sábado, 25 de outubro de 2025

UMA IGREJA CONTAMINADA?

 




Paolo Cugini

Quais são os aspetos, os setores da teologia e da realidade eclesial que se tornaram espaços de contaminação e quais são as contaminações mais significativas? Em outras palavras, o que está a contaminar a Igreja, que temas, problemáticas e processos culturais estão a forçar o tecido eclesial a abrir-se ao confronto, a deixar-se contaminar? São estas as perguntas que procuram conduzir à vivência quotidiana, à realidade, para não permanecer sempre no plano teórico, mas mostrar como aquilo que analisámos não só tem consequências na vida das pessoas, mas já está em curso. A cultura do “depois”, que traz como marca visível o prefixo “pós”, rompeu barreiras que pareciam indestrutíveis e, deste modo, abriu e está a abrir novas brechas no pensamento, novas possibilidades existenciais e espirituais. Na minha opinião, é impossível permanecer imune a este processo, cada vez mais avassalador, em todos os níveis da cultura. Também a Igreja, portanto, não se pode dar ao luxo, e sobretudo ao risco, de se fechar em si mesma, continuando a lutar sozinha contra moinhos de vento, porque esse mundo contra o qual lutava já não existe; e se não se apercebe disso, alguém tem de lho dizer: sem ofensa, mas por amor.

Em primeiro lugar, convém esclarecer logo que, como defendia Thomas Kuhn, que elaborou o conceito epistemológico de paradigma, apesar das mudanças paradigmáticas, os sujeitos envolvidos não mudam de postura de um dia para o outro. Em outras palavras, não podemos esperar de uma instituição como a Igreja, que há séculos defende com unhas e dentes as suas verdades dogmáticas, que se torne imediatamente disponível para a contaminação: seria exigir o absurdo. Creio que, nesta primeira fase, é importante abrir brechas culturais sobre as quais seja possível estabelecer um diálogo aberto e sincero. O facto que emerge neste novo contexto é que já não é possível permanecer entrincheirado nas próprias posições. A Igreja tem um património espiritual, cultural e artístico imenso, que pode, a qualquer momento, colocar nas mesas de diálogo, com um estilo aberto, disponível, sem condenar ninguém, mas mostrando a capacidade de valorizar cada contributo cultural. Há tanta beleza fora dos recintos eclesiais, há imensa espiritualidade que vale a pena conhecer e reconhecer, há caminhos culturais que merecem toda a nossa atenção, mesmo que venham de longe e, à primeira vista, pareçam não ter nada a ver connosco. Tudo está ligado a tudo e nada fica fora desta intuição.

Há outro ponto importante a sublinhar. Se é verdade que a nível da hierarquia levará muito tempo até que esta se torne sensível às contaminações e se deixe contaminar, ao nível da base este processo de contaminação já está em curso há muito tempo. Quem vive o Evangelho no quotidiano da comunidade local raramente se preocupa com a ortodoxia das suas escolhas e afirmações. Quem vive no mundo do trabalho, da escola, no mercado, nas ruas ou nas praças respira diariamente um ar novo, entra em contacto com mundos diferentes, que influenciam o pensamento, as escolhas, o comportamento. Ao nível da base, a ortopraxia conta mais do que a ortodoxia. Além disso, é bom recordar o fluxo de contaminações que acontecem a toda a hora nas muitas plataformas de internet. Se é impossível defender-se, também porque não faz sentido, o esforço que deve ser feito é o de oferecer instrumentos tanto de acesso a estes novos mundos culturais e espirituais, como de interpretação. Nem tudo o que encontramos nas praças é bom e merece ser assimilado. Como proceder e que percurso seguir para ser capaz de captar o belo no mundo e ajudar outros no mesmo caminho? Quais são aquelas contaminações que já nos contaminam positivamente, mesmo sem darmos conta?

