sexta-feira, 14 de novembro de 2025

A Teologia do dissenso

 




Uma ponte necessária entre doutrina e realidade vivida

Paolo Cugini

 

 

A teologia do dissenso representa um campo de reflexão e confronto que, embora se desenvolva dentro do panorama eclesial, carrega consigo um valor profundamente humano e comunitário. Ela nasce do reconhecimento de uma tensão constante: a que existe entre a firmeza da doutrina oficial da Igreja e a multiplicidade irredutível das experiências concretas vividas pelos fiéis. É nessa dialética que se joga uma partida delicada, capaz de suscitar questionamentos radicais sobre a própria função da doutrina e o papel da comunidade cristã no mundo contemporâneo.

O dissenso, ao contrário do que se pode pensar, não surge de um espírito de rebelião por si só, mas da percepção aguda de uma distância, por vezes dolorosa, entre os princípios absolutos afirmados pela hierarquia e a concretude da vida cotidiana. Muitas vezes, são justamente aqueles que sentem na própria pele essa discrepância que dão voz ao dissenso, não para negar a fé, mas para permanecer fiéis a ela no contexto de sua realidade. A doutrina, por sua natureza, tende a formular normas e princípios gerais, frequentemente baseados em abstrações e em um conhecimento parcial da complexidade humana. Consequentemente, pode parecer rígida e incapaz de abarcar toda a riqueza e as nuances da experiência individual e coletiva. É nesse espaço de descolamento que o dissenso teológico encontra sua razão de ser e se torna porta-voz das demandas daqueles que não se reconhecem em definições percebidas como demasiado abstratas, impessoais ou até prejudiciais para quem vive situações de marginalidade ou julgamento negativo.

O dissenso não se limita às disputas acadêmicas entre teólogos, mas permeia a vida das comunidades cristãs. Muitas vezes, manifesta-se de forma silenciosa, quase submersa: muitas pessoas, no seu dia a dia, escolhem caminhos pessoais que divergem das prescrições doutrinais, por vezes sem sequer terem consciência disso. Isso levanta uma questão fundamental: para que serve a doutrina, senão para guiar e sustentar o caminho de fé das pessoas? A doutrina, de fato, deveria ser um instrumento a serviço da vida, e não um fardo insuportável. Nessa perspectiva, o dissenso configura-se como um estímulo crítico, um elemento indispensável para evitar que a fé se reduza a um conjunto de regras abstratas. O eco das palavras de Jesus contra os fariseus, que impunham pesos doutrinais que eles próprios não conseguiam carregar, ressoa ainda hoje com força e atualidade.

A teologia do dissenso não se limita à constatação da distância entre doutrina e realidade, mas empenha-se em recolher, organizar e formalizar as contradições em argumentos sólidos. Seu objetivo é desmascarar as invenções doutrinais, ou seja, aquelas normas ou interpretações que se afastaram da essência da mensagem evangélica ou da vida real do povo de Deus. Por meio do confronto com a realidade vivida, o dissenso teológico busca devolver à doutrina sua função originária: ser uma palavra de esperança e de sentido para a existência concreta das pessoas. Nesse sentido, o dissenso não é inimigo da Igreja, mas um recurso precioso para sua caminhada de autenticidade e coerência.

A tensão entre ideal e realidade nunca poderá ser completamente resolvida. A teologia do dissenso, portanto, exerce a função de manter o diálogo aberto, de impedir que a doutrina se cristalize em abstrações estéreis e de garantir que a fé continue a dialogar com a vida. Trata-se de um equilíbrio delicado e dinâmico, em que o dissenso não destrói, mas constrói. Em última análise, a teologia do dissenso é uma ponte: não entre duas margens opostas, mas entre um ideal que corre o risco de se tornar inalcançável e uma realidade que pede para ser compreendida, acolhida e redimida. É graças a essa ponte que a fé pode continuar sendo, hoje como ontem, sal da terra e luz do mundo.

