terça-feira, 31 de agosto de 2021
sábado, 14 de agosto de 2021
O CRISTIANISMO É UMA RELIGIÃO?
Paolo Cugini
A elaboração racional moderna,
que teve seu ápice mais significativo e, em alguns aspectos, representativo no
Iluminismo, queria interpretar a realidade, mas desfigurou-a. A produção
ocorrida na época moderna de sistemas em todos os níveis, com a pretensão de
explicar a realidade, de mostrar seu caminho, em vez disso, enjaulou-a de modo
a provocar sua rebelião. O que vem acontecendo há décadas em diferentes níveis
como clima, finanças, economia, política, só para citar algumas áreas, é o
resultado desse processo de homologação da realidade, com a presunção de que
ela poderia ser apreendida em sua complexidade por um conhecimento
pré-abrangente.
A realidade só pode ser ouvida
e as propostas racionais que podem ser elaboradas, devem ser realizadas como
conseqüência desse primeiro movimento inalienável de escuta. Os desastres dos
métodos heurísticos modernos também foram vistos na ciência, como Paul
Feyerabend sabiamente mostrou, afirmando com que frequência os cientistas
forçam a realidade, ou seja, os dados de experimentos, para comprovar suas
teorias. Não é a realidade que precede a ideia e a orienta, mas o contrário: a
ideia que força a realidade e a desfigura, para que a ideia seja demonstrada e
vitoriosa. Nessa perspectiva, a fenomenologia tem representado para a cultura
ocidental uma tentativa bem-sucedida de mudar caminhos, não de antecipar a
realidade, mas de apreendê-la como ela se manifesta, acompanhá-la e, a partir
desse ponto de vista, elaborar alguns caminhos.
A religião não correspondeu ao processo de homologação moderna mas, ao
contrário, está se propondo de uma maneira nova. É como se o processo de
secularização tivesse feito bem a ela. Depois de passar décadas sob o fogo
cruzado dos sistemas materialista e existencialista, recebendo em várias
ocasiões a marca de ser uma expressão de conteúdos obsoletos, vão surgindo
formas sacrais espontâneas, não vinculadas a dogmas ou doutrinas, mas uma
expressão da experiência pessoal de auto - transcendência. A crítica e a
secularização modernas atingiram duramente o envoltório externo das religiões,
em suas formulações éticas, na tentativa de responder ao desafio racionalista,
fortaleceram o aparato conceitual e doutrinário que, em todo caso, se revelou
muito pesado e inadequado. Por um lado, assistimos ao florescimento de caminhos
religiosos desvinculados da proposta das grandes tradições religiosas, caminhos
individuais ou pequenos grupos, em busca do bem-estar pessoal e não
comunitário.
Por outro lado, o processo de
secularização não promoveu uma superação da religião, mas uma mutação de seu
significado. Isso é particularmente visível no cristianismo, como argumentou
Dacquino, porque: “dentro da diferenciação funcional da sociedade, mostra a
especificidade sociocultural da experiência religiosa”. Sem dúvida, esta
metamorfose tem provocado um debate interno, dentro do próprio Cristianismo,
entre aqueles que defendem a bondade da relação entre a esfera social e mais
estritamente sagrada e aqueles que consideram esta união a negação da missão da
religião, que deveria ser relegada apenas a a esfera sacra e transcendente. O
aspecto mais significativo desse debate dentro do Cristianismo é o
questionamento da identidade religiosa.
Afinal, o Cristianismo é uma
religião? Talvez esta seja uma das contribuições mais significativas, embora
inesperadas, da secularização. Questionar a estrutura religiosa do Cristianismo
significa observá-lo de um novo ponto de vista, não do sacro, mas do princípio
fundador sobre o qual está estruturado, a saber, a Encarnação. O Deus que entra
na história torna inútil qualquer cobertura sacra, porque a partir de agora o
divino é acessível sem qualquer mediação. É a imediação do divino na história
que causa o processo de desconstrução do aparelho sacro da religião. Apesar
disso, o cristianismo, desde o início, não renuncia ao sagrado, antes o usa em
abundância, absorvendo do mundo pagão, especialmente do Sacro Império Romano,
uma quantidade significativa de material, que o cristianismo utilizou para sua
própria cobertura sacra. Além disso, a produção teológica do milênio medieval
tudo fará para revestir de significados racionais os invólucros sacrais do
cristianismo, transformando-o em religião. Um dos aspectos mais significativos
da era pós-moderna consiste em ativar processos de desconstrução, que são, ao
mesmo tempo, processos de desmascaramento em todos os níveis. Pois bem, o
Cristianismo está a passar pelo escrutínio deste processo, recuperando por um
lado a essência da sua proposta contida na Encarnação e, por outro, tendo a
possibilidade de deixar para trás séculos de obscurantismo intelectual e
confusão sagrada.