CONTAMINAÇÕES NUM MUNDO INTERCONECTADO

 




Paolo Cugini

 

 

Quais são as consequências do novo paradigma cultural que tem, como característica principal, a ruptura com o modelo passado? Se o paradigma muda, também deve mudar a forma de abordar a realidade, pois é justamente isso que foi colocado em discussão. No Ocidente, viemos de um percurso cultural marcado pela dureza, por uma razão e racionalidade que não deixam espaço não só para a imaginação, mas também para os sentimentos, as paixões, tudo aquilo que caracteriza a nossa vivência quotidiana. Ao longo dos séculos, houve uma exacerbação do princípio da racionalidade, que prevaleceu sobre tudo, anestesiando a realidade, tornando-a insensível, incapaz de abordar o mundo de outra forma que não fosse pela razão. Existe uma paixão dentro da história, nas nossas veias; existe um sentimento profundo que sente a vida de modo diferente do raciocínio. A natureza tem um coração, que sente a vida com critérios que escapam aos sistemas lógicos e dialéticos elaborados na modernidade. Por isso, tudo desmoronou. A natureza é paciente, tranquila, mas em determinado momento revolta-se contra as violências, os abusos, as violações, as falsificações. Estamos a assistir à revolta da natureza: ela já não aguenta mais. Era preciso esperar pela destruição do planeta para nos apercebermos de que havia algo no nosso modo ocidental de abordar a realidade que não funcionava?

Se os sistemas conceptuais colapsam, com eles quebram-se os procedimentos lógicos fechados, as muralhas conceptuais construídas à medida para se defender da natureza e da realidade. Se já não existem mais pavilhões conceptuais e sistemas de proteção, isso significa que o campo está aberto, que há espaço para tudo, que o mundo, daqui em diante, pode criar aquelas relações das quais é estruturado. É a este nível de compreensão que entra em jogo, no novo paradigma cultural, o conceito de contaminação.

Utilizo o conceito de contaminação de forma exclusivamente positiva. Também isto já é uma indicação importante. A saída do paradigma da modernidade, que colocava a razão e o sujeito no centro absoluto do discurso, apresenta o homem como parte de um todo. O pensamento ocidental, que se consolidou na época moderna, sempre colocou o homem no centro de um mundo em que tudo gira à sua volta e do qual pode usufruir. Este mundo desmoronou, não resistiu ao impacto com a realidade que, como nos ensina a física quântica, está toda interligada, o exato oposto do que pensava o paradigma moderno. Habituados há séculos a classificar a realidade, a colocar fronteiras, a julgar quem era digno e quem não era, ficámos sem resposta quando a realidade nos apresentou a fatura, comunicando-nos que tudo está interligado, que a relação é o conceito chave para quem quiser compreender o sentido das coisas. Se tudo está em relação com tudo, significa que já não faz sentido elaborar sistemas perfeitos, que não têm qualquer referência real, mas que servem apenas para justificar conceitualmente tomadas de posição pessoais, muitas vezes para justificar usurpações e poder político.

Contaminação é um conceito ao mesmo tempo fascinante e perigoso. Fascinante porque nos conduz a dimensões inesperadas, novas, que exigem disponibilidade para nos deixarmos questionar. Entrar em mundos contaminados e deixar-se contaminar significa compreender que, no novo paradigma cultural, a identidade já não é um conceito construído sobre valores predeterminados, mas forma-se caminhando no tempo, atentos a onde se pisam, mas sempre com o olhar voltado para a frente e com o espírito aberto ao encontro, à relação. Ao mesmo tempo, contudo, o conceito de contaminação é perigoso porque põe em causa tudo aquilo em que nos fixámos e que determinou a estrutura do nosso mundo. É perigoso porque exige o abandono das seguranças conceptuais, juntamente com a disponibilidade não só de construir algo novo, mas de se deixar desconstruir. O conceito de contaminação, nos vários campos do saber, não pode ser implementado num paradigma moderno, fechado nos seus próprios sistemas construídos com princípios a priori. Sobretudo, porém, o conceito de contaminação não funciona em contextos em que alguém pensa que detém a verdade absoluta. A contaminação coloca-nos em marcha à descoberta de novos mundos e, enquanto os descobrimos, compreendemos a nós próprios.

 

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

O PROBLEMA DOS DOCUMENTOS NA PÓS-MODERNIDADE

 




Paolo Cugini

Uma característica específica do período cultural em que estamos imersos é que não é fácil fazer uma síntese. Existem muitas variantes culturais do novo paradigma que rapidamente mudam de horizonte ou desaparecem. Este é um aspeto novo. Até há algumas décadas, a cultura ocidental possuía uma estrutura interna, chaves de leitura claras, uma orientação de fundo partilhada. O mesmo pode ser dito das culturas de outros povos, cada uma com uma história, uma tradição bem distinguível. O problema do historiador, do investigador, do arqueólogo que estuda o passado, sobretudo nas culturas milenares, consiste em localizar documentos e, uma vez encontrados, poder interpretá-los.

