terça-feira, 5 de agosto de 2025

A liturgia como espaço de contaminação teológica

 




Diálogos entre tradição, cultura e fé no rito

Paolo Cugini

A liturgia, entendida como expressão ritual da fé, sempre representou um dos lugares privilegiados onde a teologia toma forma, se transforma e se confronta com as múltiplas dimensões da experiência humana. Nessa perspectiva, a liturgia não é um conjunto estático de gestos e palavras, mas um espaço vivo de contaminação teológica: um cruzamento onde diferentes tradições, sensibilidades e reflexões se encontram, dialogam e frequentemente se fundem, gerando novas formas de expressão do sagrado e novas interpretações da fé. Isso, pelo menos, é o que deveria acontecer, ou seja, a possibilidade de participar de liturgias que sejam um espaço autêntico de encontros de caminhos diversos e, sobretudo, a possibilidade de expressar o Mistério em uma linguagem que entre em sintonia com quem participa.

Ao longo da história, a liturgia sempre refletiu uma multiplicidade de tradições teológicas. Já nos primeiros séculos do cristianismo, as maneiras de celebrar a Eucaristia, o Batismo ou as Horas litúrgicas diferiam sensivelmente entre as diversas comunidades locais, de acordo com as influências culturais, linguísticas e teológicas do contexto. Essa pluralidade nunca esteve isenta de tensões: as lutas entre as diferentes escolas teológicas, os debates doutrinários e as necessidades pastorais atravessaram constantemente o espaço litúrgico, gerando contaminações fecundas mas também conflitos e cismas. A própria história da Igreja — basta pensar no contraste entre oriente e ocidente, entre rito romano e ritos orientais, entre protestantismo e catolicismo — pode ser lida como uma contínua dialética de contaminações e separações, frequentemente evidentes justamente na liturgia.

Falar de “contaminação” na esfera litúrgica e teológica não significa necessariamente pensar em corrupção ou perda de pureza. Ao contrário, a contaminação pode ser entendida como uma dinâmica positiva, capaz de gerar vitalidade, abertura e criatividade dentro da comunidade cristã. Ao longo dos séculos, a liturgia soube acolher e integrar elementos provenientes de culturas, povos e tradições mesmo muito diferentes entre si. As melodias gregorianas dialogaram com as escalas orientais, os textos litúrgicos se enriqueceram com simbolismos e mitos locais, as arquiteturas dos lugares de culto incorporaram estilos diferentes, dando origem a uma polifonia que reflete a riqueza e a complexidade da fé vivida.

Um dos conceitos-chave para compreender a liturgia como espaço de contaminação teológica é o da inculturação. A liturgia, longe de ser um monólito dogmático, é frequentemente o resultado de um processo sincrético no qual elementos pré-cristãos, práticas populares e novas sensibilidades espirituais encontram lugar ao lado dos ritos institucionais. As reformas litúrgicas, como a promovida pelo Concílio Vaticano II, representaram momentos cruciais de abertura e diálogo: a tradução dos textos para as línguas locais, a inserção de músicas e simbolismos típicos das diferentes culturas, e a participação mais ativa dos fiéis favoreceram uma contaminação capaz de renovar e tornar mais autêntica a celebração.

Se a teologia é reflexão sobre a fé vivida, a liturgia representa o laboratório onde essa reflexão encontra sua verificação e expressão concreta. Aqui, experimentam-se novas formas de oração, redefinem-se os símbolos, resignificam-se os gestos tradicionais. A contaminação teológica torna-se assim o motor de um processo criativo que renova a compreensão do mistério cristão e o torna acessível às gerações seguintes. Um exemplo emblemático são as liturgias ecumênicas, nas quais cristãos de diferentes confissões se reúnem para celebrar juntos, integrando elementos de suas respectivas tradições em um rito comum. Nesses contextos, a contaminação não é apenas tolerada, mas buscada, na consciência de que a diversidade enriquece a comunhão e abre novos caminhos para a busca teológica.

No mundo atual, caracterizado por uma crescente mobilidade e mistura de povos e culturas, a liturgia é chamada a se confrontar com a interculturalidade. As comunidades cristãs frequentemente precisam integrar pessoas de origens, línguas e sensibilidades muito diferentes, perguntando-se como celebrar uma fé comum sem apagar as identidades particulares. Nesse sentido, a liturgia torna-se um espaço privilegiado de contaminação teológica, onde se experimentam novas sínteses entre universalidade e particularidade, entre tradição e inovação. Os cantos, os símbolos, os gestos e até a disposição dos espaços celebrativos podem ser repensados à luz das novas exigências pastorais, abrindo caminho para uma teologia mais inclusiva e dialógica.

Naturalmente, a contaminação teológica no âmbito litúrgico não está isenta de riscos. O perigo de uma banalização do sagrado, de um sincretismo superficial ou de uma perda de coerência teológica está sempre presente. Cabe à comunidade, aos pastores e aos teólogos discernir, em cada caso, quais elementos podem ser integrados sem trair o núcleo essencial da fé cristã. O diálogo entre as diferentes tradições deve ser orientado pelo respeito mútuo, pelo conhecimento profundo das próprias raízes e pela capacidade de reconhecer o valor da alteridade sem temer a erosão da própria identidade.

