Uma estrutura cultural tão
rígida não podia dar certo. É isso que sustenta o filósofo italiano Gianni
Vattimo, que dedicou muito tempo na análise da cultura pós-moderna que, a seu
ver, é caracterizada por um processo de desmascaramento do vazio cultural
produzido na modernidade. Existe toda uma série de eventos acontecidos nas
últimas décadas que comprovam a dissolução da metafísica clássica, o
enfraquecimento de um ser apresentado como fundamento único e objetivo da
realidade. A queda do muro de Berlim, a crise sistemática do modelo econômico
neoliberal, o mundo pluralista em que vivemos, o desmoronamento do mito do
progresso ilimitado, fruto maduro do iluminismo setecentesco, o aquecimento do
planeta, fruto de um desenvolvimento econômico que desrespeita a natureza: são
todos sintomas de um enfraquecimento do ser da metafísica forte de cunho
ocidental, que desembocam no niilismo. Na Babel do pluralismo do crepúsculo da
modernidade, do desmoronamento das metanarrativas de lyotardiana memória
(LYOTARD, 2004), das ideologias fortes centradas sobre verdades absolutas, se
multiplicam as narrativas sem um centro e uma hierarquia. “O fim da metafísica,
vista como crença em uma ordem fundada, estável, necessária, e objetivamente
cognitiva do ser, foi acompanhado, no pensamento e na prática social, pela
morte do Deus moral, do Deus dos filósofos” (VATTIMO 1996, p.37).
Pela
metafísica clássica que Vattimo critica, a verdade não é nada mais que o fruto
de uma projeção subjetiva, idealista, um fato fixo. A esse tipo de verdade, o
mundo pós-moderno está dizendo adeus. A reflexão de Nietzsche do anúncio da
morte de Deus e do advento do niilismo se encaixa com a análise heideggeriana
do fim da modernidade, abrindo o caminho por novas perspectivas
filosóficas. Se, de fato, ao longo dos
séculos, a metafísica ocidental tentou reiteradamente apresentar o ser como
algo de forte, fundamento objetivo da realidade, ocultando a sua autêntica
natureza que é a fraqueza, a tendência ao aniquilamento como todo evento
histórico, isso para Vattimo mostra como, na realidade, o niilismo não é algo
de extrínseco ao mondo ocidental, a sua cultura e ao seu berço cristão, mas sim
é intrínseca. “A metafísica se manifesta, na sua essência, quando chega ao fim
e alcança o seu fim precisamente enquanto se revela na sua essência” (VATTIMO
2006, p.64), ou seja, como enfraquecimento, como esquecimento do ser. Os
eventos do mundo contemporâneo confirmam esta análise no plano metafísico.
Existe uma lógica no desastre que a todos os níveis estão se manifestando, um
desastre devido a uma interpretação errada do ser como presença, como algo de
fixo e, sobretudo, como algo que o homem pode manipular. O destino do ocidente não pode que ser
marcado pelo caminho do enfraquecimento do ser, caminho que, infelizmente, ao
longo dos séculos, deixou um marco profundo na história, o marco da violência.
Refletir sobre violência e metafísica parece um paradoxo, mas à luz da análise
histórica tão paradoxal não é.
