrando elementos de suas respectivas tradições em um rito comum. Nesses contextos, a contaminação não é apenas tolerada, mas buscada, na consciência de que a diversidade enriquece a comunhão e abre novos caminhos para a busca teológica.

No mundo atual, caracterizado por uma crescente mobilidade e mistura de povos e culturas, a liturgia é chamada a se confrontar com a interculturalidade. As comunidades cristãs frequentemente precisam integrar pessoas de origens, línguas e sensibilidades muito diferentes, perguntando-se como celebrar uma fé comum sem apagar as identidades particulares. Nesse sentido, a liturgia torna-se um espaço privilegiado de contaminação teológica, onde se experimentam novas sínteses entre universalidade e particularidade, entre tradição e inovação. Os cantos, os símbolos, os gestos e até a disposição dos espaços celebrativos podem ser repensados à luz das novas exigências pastorais, abrindo caminho para uma teologia mais inclusiva e dialógica.

Naturalmente, a contaminação teológica no âmbito litúrgico não está isenta de riscos. O perigo de uma banalização do sagrado, de um sincretismo superficial ou de uma perda de coerência teológica está sempre presente. Cabe à comunidade, aos pastores e aos teólogos discernir, em cada caso, quais elementos podem ser integrados sem trair o núcleo essencial da fé cristã. O diálogo entre as diferentes tradições deve ser orientado pelo respeito mútuo, pelo conhecimento profundo das próprias raízes e pela capacidade de reconhecer o valor da alteridade sem temer a erosão da própria identidade.

A liturgia, entendida como espaço de contaminação teológica, configura-se como um laboratório vivo onde a fé se encarna na história, se abre ao encontro e se renova. Ela é o lugar onde a teologia deixa de ser mera especulação abstrata para tornar-se gesto, palavra, canto, relação. Em um tempo em que as identidades parecem se fechar em si mesmas, a liturgia convida à contaminação, ao diálogo, à acolhida do outro. Nesse movimento, a Igreja pode redescobrir a profundidade do próprio mistério e a riqueza inesgotável do Evangelho, sempre capaz de gerar novas formas de beleza, de comunhão e de sentido.

A liturgia como encontro: um espaço onde a teologia encontra a vida concreta das pessoas e das culturas.

A contaminação como recurso: um processo dinâmico que enriquece a fé e abre novos caminhos ao diálogo entre tradição e inovação.

A responsabilidade comunitária: O discernimento necessário para integrar sem perder o essencial.

Assim, na infinita trama da liturgia, cada contaminação é ocasião de crescimento, de escuta e de redescoberta da presença viva do mistério cristão no coração da humanidade.

 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

A necessidade de uma teologia de baixo

 



 

Reflexões sobre uma fé encarnada na história dos povos

 

Paulo Cugini

No amplo panorama do pensamento teológico contemporâneo, cresce a consciência de que a teologia não pode mais ser construída apenas "de cima", como uma reflexão abstrata e distante das necessidades concretas das pessoas. O apelo por uma "teologia de baixo" surge da experiência de comunidades, periferias e histórias vividas, frequentemente marcadas pela marginalização, exclusão e sofrimento, mas também pela esperança e resistência. Essa demanda não é simplesmente uma moda passageira no âmbito acadêmico ou pastoral, mas decorre de um profundo movimento na história da fé, do cristianismo e das religiões, em direção a uma reinterpretação da experiência de Deus a partir da vida real de crentes e buscadores.

A teologia "de baixo" contrasta com uma teologia "de cima", que frequentemente se concentra em sistemas doutrinários e dogmáticos produzidos por elites religiosas e escolares, às vezes distantes da dinâmica cotidiana das pessoas. "De baixo" refere-se a um movimento que parte do povo, da experiência concreta e da leitura da Palavra em diálogo com a realidade social, cultural, política e econômica em que vive.

Esta teologia se nutre das histórias, lutas, sonhos e feridas das pessoas, especialmente daquelas à margem: os pobres, os excluídos, as vítimas de injustiça, as pessoas LGBTQIA+ e as mulheres. Ela também leva em consideração aqueles que a sociedade declara serem minorias, como os povos indígenas, diversas etnias vítimas de extermínio, mas também os moradores de rua, os nômades e os ciganos. Há um mundo inteiro vivendo sob a superfície da história, sistematicamente excluído não apenas pela sociedade que se narra a partir de seu centro, mas também pela Igreja, pelas comunidades cristãs que são vítimas de uma narrativa teológica. Não se trata de substituir uma visão por outra, mas de integrar a perspectiva da vida vivida à reflexão sobre Deus, a Igreja e o sentido último da existência.