A liturgia, entendida como espaço de contaminação teológica, configura-se como um laboratório vivo onde a fé se encarna na história, se abre ao encontro e se renova. Ela é o lugar onde a teologia deixa de ser mera especulação abstrata para tornar-se gesto, palavra, canto, relação. Em um tempo em que as identidades parecem se fechar em si mesmas, a liturgia convida à contaminação, ao diálogo, à acolhida do outro. Nesse movimento, a Igreja pode redescobrir a profundidade do próprio mistério e a riqueza inesgotável do Evangelho, sempre capaz de gerar novas formas de beleza, de comunhão e de sentido.

A liturgia como encontro: um espaço onde a teologia encontra a vida concreta das pessoas e das culturas.

A contaminação como recurso: um processo dinâmico que enriquece a fé e abre novos caminhos ao diálogo entre tradição e inovação.

A responsabilidade comunitária: O discernimento necessário para integrar sem perder o essencial.

Assim, na infinita trama da liturgia, cada contaminação é ocasião de crescimento, de escuta e de redescoberta da presença viva do mistério cristão no coração da humanidade.

 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

A necessidade de uma teologia de baixo

 



 

Reflexões sobre uma fé encarnada na história dos povos

 

Paulo Cugini

No amplo panorama do pensamento teológico contemporâneo, cresce a consciência de que a teologia não pode mais ser construída apenas "de cima", como uma reflexão abstrata e distante das necessidades concretas das pessoas. O apelo por uma "teologia de baixo" surge da experiência de comunidades, periferias e histórias vividas, frequentemente marcadas pela marginalização, exclusão e sofrimento, mas também pela esperança e resistência. Essa demanda não é simplesmente uma moda passageira no âmbito acadêmico ou pastoral, mas decorre de um profundo movimento na história da fé, do cristianismo e das religiões, em direção a uma reinterpretação da experiência de Deus a partir da vida real de crentes e buscadores.

A teologia "de baixo" contrasta com uma teologia "de cima", que frequentemente se concentra em sistemas doutrinários e dogmáticos produzidos por elites religiosas e escolares, às vezes distantes da dinâmica cotidiana das pessoas. "De baixo" refere-se a um movimento que parte do povo, da experiência concreta e da leitura da Palavra em diálogo com a realidade social, cultural, política e econômica em que vive.

Esta teologia se nutre das histórias, lutas, sonhos e feridas das pessoas, especialmente daquelas à margem: os pobres, os excluídos, as vítimas de injustiça, as pessoas LGBTQIA+ e as mulheres. Ela também leva em consideração aqueles que a sociedade declara serem minorias, como os povos indígenas, diversas etnias vítimas de extermínio, mas também os moradores de rua, os nômades e os ciganos. Há um mundo inteiro vivendo sob a superfície da história, sistematicamente excluído não apenas pela sociedade que se narra a partir de seu centro, mas também pela Igreja, pelas comunidades cristãs que são vítimas de uma narrativa teológica. Não se trata de substituir uma visão por outra, mas de integrar a perspectiva da vida vivida à reflexão sobre Deus, a Igreja e o sentido último da existência.

A própria tradição bíblica mostra como Deus frequentemente se revela àqueles que se encontram nas situações mais difíceis: Abraão chamou do deserto, Moisés libertou um povo escravo, os profetas deram voz aos que não tinham voz. O Evangelho de Jesus é profundamente marcado por encontros com mulheres e homens excluídos, doentes, pobres e estrangeiros. A cruz de Cristo é a expressão suprema de um Deus que se une à humanidade ferida.

Ao longo da história da Igreja, a tensão entre uma teologia "oficial" e uma fé popular, vivida na concretude da vida cotidiana, sempre esteve presente. Basta pensar nas devoções populares, nos movimentos de reforma e nas lutas por justiça social.

Nas últimas décadas, experiências como a teologia da libertação na América Latina deixaram claro como a reflexão sobre Deus deve partir da experiência concreta dos pobres e oprimidos. Da mesma forma, teologias feministas, queer, indígenas e pós-coloniais nos lembram que existem muitas vozes, muitas vezes silenciadas, que têm algo a dizer sobre o mistério de Deus.

Vivemos em uma era marcada por múltiplas crises: social, econômica e ambiental, além de uma profunda crise de sentido. Em muitas partes do mundo, as instituições religiosas parecem distantes das reais necessidades das comunidades. Nesse cenário, uma teologia de baixo torna-se não apenas oportuna, mas urgente. Ela permite uma credibilidade renovada da mensagem cristã, pois coloca a pessoa — com sua história, sofrimento e esperanças — no centro das atenções. Ao ouvir verdadeiramente as questões, preocupações e expectativas que emergem da vida real, a reflexão teológica se torna mais humana, mais acessível e mais profética. Uma teologia de baixo também oferece um espaço para o reconhecimento das experiências daqueles que, por razões de origem, classe social, etnia, orientação sexual ou condição econômica, foram historicamente excluídos dos processos decisórios e da própria produção teológica.

Experiências de teologia popular já produziram resultados extraordinários: maior atenção à inclusão, uma releitura renovada das Escrituras, diálogo inter-religioso e intercultural e um compromisso com a justiça social e a paz. Desenvolveram-se práticas pastorais mais atentas à participação de todos, valorizando a riqueza das experiências diversas. Essa perspectiva não abandona a busca da verdade teológica, mas a enraíza na experiência da comunidade, na partilha, no serviço concreto, na escuta mútua. Dessa forma, a teologia deixa de ser apenas palavras, tornando-se gesto, ação e escolha cotidiana.