A conatural necessidade à qual corresponde a
metafísica, aquela de apreender a arché, está profundamente ligada à hýbris de
quem quer entrar em possesso completo da própria existência e, portanto, no
final, ao predomínio em nós das leis da sobrevivência, aquelas que
“justificam”, em última análise, a violência na qual reside o mal. (VATTIMO,
2004, p. 141)
A metafísica como fixação rígida do ser
produziu sempre um pensamento forte incapaz de acolher as identidades alheias,
as diferenças culturais e religiosas. O mundo ocidental é um mundo
substancialmente violento e esta violência tem a sua própria raiz na metafísica
que até agora a inspirou. Os poderes políticos fortes que se subseguiram ao
longo dos séculos no ocidente cristão foram sempre sustentados por uma
metafísica forte, que a invés de se colocar a escuta da realidade para
responder a ela, sempre tentou antecipá-la e, assim, prendê-la dentro do
próprio sistema. Vattimo não esconde a
profunda ligação da Igreja católica e do cristianismo em geral com as
estruturas de violência brotadas do seio da metafísica clássica. A defesa que a
Igreja faz da lei da natureza para, ainda hoje, defender os seus dogmas em
campo moral, e, sobretudo, “a maneira pela qual quer impô-los correspondem a um
modo específico de conceber a figura da Igreja no mundo: uma estrutura
fortemente organizada em sentido hierárquico, vertical e definitivamente
autoritário” (VATTIMO, 2004, p. 145). Tudo isso torna-se evidente na
incapacidade crônica da cultura ocidental e, junto com ela, do cristianismo, de
acolher as minorias como as pessoas homossexuais, que não se encaixam na
estrita norma da natureza elaborada pela metafisica clássica, assimilada também
da teologia cristã.
Nessa altura, o
abandono da metafísica forte para uma débil deveria ajudar não apenas a Igreja,
mas também as estruturas políticas ocidentais a elaborar projetos e morais mais
tolerantes e atentas ao pluralismo típico do fim da modernidade. Para entendermos isso, precisamos realizar
um caminho, ou melhor, uma mudança de perspectiva. Se o ser como presença está
manifestando todas as suas falhas não apenas no plano teórico, mas sim,
sobretudo, no plano histórico e existencial, então é nessa última perspectiva
que o ser deve ser de agora em diante interpretado, ou seja, como evento.
Aquilo
que o homem tem de específico e que o distingue das coisas é o fato de estar
referido à possibilidade e, portanto, de não existir como realidade
simplesmente presente. O termo existência, no caso do homem, deve entender-se
no sentido etimológico de ex-sistere, estar fora, ultrapassar a
realidade simplesmente presente na direção da possibilidade”. (VATTIMO,
1996, p. 25)
Vattimo recupera o
discurso heideggeriano de Ser e Tempo, da existência como Dasein, ser no mundo
(HEIDEGGER, 2004). Não é possível entender o ser fora de uma específica
dimensão temporal, histórica. Parece ter sido esse o problema maior da
filosofia europeia: incapacidade de pensar a historicidade e a vida na sua
efetividade. O homem está situado na história de uma forma dinâmica e é somente
nesta maneira que deve ser considerado. Se a verdade não pode ser mais o
reflexo de uma estrutura eterna do real, um princípio único e unificador, um
sistema de pensamento rígido e abrangente da totalidade, então deve ser captada
como “uma mensagem histórica que devemos ouvir e a qual somos chamados a dar
uma resposta” (VATTIMO, 2004, p. 13). Na perspectiva filosófica de Vattimo, a
palavra evento é tão significativa na nossa época como foi para os gregos o
termo logos, ou para os cineses, o Tao. De fato, quando não dá para pensar o
ser como simples presença por causa do seu enfraquecimento progressivo, só pode
aparecer como evento, na sua dinamicidade histórica. É desta forma e somente
assim que o ser deve ser entendido, ou seja, como interligado à existência
humana. Em outras palavras: o fim da metafísica como presença, provocado pelo
desmoronamento dos sistemas fortes elaborados na busca de uma objetividade
absoluta, desvenda a realidade do ser e do mesmo homem, que não existe em si e
por si, mas somente como relacionamento recíproco. “O ser relaciona-se com o homem enquanto tem
necessidade deste para acontecer; e o acontecer não é um acidente ou uma
propriedade do ser, mas é o próprio ser. Nem o homem nem o ser podem
conceber-se como “em si”, que depois se encontram em relação” (VATTIMO, 1996,
p. 116).