Nas culturas dos séculos passados, nota-se o esforço de transmitir o conhecimento adquirido, especialmente de forma oral e, em alguns casos, por escrito ou através de outros meios, como a pintura, o desenho, a arquitetura. Quando são encontrados artefactos arqueológicos, o entusiasmo é sempre elevado, pois aumenta a possibilidade de conhecer um pouco melhor aquele povo específico, as suas tradições, os seus costumes. Hoje, o discurso mudou completamente. O problema da atualidade é a infinidade de documentos que todos os dias são produzidos em todo o mundo e colocados na rede. Existe uma disponibilidade de material documental de todos os tipos como nunca antes se viu na história. Este aspeto, em vez de simplificar as coisas, complica-as imensamente. Quem faz investigação hoje deve aprender a navegar no oceano infinito de material documental sobre cada tema específico que se pretenda estudar e aprofundar. Passou-se de um material disponível escasso e muitas vezes em más condições, ao ponto de dificultar a identificação do autor e a autenticidade do documento em questão, mas que, ao mesmo tempo, permitia delimitar a pesquisa, para uma tal quantidade de documentos que torna quase impossível ao investigador realizar um trabalho o mais objetivo possível.

Há um dado que une esta impressionante quantidade de material documental proveniente de todas as partes do planeta e que caracteriza as culturas: o facto de que cada ramo do saber atual partilha o prefixo "pós". Poderíamos dizer que estamos na cultura do depois, com uma dupla atenção ao presente e à projeção para o futuro. Por um lado, a obsessão pela imagem, de como aparecemos perante os outros, impulsiona o comportamento no esforço diário de permanecer em sintonia com o que aparece no mercado. Ser considerado atual significa existir. Por outro lado, a insatisfação de viver num presente cheio de uma miríade de ideias e modos de ser, com os quais se torna difícil identificar-se e encontrar um caminho próprio, leva à busca pelo futuro. São inúmeros os projetos, as projeções em mundos distópicos, seja na literatura, seja nas artes, que permitem habitar idealmente outros mundos sem demasiadas preocupações com os dramas do presente.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

AMOR E PROFECIA

 



O vínculo insolúvel que transforma o mundo


Paolo Cugini

Em uma época em que frequentemente nos detemos nas aparências e as relações correm o risco de se tornarem superficiais, aproximar as palavras amor e profecia pode soar quase como um oxímoro. No entanto, essas duas dimensões estão unidas por um vínculo profundo e indissolúvel: apenas quem ama de verdade consegue enxergar além do que é imediatamente visível aos olhos. O amor, na verdade, não se limita a sentimentos passageiros ou emoções efêmeras, mas torna-se uma força capaz de penetrar as trevas e perceber a luz, mesmo quando tudo parece escuro.

Amor e profecia. Parece estranho, mas é uma relação íntima. Só quem ama consegue ver além das aparências. Amar não significa aceitar passivamente aquilo que nos cerca, mas saber perceber os sinais ocultos de esperança e mudança até nos momentos mais difíceis. O amor autêntico nos torna capazes de ouvir o coração da realidade e reconhecer a promessa do amanhecer mesmo na escuridão mais profunda. Apenas quem ama profundamente deseja uma justiça que vá além do próprio interesse. Só quem ama deseja justiça, pois não suporta desigualdades e clama contra todo tipo de abuso. A indiferença é o verdadeiro inimigo da profecia: quem ama não pode virar o rosto diante da injustiça, mas se torna voz de denúncia e braços para construir. Amar também significa não se calar diante do mal, mas tomar posição, arriscar, envolver-se pessoalmente.

Essas são as características do profeta, que nasce de uma profunda experiência de amor, da busca cotidiana pelo rosto do mistério que vislumbra na história. O profeta não é um visionário isolado ou um simples pregador, mas alguém que, através do amor, se coloca à escuta do Mistério que habita a realidade. É a paixão pelo bem e a constante busca de sentido que o impulsionam a ler a história com novos olhos e enxergar possibilidades onde outros veem apenas limites. É o profeta, homem ou mulher do profundo amor pelo Mistério, quem se torna portador de paz, construtor de pontes, trabalhador incansável na formação de alianças. Num tempo marcado por divisões, desconfianças e conflitos, o profeta é quem sabe derrubar muros e lançar pontes entre as pessoas. Sua obra é silenciosa, mas extraordinária: busca a paz, semeia esperança, constrói alianças duradouras porque estão enraizadas na autenticidade do amor.