Embora a teologia popular abra novos horizontes, ela também apresenta desafios. O primeiro é evitar a fragmentação: ouvir múltiplas vozes é enriquecedor, mas também exige um trabalho de síntese e discernimento. Além disso, devemos ter cuidado para não contrastar radicalmente "alto" e "baixo", mas sim promover um diálogo frutífero entre a reflexão acadêmica e a vida cotidiana. Outro desafio é o risco do relativismo: colocar a experiência no centro pode levar à dispersão de significado. Mas uma teologia popular fundamentada nas Escrituras, na tradição viva e no discernimento comunitário pode manter sua própria direção.

Olhando para o futuro, a teologia popular é chamada a ser cada vez mais dialógica, pluralista e atenta aos sinais dos tempos. É uma teologia que escuta o clamor da terra e dos pobres, como nos lembrou o Papa Francisco. É capaz de abordar as questões das novas gerações, das minorias, dos migrantes, dos povos indígenas, das mulheres e das pessoas LGBTQIA+. Será cada vez mais importante formar comunidades capazes de discernimento e escuta, onde a reflexão sobre Deus surja da discussão e da experiência compartilhada, não apenas da autoridade ou da doutrina. A teologia popular não é uma moda passageira, nem é simplesmente uma opção entre muitas: é a resposta a uma profunda necessidade em nossas comunidades e sociedades. É um caminho para restaurar o sentido e a força da mensagem cristã, para construir Igrejas e sociedades mais justas, abertas e acolhedoras. Somente ouvindo aqueles que caminham à margem da história a teologia pode se tornar verdadeiramente uma palavra viva, capaz de mudar o mundo.

 

segunda-feira, 7 de julho de 2025

CRISE DAS VOCAÇÕES SACERDOTAIS E CRISE DA PARÓQUIA NO MUNDO OCIDENTAL

 




 

Paolo Cugini

É o jogo do gato correndo atrás do rabo ou a grande questão de quem veio primeiro, o ovo ou a galinha. É visível que o tema da crise das vocações sacerdotais está intimamente ligado ao da crise da paróquia. Um jovem que pretende entrar no seminário é convidado a renunciar a se apaixonar por uma mulher, a constituir família, a ter filhos, ou seja, as coisas mais normais da vida e para as quais estamos estruturados, a fazer o quê? É a resposta a essa pergunta que pode oferecer indicações importantes sobre a problemática atual do caminho eclesial, especialmente no Ocidente.

Há um fato, ao mesmo tempo, constrangedor e perturbador, que diz respeito ao modelo eclesial da paróquia: a paróquia não consegue mais influenciar o que é específico da fé cristã, exceto de forma muito parcial. Os maiores de 60 anos ainda presentes na paróquia estão lá, quase exclusivamente, para as missas e os ritos especificamente religiosos. Eles aprenderam que a salvação depende da participação na missa dominical. Fazem isso com zelo, e é exatamente isso que exigem dos padres. Se um padre tentasse explicar-lhes que, na realidade, quando Jesus disse, no contexto da Última Ceia: "Fazei isto em memória de mim", não se referia exclusivamente a celebrar um rito, mas a imitar seu estilo de vida, seria espancado. Acostumados a participar de ritos durante toda a vida, não se pode exigir uma mudança de perspectiva: eles entrariam em crise.

Entre aqueles que tem menos de 60 anos no Ocidente, assistimos a um vazio preocupante. Os pais que comparecem às paróquias não o fazem para uma jornada pessoal de fé, mas quase exclusivamente por algo que desejam para seus filhos: os sacramentos e o serviço de assistência nos fins de semana e nos meses de verão. Os sacramentos para as crianças são solicitados não por motivos religiosos, mas por motivos sociais. Há, por trás do pedido, um senso de justiça e igualdade. Na Itália, em quase todas as áreas, as crianças são batizadas e depois recebem os sacramentos; não fazê-lo colocaria seu filho em uma situação de minoria, o que poderia se tornar problemático. Os poucos jovens padres que permanecem dedicam-se principalmente à organização de momentos de entretenimento. É bom aquele padre que sabe organizar tantos momentos de diversão para as crianças da paróquia. É bom aquele padre que, durante o verão, passa três meses correndo por todos os lugares para levar crianças, meninos e jovens a tantas experiências, especialmente recreativas. No meio tempo, ele também reza um pouco, mas sem exagerar muito. Um bom padre é aquele que passa os dias no oratório brincando com as crianças, organizando atividades extracurriculares, festas de aniversário para as crianças e seus amigos. Um padre que ousa organizar momentos de espiritualidade, como retiros espirituais, lectio divine, e não se adapta ao sistema, é considerado um péssimo padre. As mesmas crianças que se reúnem nas paróquias, em sua maioria, recusam categoricamente uma proposta especificamente religiosa e espiritual. Se um padre pensasse, em um dia de semana durante o período escolar, em organizar algumas reuniões nas quais o Evangelho, Jesus e sua proposta fossem discutidos, seria insultado ou ridicularizado.  

Neste ponto, pergunto-me: o senhor está nos fazendo abrir mão do amor de uma mulher, da possibilidade de ter filhos, ou seja, da possibilidade de uma vida normal e saudável, por isso? Para entreter os seus filhos? O senhor não poderia procurar estruturas associativas adequadas para esses fins educacionais? É verdade que as paróquias fazem de tudo para reduzir custos e atender às famílias, mesmo as mais necessitadas, mas pergunto: há necessidade de padres para isso? Não é óbvio que os seminários no Ocidente estão se esvaziando drasticamente justamente por esse motivo, ou seja, porque não há mais uma demanda religiosa, espiritual? O senhor está percebendo que aos domingos as igrejas estão vazias?