O fim da metafísica como busca
do fundamento único da realidade, além de manifestar o niilismo como
consequência desse projeto, revela ao mesmo tempo a nova possibilidade de
pensar o homem assim como ele é, ou seja, dentro do seu dinamismo histórico e
existencial. O ser nunca é outra coisa senão o seu modo de se dar na história
aos homens de uma determinada época. É exatamente a este nível que se tornam
significativas as reflexões de Zygmunt Bauman que dedicou muitas páginas na
tentativa de interpretar as nuanças culturais desta nova época. A liquidez é a
metáfora que Bauman utiliza para explicar o sentido da pós-modernidade. A crise
das ideologias fortes, pesadas, sólidas, típicas da modernidade, produziu do
ponto de vista cultural um clima fluido, líquido, leve, caracterizado pela
precariedade, incerteza, rapidez de movimento.
Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não
mantêm sua forma com facilidade [...] Enquanto os sólidos têm dimensões
especiais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a
significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou tornam
irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão
constantemente prontos (e propensos) a
mudá-la. (BAUMAN, 2005, p. 8)
Se na modernidade as ideologias elaboradas
tinham a pretensão de serem abrangentes, exaustivas e, sobretudo orientativas,
não é assim pela cultura elaborada na pós-modernidade, na qual tudo flui de um
jeito extremamente rápido de uma forma que, aquilo que era certo ontem, hoje
não é mais. Neste mundo líquido assistimos, assim, a algumas passagens
importantes, que marcam o novo clima cultural.
A primeira passagem é a seguinte: de
uma vida segura para uma vida precária. “A vida liquida é uma vida precária,
vivida em condições de incerteza constante” (BAUMAN, 2005b, p. 8). Se a
modernidade oferecia um leque de ideologias fortes, que produziam uma segurança
existencial nas pessoas que nelas confiavam, neste mundo líquido não é mais
assim. O desmoronamento das metanarrações da modernidade trouxe consigo a perda
de pontos referenciais válidos, que pudessem oferecer segurança à vida das
pessoas. A precariedade de agora em diante se tornou não apenas um fato
cultural, mas sobretudo social, também porque não foram apenas ideologias a
desmanchar, mas também estilos de vida, costumes.
As
preocupações mais intensas e obstinadas que assombram este tipo de vida são os
temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos
eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar
sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e
mudar de rumo antes de tomar o caminho de volta. (BAUMAN, 2005b, p. 8)
Precário é o homem que se
sente inseguro não apenas para o trabalho, que não é mais fixo, mas também pelo
medo das pessoas novas que estão enchendo as cidades ocidentais, pela ameaça do
terrorismo, pelo medo de não conseguir acompanhar as novidades tecnológicas.
Existe um mundo em contínuo movimento, extremamente rápido que deixa qualquer
pessoa na constante preocupação de manter o ritmo das mudanças, de não ficar de
fora dos acontecimentos. Essa vida precária, sem nenhum tipo de segurança, que
obriga as pessoas a mudar continuamente de situações, é o novo estilo de vida
da sociedade líquida.
Uma outra passagem que marca a
modernidade líquida é: de uma sociedade que acredita na eternidade,
para uma que vive a infinitude (BAUMAN, 2005b, p.
13). A eternidade é sem dúvida um conceito de cunho religioso que,
de um ponto de vista filosófico, pode ser colocado entre as ideologias que a
modernidade assumiu e que, ao mesmo tempo, orientou a vida dos homens modernos.
A infinitude é o tempo presente protelado, esticado. “O dia de hoje pode-se
esticar para além de qualquer limite e acomodar tudo aquilo que um dia se
almejou vivenciar apenas na plenitude do tempo” (BAUMAN, 2005b, p. 15).