 

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

CURSO DE EXTENSÃO DE HOMILETICA - FACULDADE CATÓLICA DO AMAZONAS - PROGRAMAÇÃO

 




A Faculdade Católica do Amazonas em Parceria com o Setor Avenida Brasil da Arquidiocese de Manaus, organiza um curso de extensão em homiletica

 


FEVEREIRO 2026

 

 

CARGA HORÁRIA

35 h.

APRESENTAÇÃO

A Faculdade Católica do Amazonas, em consonância com as Diretrizes da Arquidiocese de Manaus no que diz respeito à formação dos ministérios dos cristãos leigas e leigos, vêm oferecer sua contribuição apresentando um curso de homilética para ajudar os ministros da Palavra e os catequistas a aprimorar a capacidade de transmissão dos conteúdos.

 

OBJETIVO GERAL

Proporcionar aos participantes uma formação sólida em homilética, capacitando-os a preparar, estruturar e apresentar sermões e mensagens religiosas de forma clara, relevante e eficaz, respeitando os princípios teológicos, a tradição e a realidade do público-alvo e oferecendo indicações para uma liturgia inculturada no contesto amazônico.

 

OBJETIVOS ESPECIFICOS

·         Compreender os fundamentos teóricos da homilética, incluindo sua história, conceitos principais e importância no contexto religioso.

·         Desenvolver habilidades de interpretação bíblica e aplicação prática dos textos sagrados às necessidades contemporâneas das comunidades.

·         Apreender elementos básicos de hermenêutica bíblica.

·         Promover a criatividade e a sensibilidade pastoral na elaboração de sermões, considerando contextos culturais e sociais diversos.

·         Ajudar os participantes do curso a compreender melhor o caminho da Igreja na Amazonia e em Manaus.

·         Estimular a reflexão ética e espiritual quanto à responsabilidade do pregador diante da comunidade.

·         Proporcionar oportunidades práticas de elaboração e apresentação de homilias, com feedback construtivo de colegas e orientadores.

·         Conhecer os documentos da Igreja católica sobre a interpretação da Bíblia e da homilética.

 

DESTINATÁRIOS

- Candidatos em formação inicial para o serviço futuro;

- Ministros Extraordinários da Eucaristia e da Palavra, do Culto e Catequistas que necessitam de atualização e formação permanente;

- Leigas e leigos com formação e atuação pastoral que podem ser multiplicadores do mesmo Curso em suas Paróquias ou Áreas Missionárias.

 

PERÍODO

Fevereiro 2026

 

LOCAL

Centro paroquial de são Vicente de Paulo, R. Gil Vicente – Compensa, Manaus – AM, 69035-300.

 

METODOLOGIA

Aulas presenciais com material didático apostilado, uso de vídeos, debates, laboratório litúrgico.

 

CORPO DOCENTE

 Dr. Paolo Cugini

 Me. George Vasconcelos

 

INVESTIMENTO

 110 reais (este valor compreende três almoços e deve ser entregue no momento da inscrição).

 

INSCRIÇÕES

 Secretária paroquial da paróquia são Vicente de Paulo, R. Gil Vicente – Compensa, Manaus – AM, 69035-300.

Celular: 92 9288 7836

Email: paroquiasvpam@gmail.com

CERTIFICAÇÃO

Ao término do Curso a partir de frequência mínima de 75%, será conferido o Certificado de Curso de Extensão Universitária em homilética.

 

CRONOGRAMA

Sexta 6 fevereiro

19-22: os ensinamentos do Vaticano II sobre a homilética. As indicações do documento Dei Verbum

Sábado 7 fevereiro

8-12: O diretório de homilética (primeira parte)

14-18: Como se elabora uma homilia: indicações práticas

 

Sexta 13 fevereiro

19-22: A igreja na Amazônia e em Manaus. Indicações para uma liturgia do rosto amazônico.

Sábado 14 fevereiro

8-12: A homilia na liturgia da Palavra. A tarefa do ministro da Palavra na liturgia.