Talvez devêssemos mudar de direção. É exatamente essa mudança que tento propor no meu novo livro: O Nome de Deus Não É Mais Deus.

 

segunda-feira, 12 de maio de 2025

A Europa entre crise institucional e econômica nos anos '30 do seculo XX: O advento dos fascismos



Paolo Cugini

 

A crise do sistema democrático foi sem dúvida o sinal mais claro que o "Declínio do Ocidente" estava se realizando. De fato, em poucos anos as jovens democracias que se tinham formado depois da Primeira Guerra Mundial, foram progressivamente derrotadas pelos regimes de tipo autoritário. Foi o caso da Polônia do Marechal Pilsodsky, da Turquia de Mustafá Kemal, da Grécia do General Metaxas, da Iugoslávia do Rei Alessandro I, da Ditadura Comunista de Bela Kun na Hungria, da Áustria do Monsenhor Seipel e do Chanceler Dollfus.

Não fugiram à mesma experiência autoritária a Espanha com a Ditadura Militar de Primo de Rivera e do Rei Alfonso XIII e o Portugal de Salazar.

Os países da Europa Setentrional e Ocidental, quer dizer as monarquias escandinavas, países baixos, Bélgica, Inglaterra, França também, se em seguida "fugiram ao contágio das ditaduras não foram, porém, prevenidos totalmente contra os seus germes. A tentação os assaltou" .

Tal tentação foi testemunhada pela crescente formação de grupos e movimentos políticos que se inspiravam nos modelos do fascismo e do comunismo, que tentaram em várias circunstâncias derrubar as democracias. A França foi sem dúvida o lugar geopolítico onde esta tensão entre forças institucionais não foi maiormente vivida. É só lembrar a movimentada experiência da Action Française de Maurras que acabou em 1926 com a condenação Pontifícia e, do outro lado, a crescente influência do partido comunista francês que teve o maior respaldo na experiência do Fronte Popular em 1936.

Se nestes Estados "se constatava a incapacidade dos regimes democráticos de enfrentar o problema da governabilidade, na forma nova que derivava da situação política e social pós-bélica", do outro lado algumas nações iam experimentando alguns modelos políticos e institucionais. A ruptura dos equilíbrios políticos provocados pela Primeira Guerra Mundial limpou o campo da entrada política do fascismo de Mussolini na Itália. A marcha em Roma em outubro de 1923, forçou o Rei Vittorio Emanuele III a entregar para Mussolini o cargo para a formação do governo e a declarar assim o começo da Ditadura Fascista. No mesmo período, na Alemanha atormentada por causa de problemas internos devidos à queda da moeda, e dos problemas de política externa provocados da ocupação da rica zona industrial da Ruhr da parte da França de Poincaré, , Hitler encontrou espaço em novembro de 1923 para tentar, sem sucesso, um Golpe de Estado (Putsch da cervejaria).

Rica de tensões internas era também a situação da União Soviética. O partido Bolchevico, promotor da Revolução de outubro de 1917, se tornou progressivamente o centro e o ponto referencial do Novo Estado. A identificação Partido-Estado se fez sempre mais estreita e assumiu formas novas com a entrada de Stalin no poder em 1926. O objetivo de "construção do socialismo em um só país", amadurecido depois do falimento do internacionalismo proletário, que se fazia porta voz de uma Revolução Socialista mundial, conduziu o Partido Comunista a dirigir todos os esforços para fazer da União Soviética uma nação economicamente auto-suficiente e competitiva. O choque do partido com as massas camponesas, especialmente com os Kulaki, incapazes de entrar nos rígidos esquemas dos planos qüinqüenais, foi imediato e violento. Precisaram muitos esforços, pagos, sobretudo pela população, para que os vários planos econômicos pudessem alcançar os níveis desejados.

Fascismo e Comunismo se tornaram modelo institucional sempre mais atraente, sobretudo, pelo jeito enérgico e forte que, por causa de uma situação de confusão geral, era acolhido por uma massa sempre mais desnorteada e necessitada de pontos referenciais.

O 24 de novembro de 1929, que passou a história como "a 5ª feira preta" a Bolsa de New York não conseguiu vender 70 milhões de ações, provocando a perda de 18 bilhões de dólares. Foi o começo de uma crise que, em pouco tempo, botou de joelho a América e, em poucos anos, arrasou as economias mais fortes do continente europeu, ou seja, da Alemanha, da Inglaterra e da França. As nações golpeadas pela crise econômica tiveram que enfrentar problemas ligados ao desemprego, ao aumento da inflação, derrotadas de bancos, fechamento de indústrias. Os governos, tomados de surpresa, não conseguiam a encontrar medidas capazes de enfrentar, de imediato, uma situação tão catastrófica. Em poucos anos, o equilíbrio econômico internacional estava totalmente desmantelado. Sentimentos de medo e desconfiança perpassaram todos os setores do mundo político e social. O sistema democrático, que já tinha entrado em crise nos anos ’20, no começo dos anos ’30 recebeu um golpe duríssimo: "Para todos a democracia Parlamentar — como tinha observado Loubet de Bayle — tinha se tornado sinônimo de mentira, fraqueza, mediocridade, baixaria".