Não se fala mais de valores eternos, mas sim de eventos que se repetem no
tempo. Também porque os valores eternos são fundamentados sobre aqueles
princípios metafísicos que na pós-modernidade não encontram mais espaço. O
infinito, que substitui o conceito de eternidade, não é de cunho metafísico,
mas sim existencial. O infinito pode ser assim entendido como uma série
continua de tempos presentes, sem precisar especular improváveis mundos
futuros, mas simplesmente aceitar o contínuo movimento do tempo. O tempo fluido
pós-moderno não precisa mais de eternidade pelo simples fato de que desmoronou
o equipamento conceitual, ou seja, a metafísica, que amparava essa ideologia. Por
outro lado, não podemos também sustentar que esta ideia de tempo fluido retoma
a velha concepção filosófica do mito do eterno retorno (ELIADE, 1999) ligado à
natureza. Nada de filosófico ou de esotérico sustenta a vida do homem
pós-moderno, mas sim a exploração paroxística de tudo aquilo que o evento
presente pode oferecer. É a protelação
desses eventos que rende o tempo infinito, sem nenhuma ligação com aquilo que o
precede e também com o evento sucessivo. Na análise de Bauman, uma
característica faz da modernidade líquida algo novo e diferente, comparado ao
modelo cultural anterior: o desmoronamento da antiga ilusão moderna, ou seja:
Da crença de que há um fim do
caminho em que andamos, um télos alcançável da mudança histórica, um Estado de
perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum
tipo de sociedade boa...da ordem perfeita em que tudo é colocado no lugar
certo... do completo domínio sobre o futuro. (BAUMAN, 2005, p. 37)
Talvez seja este o sentido mais profundo, do
ponto de vista filosófico, da metáfora da liquidez, que Bauman analisa em
várias circunstâncias[1]. A sociedade líquida não desceu do céu, não se
produziu do nada, improvisadamente, mas foi o fruto maduro do desmoronamento da
modernidade, ou seja, do processo do derretimento dos sólidos formados e
elaborados na modernidade. Entre eles, Bauman coloca a filosofia da História, a
possibilidade de calcular o futuro a partir dos dados presentes. Nisso ele se
aproxima das teorias dos maiores teóricos da pós-modernidade, ou seja, Lyotard
(2003), Vattimo (2002), Rorty (2005), que apontam nas ideologias da modernidade
o cerne de toda uma elaboração racional que por séculos se esforçou em
determinar o futuro da humanidade, pagando o preço salgado de forçar a
realidade presente. As ideologias modernas não eram nada mais que o fruto de
uma elaboração conceptual desvinculada da realidade e coube à História
demonstrá-lo. Bauman, em várias páginas da sua obra, cita eventos que marcaram
o século passado e que estão na base do desmoronamento das ideologias modernas.
Antes de tudo, o holocausto e o fracasso do modelo econômico liberal proposto
no ocidente. As grandes massas migratórias de pobres em busca de condições de
vida melhores são a clara manifestação de algo de errado nos cálculos perfeitos
dos economistas ocidentais. Ninguém pode calcular o desastre econômico e
cultural que a globalização está produzindo.
A terceira passagem que marca
o novo contexto cultural é a desregulamentação e a privatização das tarefas
e deveres modernizantes. Na modernidade líquida não existem mais valores sociais,
mas individuais. Aquilo que na modernidade era considerada tarefa da coletividade,
da sociedade, foi transferida para o indivíduo. De agora em diante, vale
somente aquilo que interessa ao indivíduo. Ninguém quer gastar mais o seu tempo
para que os valores sociais sejam alcançados e realizados: vale somente o
interesse individual. É essa a lógica do mercado que afeta tanto a vida
política quanto as atitudes da vida corriqueira. “As esperanças de aperfeiçoamento, em vez de convergir para grandes
somas nos cofres do governo, procuram o troco nos bolsos dos consumidores”
(BAUMAN, 2005, p. 38).
[1]
“É por essa razão que o advento da
sociedade liquido-moderna significou a morte das principais utopias da
sociedade e, de modo mais geral, da ideia de “boa sociedade” (BAUMAN, 2005,
p. 19).
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