14-18: as homilias mistagogicas da época dos Padres da Igreja e a pregação sobre os sacramentos na atualidade.

 

Sexta 20 fevereiro

19-22: A interpretação da Bíblia na Igreja

Sábado 21 fevereiro

8-12: Análise de algumas homilias de padres brasileiros famosos.

14-18: elaboração de uma homilia dominical. Indicações gerais de técnica homilética.

 

BIBLIOGRAFIA

Bíblia

DOCUMENTOS DO CONCILIO VATICANO II:

·         Dei Verbum

·         Lumem Gentium.

·         Sacrosantum Concilium.

PAOLO VI. Evangelii Nuntiandi. Sobre a evangelização n mundo contemporâneo. 1976.

FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 2013.

FRANCISCO, Papa. Desiderio Desideravi. Sobre a formação litúrgica do povo de Deus. 2022.

CNBB. Animação da vida litúrgica no Brasil. Documento 43/1989.

 CNBB. Ministério e celebração da Palavra. Documento 108/2019.

CNBB. Anúncio querigmático e evangelização fundamental. Subsídios doutrinais 4/2021.

CNBB. Instrução geral do Missal Romano e introdução ao Lecionário. 2023.

PONTÍFICIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja. 1993.

MAZZA Enrico. A Mistagogia. As catequeses litúrgicas do fim do século IV e seu método. São Paulo: Loyola, 2021.

CUGINI, P. A Bíblia e o problema da interpretação. A comunidade dos fiéis antes das Escrituras. IHU-Unisinos/2020. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/603187-a-biblia-e-o-problema-da-interpretacao-a-comunidade-dos-fieis-antes-das-escrituras-artigo-de-paolo-cugini

CUGINI, P. Liturgia num mundo em mudança. In Revista Eclesiástica Brasileira Petrópolis, volume 84, número 327, p. 8-28, Jan./Abr. 2024. https://revistaeclesiasticabrasileira.itf.edu.br/reb/article/view/5213/5002

 

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A teologia dos margens

 




Paolo Cugini

 

 

Existe uma teologia que não busca os holofotes, que não se apressa em obter reconhecimento nem se apega ao rigor dos grandes sistemas doutrinários. É a teologia marginal, aquela que nasce na sombra, entre os caminhos empoeirados da história, onde a vida é medida pelo peso dos dias e pelo som surdo dos fracassos cotidianos. Uma teologia que respira o odor acre do esquecimento e se acomoda onde o mundo desvia o olhar, convencido de que nada de importante possa brotar nesses lugares negligenciados.

Mas há muito a aprender debaixo das pontes, entre as mãos trêmulas daqueles que não encontraram abrigo, entre corpos cansados que buscam refúgio no vento da noite. Existem ensinamentos ocultos na fome que morde a cada amanhecer, nesses rostos que enfrentam o dia sem a certeza de uma refeição. Nestes lugares, a presença do Mistério se revela poderosa, quase como se quisesse desmentir a presunção das grandes cátedras. Aqui, entre as sombras das favelas latino-americanas, o Mistério se faz carne no cotidiano, insinua-se entre a luta pela vida e os abusos dos traficantes que decidem o destino de gerações inteiras.

O teólogo dos margens, aquele que para para ouvir o silêncio dessas ruas, descobre um rosto do Mistério que escapa aos olhos de quem se enclausura nos palácios dos grandes centros teológicos. Há algo prodigioso na vida dos pobres, uma sabedoria que não nasce dos livros, mas do contato direto com o sofrimento, a solidariedade e a resistência diária. É aqui que se experimenta a presença do Mistério de forma visceral, como um relâmpago que rasga a escuridão da noite e ilumina o sentido profundo de existir.