Diante do avanço das forças autoritárias e totalitárias, as velhas democracias de Inglaterra e França, não souberam reagir com estratégias políticas adequadas. Ambas, de fato, com razões diferentes, se fizeram promotoras de políticas protecionistas renunciando a intervenções enérgicas contra os sonhos expansionísticos da Alemanha, com medo de desencadear uma Segunda Guerra Mundial. Na Inglaterra tal política encontrava um vasto consentimento, também porque assegurava uma boa capacidade da economia. Pela França, a situação era mais complexa. Encontrava-se entre fogos contrastantes de forças políticas opostas. O mal-estar social devido à estagnação econômica que marcou um declínio da produção de 20% entre 1930 e 1938 manifestou-se no primeiro momento, através dos movimentos de direita e, entre eles, a Action Française e a Croix de Feu. O cume se teve com a manifestação antiparlamentar, que as direitas organizaram no dia 06 de fevereiro 1934 em Paris, mas que fracassou por causa da falta de apoio da opinião pública. Neste clima de desordem política, nasceu a união das esquerdas que se concretizou na experiência do Fronte Popular do 1936. O breve governo do socialista Léon Blum, que promoveu importantes inovações no campo social, foi dilacerado por causa de lutas internas entre comunistas e socialistas. A crise das grandes democracias preparava lentamente o terreno para a Segunda Guerra Mundial.


A IGREJA POBRE E DOS POBRES NO DEBATE DO CONCILIO VATICANO II

 



Paolo Cugini

Um elemento surgido no Concílio Vaticano II que contribuiu para contaminar toda a Igreja foi o debate sobre a Igreja pobre e dos pobres. É verdade que pouco deste debate foi incluído nos documentos do Concílio. A verdade, porém, é que as reflexões propostas e debatidas no Concílio deixaram uma marca profunda em muitos bispos, a ponto de contaminar as suas escolhas futuras nas dioceses a que pertencem. Para uma análise aprofundada do debate conciliar sobre o tema em questão, acompanhe o trabalho de Matteo Mennini (2016). A sua obra visa reconstruir um debate que marcou profundamente o Concílio Vaticano II e que ajuda a compreender melhor o significado do pontificado atual do Papa Francisco. Os dois pontos de referência desta investigação histórica são a atividade do grupo do Colégio Belga e o papel do seu principal animador, nomeadamente o padre francês Paul Gauthier[1]. A pesquisa busca contextualizar o debate eclesial no contexto dos acontecimentos para não correr o risco de reduzi-lo a uma simples disputa teológica interna. O trabalho está estruturado em três partes. No primeiro, Mennini (2016) reconstrói a gênese do tema em questão, apresentando também os principais protagonistas do debate conciliar sobre a Igreja dos pobres. O primeiro deles é o Papa João XXIII que, na famosa mensagem radiofónica transmitida para anunciar a abertura do Concílio Vaticano II, anunciou que: “Diante dos países subdesenvolvidos a Igreja apresenta-se como é e quer ser, como a Igreja de todos, e particularmente da Igreja dos pobres” (Mennini, 2016, p. 43). Linguagem simples e clara, que expressava o desejo de abrir um diálogo com o mundo sobre as questões candentes da atualidade e, entre elas, a desigualdade social. Além disso, o início da década de ‘60 do século passado, ainda estava muito próximo do fim da Segunda Guerra Mundial e as nações estavam envolvidas na reflexão sobre o tipo de progresso económico a propor. “Afirmou-se uma perspectiva dinâmica que, a partir da Segunda Guerra Mundial e do paralelo ao processo de descolonização, substituiu a definição de atraso pela de subdesenvolvimento” (Mennini, 2016, p. 56).

O Papa João XXIII com as suas intervenções mostra que o Concílio Vaticano II não pretendia apenas parar para esclarecimentos no interior da Igreja, mas quis oferecer a sua contribuição para abordar os grandes temas do mundo contemporâneo. Uma figura importante no debate sobre a Igreja dos pobres, à qual Mennini (2016) dedica muito espaço ao longo da pesquisa, é o padre francês Paul Gauthier. Próximo das experiências dos irmãozinhos de Charles de Foucauld e atento à experiência dos padres operários, já presentes na França desde a década de 1930, Gauthier distribuiu durante as primeiras semanas do Concílio um dossiê intitulado: “Jesus, a Igreja e os pobres”, que oferecerá aos bispos e teólogos a oportunidade de aprofundar a sua reflexão sobre a relação entre a Igreja e os pobres. O dossiê surgiu da percepção de que a igreja, tendo perdido contato com a classe trabalhadora, havia perdido contato com os pobres. Daí a questão central: a separação entre a Igreja e as massas trabalhadoras foi um sintoma da ruptura mais profunda entre a Igreja e Cristo? Gauthier colocou o dedo na ferida da percepção que o mundo tinha de uma Igreja distante das massas trabalhadoras:

Gauthier conectou a ideia de que Cristo havia entrado no mundo dos trabalhadores e dos pobres diretamente à doutrina da Mystici Corporis[2] , no qual se afirmava que o que veio da plenitude divina de Cristo flui para a Igreja para que ela se pareça tanto quanto possível com Ele (Mennini, 2016, p. 63).