Num mundo que precisa de profetas, cada um de nós pode escolher amar profundamente, olhar além das aparências e empenhar-se por uma justiça verdadeira e uma paz possível. Assim, a profecia não será apenas palavra, mas vida vivida, testemunho concreto de que outro mundo é possível quando o amor se torna nossa luz guia.

sábado, 11 de outubro de 2025

A contaminação cultural como paradigma: entre o hibridismo e a perda de identidade

 



Paolo Cugini

 

O conceito de contaminação, quando aplicado ao universo da cultura, evoca uma complexidade de interpretações que transcendem a sua conotação pejorativa original. Longe de ser apenas um processo de degradação ou perda, a contaminação cultural pode ser analisada como um paradigma que revela as dinâmicas de poder, resistência e adaptação na era da globalização. Em um mundo cada vez mais interconectado, onde as fronteiras geográficas se tornam mais fluidas, as culturas se misturam, se transformam e, em muitos casos, se hibridizam. No entanto, essa mistura não é sempre pacífica ou igualitária, levantando questões sobre a preservação da identidade cultural e os impactos da influência de culturas dominantes sobre as minoritárias.

A metáfora da contaminação na sociologia e na antropologia cultural pode ser entendida de diferentes maneiras. Em um sentido, ela descreve a forma como elementos culturais externos se infiltram e modificam uma cultura local. O termo contaminação sugere uma intrusão indesejada, similar à poluição ambiental, que pode comprometer a pureza ou a autenticidade de uma tradição cultural. Essa visão pessimista é frequentemente utilizada para descrever o impacto do consumismo ocidental e da cultura de massa sobre sociedades menos industrializadas, resultando na homogeneização de costumes e na perda de saberes ancestrais. Um exemplo claro disso é o declínio de línguas, rituais e técnicas de subsistência de povos indígenas, que são impactados por contaminantes ambientais e por uma cultura de desenvolvimento que ameaça sua identidade.

No entanto, uma visão mais matizada e construtiva interpreta a contaminação cultural como um processo inevitável e, por vezes, enriquecedor. O conceito de hibridismo cultural, popularizado por autores como Néstor García Canclini, argumenta que a mistura de culturas gera novas formas culturais, dinâmicas e criativas. Nesse sentido, a contaminação é menos uma destruição e mais uma transformação. Um exemplo é a música brasileira, que incorpora ritmos africanos e europeus para criar gêneros únicos como o samba e a bossa nova. O hibridismo celebra a capacidade das culturas de se adaptarem, absorverem e ressignificarem influências externas, resultando em uma identidade multifacetada e em constante evolução.

A análise da contaminação cultural como paradigma não pode ignorar a questão do poder. A troca cultural não ocorre em um campo de jogo nivelado. A influência de culturas hegemônicas, frequentemente ligadas a potências econômicas e políticas, pode sobrepujar as manifestações culturais de grupos minoritários, levando a uma assimilação forçada ou à marginalização. O medo da contaminação por parte de culturas mais frágeis é, muitas vezes, o temor da diluição de sua identidade em face de uma cultura dominante. A contaminação, nesse contexto, torna-se uma ferramenta de dominação cultural, onde a cultura do colonizador ou do poder dominante se impõe sobre a do colonizado.

Apesar da assimetria de poder, a contaminação cultural não é um processo unilateral. As culturas minoritárias demonstram notável resiliência e resistência, adaptando elementos culturais externos de maneira criativa e subversiva. O sincretismo religioso é um exemplo clássico, onde crenças e rituais de povos oprimidos se mesclam com os da cultura dominante, mas mantendo um substrato de sua religião original. As comunidades resistem à perda total de suas tradições, encontrando formas de preservar sua herança cultural mesmo sob forte pressão externa.

A contaminação cultural como paradigma oferece uma lente poderosa para entender as complexas interações entre as culturas no mundo contemporâneo. Ela nos força a ir além de uma visão simplista de pureza cultural versus degradação. Ao invés disso, revela um processo dinâmico que navega entre a apropriação criativa, o hibridismo enriquecedor e a dolorosa perda de identidade. A análise desse paradigma exige uma atenção cuidadosa às relações de poder, valorizando tanto a capacidade das culturas de se transformarem quanto a necessidade urgente de proteger a diversidade cultural e as identidades vulneráveis. Em última análise, a contaminação cultural nos lembra que a cultura não é estática, mas um fenômeno vivo, em constante negociação e ressignificação.