Um retorno às origens,
portanto, é a grande oportunidade da era pós-moderna. Nesse processo de
desmascaramento, a secularização, que mais ou menos involuntariamente abriu uma
nova temporada para o cristianismo, teve grande mérito pelas considerações
feitas acima. Com efeito, ao afastar-se da marca religiosa, pode ter a
possibilidade de manifestar o conteúdo específico da sua proposta tanto a nível
pessoal como social. Não só isso, mas como afirma Dotolo: “o fim da equação
entre o cristianismo e a religião é, ou pode ser, o início de uma abordagem
diferente para dizer Deus, sem o achatamento barato de um ideal regulador que
também afeta a qualidade de ' existência".
sexta-feira, 6 de agosto de 2021
DEUS NA PRISÃO DE SER
Paolo Cugini
É possível pensar e perceber
Deus fora das categorias metafísicas da filosofia ocidental, que sempre o
descreveram nos termos ontológicos do Ser? O filósofo francês Jean Luc Marion
tentou libertar Deus da prisão do ser. Talvez, entretanto, não haja necessidade
de se preocupar com a filosofia para entender que Deus está além de nossas
grades conceituais.
A percepção de Deus ocorre, em
primeiro lugar, na história pessoal de uma pessoa e, portanto, no horizonte das
percepções sensíveis, tanto interiores como exteriores. Não vamos a Deus porque
demonstramos racionalmente sua existência, mas porque percebemos sua presença.
Passamos a acreditar nele porque, em alguns aspectos, o vemos, o sentimos,
percebemos que há algo novo, qualitativamente diferente. E, então, mais do que
demonstrar sua existência com argumentos racionais, nós o testemunhamos, porque
o vimos, ouvimos, percebemos. Se o argumento racional precisa de uma lógica
férrea, de silogismos bem articulados para que chegue a uma conclusão que não
deixe margem para dúvidas, o que procede do testemunho é bem diferente.
Em primeiro lugar, é sempre
pessoal, subjetivo. Isso não significa que tenha menos validade do que uma
prova de fundamento exclusivamente objetivo, como uma equação matemática.
Estamos, de fato, falando de Deus, que não pode ser classificado por nenhum
argumento, no sentido de que há sempre algo sobre Deus que nos escapa, que fica
fora do nosso horizonte de conhecimento. Este é um aspecto importante a ser
considerado. Ninguém pode presumir que sabe tudo sobre Deus, ou comunicar algo
sobre Ele de forma apodíctica. Sempre que falamos de Deus, devemos aprender a
tirar os sapatos, como Moisés fez quando se aproximou da sarça ardente onde viu
a presença de Deus.
Em segundo lugar, Deus não se
manifesta com características humanas. Nós o chamamos de Pai por conveniência
de expressão filtrada pela cultura patriarcal. Deus não tem sexo, não tem
gênero. Só podemos falar de Deus por suposição, por aproximação. Podemos
compartilhar essa experiência sensível particular de forma qualitativa e
freqüentemente emocionalmente diferente que a chamamos de Deus, sem realmente
saber o que é. Aqueles que podem discernir nossas impressões e verificar sua
bondade só podem ser aqueles que vêm do mesmo tipo de experiência, que têm uma
experiência semelhante para compartilhar.
Depois, há a sua Palavra,
aquela que está escrita na Bíblia e que se define como Palavra de Deus, mas
esta também deve ser filtrada, verificada, porque está repleta de elementos
culturais da época em que foi escrita. Deus se revela e o faz usando a cultura da
época para se comunicar com aqueles homens e mulheres. Os textos que lemos na
Bíblia estão repletos de elementos culturais específicos do período em que
aquele texto em particular foi escrito. Podemos apreender a verdade da Palavra
revelada tanto pela obra dos exegetas, como pela experiência pessoal, que nos
permite reconhecer o Senhor ouvido na Palavra, como aquele que encontramos na
vida.
Dizer Deus nesta conjuntura
particular da história, que em poucas décadas desmantelou a fragilidade dos
sistemas racionais, que à distância se mostraram incapazes de descrever o
Mistério, significa a coragem de dobrar as grades enferrujadas da metafísica,
que durante séculos fingiram encerrar o Mistério e assim libertá-lo, permitindo
que pessoas livres o encontrem como ele se manifesta e não como ele é
representado.
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