No dossiê Gauthier recordou a Igreja à sua vocação original de anunciar o Evangelho aos pobres e, para realizar este projeto, era necessário viver entre eles. O padre francês se tornaria o líder de um grupo de bispos reunidos em outubro de 1962 pelos bispos Himmer e Hakim, para começar a refletir sobre as questões candentes do dossiê de Gauthier (1965). O encontro produziu diversas conclusões e propostas, entre as quais a de eliminar os obstáculos que impediam a Igreja de mostrar ao mundo do trabalho a sua verdadeira natureza e missão. A percepção partilhada pelo grupo é que os pobres não conseguem aceitar as mensagens da Igreja porque ficam escandalizados com os sinais externos e o nível de vida dos seus membros. Dois membros do grupo, os Bispos Mercier e Hélder Camara, propuseram recorrer ao Papa para que o Concílio tratasse explicitamente da pobreza da Igreja. Mennini (2016) mostra o esforço do grupo de trabalho para desenvolver um texto que mostrasse a relação intrínseca entre a atenção aos pobres, a igreja pobre e a liturgia. Segundo o grupo, existe uma pompa litúrgica que ofende os pobres. A Igreja dos pobres deve, portanto, ser visível tanto no estilo de vida dos ministros como nas celebrações litúrgicas. “Não existe o perigo de que a suntuosidade dos móveis e das vestes litúrgicas possa constituir motivo de escândalo para quem assiste às cerimónias?” (Mennini, 2016, p. 74).

São observações deste tipo, expressas na sala do Conselho pelos representantes do colégio belga, que animaram os debates do Concilio. Foi expressa cada vez mais uma profunda preocupação por uma compreensão renovada da pobreza da Igreja como condição para a sua credibilidade no mundo e que a pobreza da Igreja não poderia ser simplesmente um tema entre outros. Segundo Mennini (2016), foi precisamente esta forte presença do Colégio Belga no Concílio que provocou o debate da Igreja pobre e dos pobres, mesmo fora das câmaras do Vaticano. Na verdade, o autor cita cartas pastorais de muitos bispos e revistas católicas que falam ampla e profundamente sobre o tema em questão. Entretanto, Paul Gauthier, verdadeiro líder do grupo de trabalho constituído sobre o tema da pobreza da Igreja, lançou em 1963 um novo livro no qual perguntava por que era tão difícil falar da Igreja dos pobres. Gauthier estava consciente de que o problema da Igreja dos pobres punha em causa a estrutura eclesiológica tradicional. “Para um cristão – sublinha o autor – Cristo está tão presente nos pobres como na Eucaristia e na hierarquia. Admitir isto significou muito mais do que uma orientação pastoral, não foi a atualização de uma prática, mas do próprio conteúdo da fé (Mennini, 2016, p. 101).

Tornou-se assim cada vez mais claro que o movimento desencadeado pelas reuniões do Colégio Belga e, sobretudo, pela ação de Paul Gauthier, ultrapassou o âmbito do próprio Concílio e influenciou o debate pastoral de muitas dioceses. Os encontros no Colégio Belga deram início à promoção de uma experiência concreta e visível da pobreza na Igreja e da evangelização dos pobres. O próprio Gauthier iniciou uma reflexão sobre a pobreza numa perspectiva ecumênica e a relação da Igreja com o comunismo, que o grupo de trabalho olhou com grande preocupação pastoral. Durante a segunda sessão do Concilio, os membros do grupo do Colégio Belga reuniram-se para analisar o trabalho realizado. Monsenhor Himmer afirmou que, ao lado de aspectos positivos, incluindo a difusão da sensibilidade em relação ao tema da Igreja pobre e dos pobres entre os fiéis leigos, havia, no entanto, algumas dúvidas. Himmer argumentou que as próprias categorias nas quais ele vinha trabalhando há algum tempo não eram claras.

O que significa Igreja dos Pobres? Como foi entendida a presença de Cristo nos pobres? Qual é a relação entre uma Igreja que quer viver na pobreza, a evangelização dos pobres e as formas de ajuda paternalista? (Mennini, 2016, p. 130).

O debate sobre a Igreja dos pobres torna-se cada vez mais tenso com o passar do tempo, até porque nem todos conseguem acompanhar a impetuosidade e as contínuas provocações de Paul Gauthier. Alguns exegetas e teólogos e, entre eles, o teologo De Lubac (2017), depois de terem analisado os projetos de documentos produzidos pelo grupo, para serem discutidos nas sessões conciliares, consideraram aqueles textos demasiado ideológicos e não isentos de erros graves.

Na terceira e última parte do livro Mennini (2016) aborda o tema da relação da Igreja com a modernidade. Encontramo-nos num ponto de viragem no Concilio. A morte do Papa João XXIII e a eleição de Paulo VI criaram muitas tensões tanto no mundo eclesial como civil. A grande questão que muitos se colocavam era perceber se o novo Papa tinha continuado no estilo do Papa João. Desde os primeiros movimentos, como afirma Mennini (2016) e, sobretudo, a primeira encíclica de Paulo VI, a Ecclesiam suam, dissipou todas as dúvidas. A encíclica, de fato, estabeleceu como ponto de partida a atitude daquele diálogo que tinha sido característico do estilo do Papa João. Um dos pontos mais quentes desta nova etapa conciliar, a partir do tema que o livro trata, segundo o autor, gira em torno do novo livro de Paul Gauthier: Le Concile et l' Eglise des Pauvres (1965). Segundo Mennini (2016), o texto de Gauthier, enviado em forma de manuscrito a Himmer e a vários bispos, para recolher as primeiras opiniões, encontrou muita resistência. O problema do estilo, da forma correta de utilizar e propor as teses mais significativas da Igreja dos pobres, desenvolvidas pelo grupo, começa cada vez mais a surgir. Mercier esperava que as aquisições teológicas do grupo do Colégio Belga fossem retrabalhadas por Congar e Mollat, a fim de estimular novas pesquisas, e assim garantir maiores garantias sobre o referencial teórico a ser apresentado na comissão conciliar.