 

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

A TEOLOGIA DE BAIXO: UM CAMINHO PARA UMA TEOLOGIA CONTAMINADA

 



Paolo Cugini

 

No panorama contemporâneo da reflexão teológica, cresce a necessidade de uma teologia que saiba ouvir a realidade, uma teologia de baixo capaz de captar a ação do Espírito Santo dentro da história concreta.  Essa perspectiva se apresenta como uma alternativa viva à teologia ocidental de tipo dedutivo, que frequentemente fórmula dogmas a partir de conceitos abstratos, correndo o risco de perder o contato com a experiência das pessoas e com aquilo que o Espírito Santo prepara no cotidiano.  A teologia de baixo nasce da experiência, do encontro com o outro, da escuta das perguntas que emergem das dobras da história e das feridas da humanidade.  Nessa abordagem, a reflexão não parte de princípios universais abstratos, mas da concretude da vida, das histórias de homens e mulheres que buscam sentido e salvação. “A realidade supera a ideia”, diria o Papa Francisco, resgatando a exigência de não se fechar em esquemas estáticos, mas de se deixar interpelar pela história.

Essa abertura à realidade não é apenas método, mas também conteúdo: é aqui que o Espírito Santo age, transforma, prepara novos caminhos.  A teologia de baixo se torna, assim, uma teologia contaminada, ou seja, capaz de se deixar interpelar e modificar pelo contato com a vida real, pelas culturas, pelas mudanças sociais, pelos sofrimentos e pelas esperanças dos povos.  A teologia ocidental, sobretudo em sua forma mais dedutiva, privilegiou frequentemente a formulação de dogmas a partir de conceitos abstratos, por vezes se afastando do contexto histórico e da realidade vivida.  Esse método, que tem suas raízes na filosofia grega e na escolástica medieval, certamente garantiu a coerência e a profundidade do pensamento cristão, mas corre o risco de se tornar autorreferencial. O perigo é o de uma teologia in vitro, que analisa a fé como um objeto de laboratório, sem se deixar contaminar pela vida, e, pior, se defendendo dela.  Dessa forma, a reflexão teológica pode perder sua força profética e seu dinamismo, não conseguindo captar aquilo que o Espírito Santo está preparando na história através das novidades, das crises, dos desafios e das transformações.  Este é, talvez, um dos problemas mais evidentes no debate teológico contemporâneo, no qual é visível a incapacidade da teologia oficial e do Magistério eclesial de dialogar com os temas que a vida cotidiana aponta como urgentes.  Uma teologia que se defende da vida, para proteger seus princípios absolutos, considerados inegociáveis, está destinada a ficar de fora dos jogos da vida real e, a longo prazo, a ser ignorada no debate que busca soluções para os problemas existenciais.

Ao contrário, uma teologia contaminada é uma teologia que aceita o risco do encontro, da encarnação, da mistura.  Não teme sujar as mãos na história, de se confrontar com aquilo que é novo, diferente, imprevisto.  É uma teologia que reconhece que o Espírito Santo age não apenas nos locais institucionais ou nos dogmas consolidados, mas também e, sobretudo, nas periferias, nas perguntas incômodas, nas mudanças sociais, nas lutas por justiça. Essa perspectiva lembra o modelo bíblico, onde Deus se revela na história concreta de um povo, através de acontecimentos muitas vezes marcados pela dor e pela esperança. A teologia de baixo, contaminada pela realidade, torna-se então um lugar de discernimento, de escuta, de criatividade, capaz de gerar novas sínteses e novos caminhos para a fé.  É nos caminhos da história que o teólogo deveria estar, para se colocar em escuta, e elaborar uma teologia com cheiro de terra e água, de vida vivida e não de cheiro de livros e estantes.  Em um mundo em rápida mudança, a teologia não pode se contentar em repetir fórmulas abstratas, mas deve se colocar à escuta da realidade, permitindo-se ser contaminada pela história e pelas perguntas que emergem do cotidiano.  Somente assim poderá realmente captar a ação do Espírito Santo, que continua a preparar novos caminhos para a Igreja e para a humanidade. A teologia de baixo convida a deixar as margens seguras da abstração para navegar no mar aberto da vida, onde o Espírito sopra e renova todas as coisas.