Se realmente, como narra o Evangelho, Jesus quis se identificar com os últimos, é sinal de que o caminho autêntico para o conhecimento do Mistério passa justamente por essa solidariedade com quem vive à margem. Roupas rasgadas e sujas, sapatos gastos, barracos no lugar de casas, comida que falta, trabalho inexistente, jovens privados de oportunidades, idosos abandonados: o que significa viver o Mistério nessas condições? Onde se esconde a luz entre as fendas da miséria?

Talvez sejam justamente aqueles que vivem na marginalidade que intuem o Mistério, pois ele se manifesta na fragilidade, na precariedade, na esperança que resiste contra toda esperança. E, no entanto, ao ler estas palavras, os miseráveis da história sorririam amargamente e devolveriam a pergunta: como podem aqueles que habitam em palácios suntuosos, com carteiras recheadas, perceber o Mistério? A resposta, eles já conhecem: impossível. Porque o Mistério não se deixa capturar pela abundância nem se manifesta na autossuficiência, mas habita na carne ferida do mundo, onde a vida luta para não sucumbir.

Assim, a teologia marginal, mesmo permanecendo à margem, guarda um tesouro de verdades muitas vezes ignorado. Ela nos recorda que o verdadeiro conhecimento não se conquista do alto, mas se acolhe ao se inclinar, ao se abaixar, ao compartilhar o pão amargo da existência. No fundo, o Mistério habita onde o coração se faz próximo, onde o homem se faz irmão, a mulher se faz irmã, onde a pobreza se torna ventre de luz e a marginalidade se transforma em lugar de revelação.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

DESCOLONIZAÇÃO E IDENTIDADE

 



Paolo Cugini

 

 

Falar de descolonização não é simplesmente abordar uma questão histórica ou política: é, antes, o início de um profundo processo de libertação, com o objetivo de recuperar a identidade que foi massacrada, distorcida e, muitas vezes, negada por aqueles que invadiram o nosso mundo. A descolonização, portanto, é um ato de coragem e resistência que visa restaurar a dignidade, a voz e as raízes das culturas e dos povos que sofreram o impacto violento da colonização. A colonização não é apenas um evento histórico, mas um fenômeno que deixou profundas cicatrizes no tecido social, cultural e psicológico das sociedades colonizadas. Línguas, tradições, religiões e até mesmo sistemas de pensamento foram frequentemente erradicados e substituídos pelos dos invasores. É a memória que a colonização tentou apagar, impondo uma nova ordem e uma nova narrativa ao mundo. Descolonizar significa, antes de tudo, libertar-nos das correntes invisíveis que continuam a influenciar a forma como nos vemos e como vemos o nosso passado. É uma jornada que envolve redescobrir as próprias raízes, recuperar tradições e reconsiderar valores originais. Não se trata apenas de recuperar terras ou autonomia política, mas de reconstruir a identidade coletiva, resgatar a própria história e rejeitar a narrativa imposta por outros.

A invasão e a dominação colonial frequentemente resultaram na perda de línguas nativas, na demonização de práticas espirituais locais, na destruição de sistemas educacionais indígenas e na marginalização do conhecimento tradicional. Esse massacre de identidades não se limitou ao passado, mas continua a reverberar no presente, na discriminação, no preconceito e na dificuldade que muitos povos têm em se reconhecer plenamente. Reivindicar o próprio mundo significa reconstruir o que foi destruído, redescobrir um senso de pertencimento e comunidade. É um processo que envolve cultura, arte, literatura e espiritualidade, e se manifesta no desejo de contar a própria história com as próprias palavras. O processo de descolonização serve para prevenir essa perda, restaurando o valor e a dignidade das raízes. No mundo contemporâneo, a descolonização não se refere apenas aos países que sofreram dominação colonial, mas também à necessidade de repensar estruturas de poder, modelos educacionais e relações culturais que ainda perpetuam lógicas de subordinação. A educação decolonial, a recuperação de línguas indígenas e a valorização de práticas artísticas tradicionais são ferramentas nesse processo. É um desafio que exige empenho, consciência e, acima de tudo, a vontade de ouvir as vozes daqueles que sofreram com a colonização.