Foram estudadas diversas estratégias sobre como apresentar o problema da Igreja dos pobres no debate conciliar. Por um lado, há quem defendia que é necessário antes de tudo falar diretamente com Paulo VI e, por outro, quem não considerava que tal abordagem fosse necessária. Neste contexto, o autor destaca a ação do então bispo de Bolonha Lercaro, coadjuvado por Giuseppe Dossetti. À medida que avançamos na reflexão percebemos cada vez mais que:

não bastava afirmar a necessidade do espírito de pobreza dos indivíduos, mas era preciso condenar o das instituições e, ainda mais, as formas modernas de usura, superar as formas de caridades de esmola para desenvolver estruturas de cooperação em favor da autonomia dos pobres (Mennini, 2016, p. 176).

Neste ponto, o debate se amplia para a busca das causas da pobreza. O Bispo Zoungrana do Alto Volta, falou em nome de 70 bispos africanos, argumentando que, o atraso no desenvolvimento, especialmente em África, se deveu a vários fatores. Antes de mais nada, foi necessário considerar a questão demográfica, o uso da terra, combinada com a limitada possibilidade de investimentos e a consequente falta de competitividade comercial dos países pobres. O debate na Câmara do Concilio continuou sobre o tema da questão dos trabalhadores e do comunismo. Pela narrativa relatada por Mennini, podemos perceber a grande importância que tiveram as intervenções de Woytila, que fez questão de apresentar e argumentar os perigos do marxismo e, ao mesmo tempo, apresentar a Igreja como única alternativa a ele. A partir deste momento, as intervenções no debate conciliar centraram-se no tema do ateísmo dos pobres e dos trabalhadores influenciados pelo comunismo. Também neste caso, foram esclarecedoras as reflexões propostas por Paul Gauthier: “O ateísmo dos pobres, diferente do dos ricos, esconde uma oração, silenciada pela propaganda que abusou da ignorância das massas, pela miséria que causou um sentimento de abandono e injustiça (Mennini, 2016, p. 205).

Segundo Gauthier (1965), a condenação do comunismo pela Igreja teria distanciado ainda mais os trabalhadores e, portanto, os pobres, da Igreja. Muitos dos pedidos propostos tanto por Gauthier como pelo grupo reunido no Colégio Belga, não foram aprovados ou foram aprovados de forma muito obscura. Foi por esta razão e com esta consciência que um grupo de cerca de sessenta bispos conciliares reuniu-se no dia 16 de novembro de 1965, cerca de vinte dias antes o encerramento do Concílio, para celebrar uma missa durante a qual assinaram um pacto, que ficou na história como o pacto das catacumbas. Neste texto, os bispos presentes no evento, declararam a sua disponibilidade para viver com sobriedade no que diz respeito à alimentação, à habitação e aos meios de transporte “de uma forma coerente com a vida quotidiana do nosso povo” (Mennini, 2016, p. 221). Declararam também, que não queriam possuir nada, confiando a gestão financeira a leigos. O compromisso estendeu-se também ao envolvimento dos irmãos e da sociedade civil neste estilo de sobriedade evangélica.



[1] Paul Gauthier (1914-2002) foi um padre e teólogo francês, considerado um dos precursores da Teologia da Libertação. Tem trabalhado principalmente no Médio Oriente e na América Latina em nome das pessoas mais pobres. Juntamente com Ettore Masina fundou a Rete Radie Resh pela solidariedade internacional.

[2] A Mystici Corporis Christi é a quarta encíclica de Pio XII, publicada no dia 29 junho 1943.


sexta-feira, 9 de maio de 2025

A EMOÇÃO DE UM HOMEM SOZINHO, GUIA ESPIRITUAL DO MUNDO

 


Gosto de ver o novo Papa assim: montado num burro. Assim como Jesus entrando em Jerusalém. É uma fotografia que diz muito mais sobre o novo Papa do que seu currículo acadêmico ou as tarefas que assumiu na Igreja. Há muita simplicidade transparecendo nessa imagem e todos nós precisamos desesperadamente dela.

Sua emoção era visível quando ele apareceu diante do povo. Estava claro que ele estava lutando para conter sua emoção. Há muita humanidade nesses pequenos detalhes, e é disso que o povo de Deus precisa: humanidade. Uma pessoa que se emociona significa que ela deixa espaço para os sentimentos, que em decisões importantes ela não se referirá apenas a conexões racionais de causa e efeito, mas haverá espaço para o que vem do coração e, neste momento particular da história, isso não é pouca coisa.

O novo Papa precisará muito dessa sua humanidade, para acompanhar um mundo devastado pelo ódio e pelas guerras, pelo desprezo das massas de pobres pelo pequeno grupo de ricos. Não serão suas qualificações acadêmicas que farão a diferença como guia espiritual neste mundo conturbado, mas sua paciência, sua gentileza, sua capacidade empática, seu desejo de tecer um diálogo com todos. O fato de ele falar de pontes a serem construídas é um bom indicativo de como ele pretende acompanhar a Igreja na dinâmica de um mundo conflituoso, que constrói muros, rejeita quem busca uma vida melhor e despreza os pobres. A igreja que constrói pontes: parece-me uma bela imagem que diz muitas coisas, cheia de esperança.