 


terça-feira, 23 de setembro de 2025

O Paganismo Eslavo Contemporâneo: Entre Mitos e Religião Vivida

 



 

Palestrante: Prof. Dr. Giuseppe Maiello (Universidade de Praga)Moderadora e Tradutora: Profa. Dra. Marcia Enéas Costa (UFPB)Síntese: Paolo Cugini

Desde 1054, formam-se dois polos: Oriente e Ocidente. Existe uma fronteira cultural que ao longo dos séculos gerou guerras. Hoje, essa fronteira voltou a ser uma espécie de “cortina de ferro”.

O mundo eslavo é marcado por guerras e divisões: sempre foi assim? As línguas eslavas são próximas entre si. Se houver concentração, é possível comunicar-se com os povos eslavos. A distância linguística entre as línguas eslavas leva à consideração de que, em tempos passados, todos esses povos possuíam uma única cultura. Esses povos não deixaram vestígios antropológicos; chamamo-los de eslavos. Temos poucas fontes históricas. Os eslavos não utilizavam a escrita, tal como os povos indígenas que se valem da oralidade. Para reconstruir as fontes religiosas dos eslavos, baseamo-nos nas fontes dos prelados cristãos ou nos relatos de viajantes muçulmanos que visitavam esses lugares para comprar escravos. A palavra “eslavo” é muito semelhante à palavra “escravo”.

A partir do final do Iluminismo, observa-se um grande interesse pelas culturas eslavas. Os etnógrafos desempenharam um papel importante, especialmente em temas ligados aos costumes sexuais. Os cristãos assimilaram elementos culturais dos eslavos, modificando-os e cristianizando-os. No século XX, surgem os primeiros resultados das pesquisas antropológicas sobre a cultura eslava. O paganismo eslavo foi interpretado pelas leis. Identifica-se o modelo linguístico eslavo com a existência de um povo indo-europeu chamado ariano. Os indo-europeus, os arianos, foram considerados a melhor raça. Em particular, na Alemanha, acreditava-se que os arianos eram loiros e de pele clara, tese impossível de ser comprovada. A Alemanha nazista gastou enormes quantias para “melhorar” a raça ariana. A simbologia nazista utiliza materiais provenientes do período ancestral dos povos eslavos.

Paganismo eslavo contemporâneo. A Rússia é o maior país eslavo. Atualmente, existem 193 minorias étnicas na Rússia. Muitas dessas minorias conseguiram preservar suas culturas, também porque a Rússia permitiu este processo de conservação. A Rússia é um terreno fértil para o renascimento do paganismo, mesmo que esse renascimento tenha raízes em movimentos filosóficos ocidentais. Isso é visível em alguns poetas russos. Pintores e músicos também são testemunhas do paganismo russo. O paganismo eslavo russo contemporâneo possui muitos elementos de pacifismo. Em alguns grupos pagãos, sobretudo polacos, nota-se certa simpatia por símbolos nazistas que estão presentes no paganismo eslavo ancestral. Entre os eslavos orientais, houve uma fratura no mundo neopagão.

Os grupos pagãos contemporâneos discordam dos seus próprios modelos. O nacionalismo tornou-se tão radical que provocou tensões entre os grupos. No paganismo eslavo contemporâneo oriental, há uma tendência à politização em relação aos povos eslavos ocidentais. Existe também a sensibilidade em relação à Terra como sagrada. Os valores religiosos são mais fortes nas faixas etárias mais avançadas da população.

O paganismo eslavo contemporâneo é um fenômeno marginal na sociedade. Religião vivida no paganismo eslavo contemporâneo: existem rituais que seguem o calendário solar, realizados de quatro a cinco vezes por ano. As celebrações populares são mais frequentes. São as comunidades agrárias que enfatizam a mitologia solar. As danças que seguem o movimento da lua remetem a sociedades ainda mais arcaicas.

Perguntas

Nos rituais pascais, há contaminações com referência a mitos pré-cristãos. A igreja, apesar de existirem jogos sexuais que podem incomodar, tolera-os. Há muitas contaminações. O nazismo apropriou-se de símbolos pré-cristãos, mas uma parte não queria confrontar o cristianismo. Buscavam a supremacia da raça.