A própria tradição bíblica mostra como Deus frequentemente se revela àqueles que se encontram nas situações mais difíceis: Abraão chamou do deserto, Moisés libertou um povo escravo, os profetas deram voz aos que não tinham voz. O Evangelho de Jesus é profundamente marcado por encontros com mulheres e homens excluídos, doentes, pobres e estrangeiros. A cruz de Cristo é a expressão suprema de um Deus que se une à humanidade ferida.

Ao longo da história da Igreja, a tensão entre uma teologia "oficial" e uma fé popular, vivida na concretude da vida cotidiana, sempre esteve presente. Basta pensar nas devoções populares, nos movimentos de reforma e nas lutas por justiça social.

Nas últimas décadas, experiências como a teologia da libertação na América Latina deixaram claro como a reflexão sobre Deus deve partir da experiência concreta dos pobres e oprimidos. Da mesma forma, teologias feministas, queer, indígenas e pós-coloniais nos lembram que existem muitas vozes, muitas vezes silenciadas, que têm algo a dizer sobre o mistério de Deus.

Vivemos em uma era marcada por múltiplas crises: social, econômica e ambiental, além de uma profunda crise de sentido. Em muitas partes do mundo, as instituições religiosas parecem distantes das reais necessidades das comunidades. Nesse cenário, uma teologia de baixo torna-se não apenas oportuna, mas urgente. Ela permite uma credibilidade renovada da mensagem cristã, pois coloca a pessoa — com sua história, sofrimento e esperanças — no centro das atenções. Ao ouvir verdadeiramente as questões, preocupações e expectativas que emergem da vida real, a reflexão teológica se torna mais humana, mais acessível e mais profética. Uma teologia de baixo também oferece um espaço para o reconhecimento das experiências daqueles que, por razões de origem, classe social, etnia, orientação sexual ou condição econômica, foram historicamente excluídos dos processos decisórios e da própria produção teológica.

Experiências de teologia popular já produziram resultados extraordinários: maior atenção à inclusão, uma releitura renovada das Escrituras, diálogo inter-religioso e intercultural e um compromisso com a justiça social e a paz. Desenvolveram-se práticas pastorais mais atentas à participação de todos, valorizando a riqueza das experiências diversas. Essa perspectiva não abandona a busca da verdade teológica, mas a enraíza na experiência da comunidade, na partilha, no serviço concreto, na escuta mútua. Dessa forma, a teologia deixa de ser apenas palavras, tornando-se gesto, ação e escolha cotidiana.

Embora a teologia popular abra novos horizontes, ela também apresenta desafios. O primeiro é evitar a fragmentação: ouvir múltiplas vozes é enriquecedor, mas também exige um trabalho de síntese e discernimento. Além disso, devemos ter cuidado para não contrastar radicalmente "alto" e "baixo", mas sim promover um diálogo frutífero entre a reflexão acadêmica e a vida cotidiana. Outro desafio é o risco do relativismo: colocar a experiência no centro pode levar à dispersão de significado. Mas uma teologia popular fundamentada nas Escrituras, na tradição viva e no discernimento comunitário pode manter sua própria direção.

Olhando para o futuro, a teologia popular é chamada a ser cada vez mais dialógica, pluralista e atenta aos sinais dos tempos. É uma teologia que escuta o clamor da terra e dos pobres, como nos lembrou o Papa Francisco. É capaz de abordar as questões das novas gerações, das minorias, dos migrantes, dos povos indígenas, das mulheres e das pessoas LGBTQIA+. Será cada vez mais importante formar comunidades capazes de discernimento e escuta, onde a reflexão sobre Deus surja da discussão e da experiência compartilhada, não apenas da autoridade ou da doutrina. A teologia popular não é uma moda passageira, nem é simplesmente uma opção entre muitas: é a resposta a uma profunda necessidade em nossas comunidades e sociedades. É um caminho para restaurar o sentido e a força da mensagem cristã, para construir Igrejas e sociedades mais justas, abertas e acolhedoras. Somente ouvindo aqueles que caminham à margem da história a teologia pode se tornar verdadeiramente uma palavra viva, capaz de mudar o mundo.