Houve um momento, nos minutos em que o novo Papa foi anunciado ao mundo, em que surgiu um forte contraste. De um lado, os gritos selvagens, quase como de estádio, dos fãs ferozes na Praça de São Pedro; de outro, o rosto contraído de um homem emocionado que, olhando para aquelas pessoas calorosas, sente todo o peso da responsabilidade espiritual que acaba de lhe ser confiada. Talvez, mais do que gritos e aplausos de estádio, que tanto lembram a entrada de Jesus em Jerusalém, primeiro louvado e depois insultado, seja necessária uma dose de calma, uma espiritualidade da espera, aquela que sabe acompanhar silenciosamente os acontecimentos da história e da vida, procurando não sobrecarregar demasiadamente com expectativas aquele que acaba de assumir um papel tão importante.

 

sábado, 3 de maio de 2025

CONTAMINAÇÕES TEOLOGICAS

 





Paolo Cugini


As palavras de Kepler vêm à mente quando, em seus diários, ele descreve sua dificuldade, que terminou em desespero, ao tentar aplicar os dados matemáticos de Tycho Brahe para descrever a rotação da Terra em torno do Sol. Ele não podia, como ele mesmo admitiu, porque tinha em sua mente a ideia aristotélica de perfeição, que era identificada com a figura geométrica do círculo. Foi graças a uma intuição, depois de alguns anos de trabalho duro, que ele pensou em uma nova figura geométrica: a elipse. A partir daquele momento, os dados matemáticos começaram a se encaixar quase perfeitamente. Além disso, Thomas Khun nos disse que os paradigmas culturais não só exigem longos períodos para serem estruturados, mas também para mudar e abrir espaço para novos modelos interpretativos. Coletar os dados que a ciência nos fornece hoje, permanecendo abertos a novas possibilidades e, sobretudo, não as considerando como definitivas, é a atitude epistemológica fundamental para não cair na armadilha ideológica. O mundo em expansão que a ciência nos oferece, como vimos, exige a disposição de permanecermos abertos a coisas novas, e não de nos fecharmos em estruturas ideológicas de pensamento, como aconteceu e continua acontecendo. Abandonar as confortáveis instalações dogmáticas do pensamento que, com o tempo, tendem a se tornar rígidas, significa apreender os aspectos positivos do mundo interconectado. Há uma primeira indicação metodológica que vale a pena considerar, que é a capacidade de trabalhar em conjunto, de criar redes de competências. É uma indicação de que a Igreja, acostumada a tomar decisões sozinha, a gerir o conhecimento como algo privado, a ser controlada como um monopólio. O caminho sinodal iniciado pelo Papa Francisco, que retoma o estilo dialógico de Jesus posto em prática durante o Concílio Vaticano II, está na linha do mundo interconectado, que exige a disposição de caminhar juntos, de valorizar as competências de todos, na consciência de que a verdade, antes de ser um conteúdo a possuir e defender, é um dom que encontramos no caminho, especialmente quando com humildade nos colocamos ao lado dos outros nessa busca.

Por estas razões, o conceito de contaminação parece-me importante, para ser usado no contexto teológico e eclesiológico. Primeiro, teológico. Reconhecer que o Espírito está presente na história e sopra onde quer, significa colocar-se na humilde atitude de escuta. Só assim é possível captar o dom repentino de uma verdade que vem de outro lugar, que não é fruto da nossa cultura e da nossa elaboração conceitual. Esta é, na minha opinião, a mudança paradigmática que a teologia é chamada a fazer: não se apressar em elaborar doutrinas fechadas, mas esperar pacientemente por aqueles fragmentos de verdade que o Espírito despertou e está despertando em outras culturas. A disponibilidade para se surpreender com as manifestações do Mistério exige atenção ao tempo presente e, nessa perspectiva, o método fenomenológico pode auxiliar na pesquisa. Trata-se, então, de aprender a pensar a verdade não como um conceito metafísico, estruturado em dinâmicas lógicas rígidas, que a tornam impermeável a qualquer contato cultural e assim provocam tensões, mal-entendidos, guerras. O novo contexto cultural que recupera positivamente os dados da ciência, nos ajuda a pensar a verdade como um "campo" aberto às novidades que um mundo em expansão produz, sempre pronto a integrar o discurso que acolhe as contaminações que vêm de todas as direções. A verdade como novidade contínua que encontramos no caminho da vida, reconhecível pelos significados encontrados na semente do Evangelho: amor, justiça, bem, paz.

Em segundo lugar, o uso do conceito de contaminação no campo eclesiológico não deve ser considerado arriscado. Acredito que, justamente nesse nível, a mudança de paradigma não só é mais fácil de ser alcançada, como já está em andamento. É em pequenas comunidades que ocorrem encontros não planejados com elementos que vêm de diferentes mundos religiosos, como canções, ritos, símbolos, que a hierarquia não pode controlar, graças a Deus. É desnecessário, portanto, citar aqueles raros exemplos de contaminação religiosa que ocorreram ao longo dos séculos, como o caso de Matteo Ricci que, justamente por isso, foi combatido pela Igreja. Nesse caminho, a experiência eclesial amazônica pode ser uma espécie de laboratório, considerando a grande riqueza cultural e religiosa que advém de séculos de experiência. Não é por acaso que a Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA) vem estudando há alguns anos o desenvolvimento de um rito amazônico, também como resultado das reflexões surgidas no Sínodo sobre a Amazônia. É no cotidiano que é possível descobrir harmonias de conteúdos que vêm de outros caminhos e que têm o sabor do Evangelho. É nas comunidades que as contaminações ocorrem espontaneamente: basta deixá-las acontecer.