Falar de descolonização, portanto, significa abrir um diálogo profundo com o passado e o futuro; significa reconhecer as feridas infligidas e trabalhar para curá-las; significa restaurar a dignidade e a liberdade daqueles que as perderam. É um processo que nos diz respeito a todos, porque somente recuperando nossa identidade podemos realmente construir um mundo mais justo, um mundo que respeite as diferenças. Não permitamos que nossa história, nossa cultura e nossa identidade se percam. Descolonizar é, agora mais do que nunca, um ato de renascimento

 

sábado, 25 de outubro de 2025

UMA IGREJA CONTAMINADA?

 




Paolo Cugini

Quais são os aspetos, os setores da teologia e da realidade eclesial que se tornaram espaços de contaminação e quais são as contaminações mais significativas? Em outras palavras, o que está a contaminar a Igreja, que temas, problemáticas e processos culturais estão a forçar o tecido eclesial a abrir-se ao confronto, a deixar-se contaminar? São estas as perguntas que procuram conduzir à vivência quotidiana, à realidade, para não permanecer sempre no plano teórico, mas mostrar como aquilo que analisámos não só tem consequências na vida das pessoas, mas já está em curso. A cultura do “depois”, que traz como marca visível o prefixo “pós”, rompeu barreiras que pareciam indestrutíveis e, deste modo, abriu e está a abrir novas brechas no pensamento, novas possibilidades existenciais e espirituais. Na minha opinião, é impossível permanecer imune a este processo, cada vez mais avassalador, em todos os níveis da cultura. Também a Igreja, portanto, não se pode dar ao luxo, e sobretudo ao risco, de se fechar em si mesma, continuando a lutar sozinha contra moinhos de vento, porque esse mundo contra o qual lutava já não existe; e se não se apercebe disso, alguém tem de lho dizer: sem ofensa, mas por amor.

Em primeiro lugar, convém esclarecer logo que, como defendia Thomas Kuhn, que elaborou o conceito epistemológico de paradigma, apesar das mudanças paradigmáticas, os sujeitos envolvidos não mudam de postura de um dia para o outro. Em outras palavras, não podemos esperar de uma instituição como a Igreja, que há séculos defende com unhas e dentes as suas verdades dogmáticas, que se torne imediatamente disponível para a contaminação: seria exigir o absurdo. Creio que, nesta primeira fase, é importante abrir brechas culturais sobre as quais seja possível estabelecer um diálogo aberto e sincero. O facto que emerge neste novo contexto é que já não é possível permanecer entrincheirado nas próprias posições. A Igreja tem um património espiritual, cultural e artístico imenso, que pode, a qualquer momento, colocar nas mesas de diálogo, com um estilo aberto, disponível, sem condenar ninguém, mas mostrando a capacidade de valorizar cada contributo cultural. Há tanta beleza fora dos recintos eclesiais, há imensa espiritualidade que vale a pena conhecer e reconhecer, há caminhos culturais que merecem toda a nossa atenção, mesmo que venham de longe e, à primeira vista, pareçam não ter nada a ver connosco. Tudo está ligado a tudo e nada fica fora desta intuição.

Há outro ponto importante a sublinhar. Se é verdade que a nível da hierarquia levará muito tempo até que esta se torne sensível às contaminações e se deixe contaminar, ao nível da base este processo de contaminação já está em curso há muito tempo. Quem vive o Evangelho no quotidiano da comunidade local raramente se preocupa com a ortodoxia das suas escolhas e afirmações. Quem vive no mundo do trabalho, da escola, no mercado, nas ruas ou nas praças respira diariamente um ar novo, entra em contacto com mundos diferentes, que influenciam o pensamento, as escolhas, o comportamento. Ao nível da base, a ortopraxia conta mais do que a ortodoxia. Além disso, é bom recordar o fluxo de contaminações que acontecem a toda a hora nas muitas plataformas de internet. Se é impossível defender-se, também porque não faz sentido, o esforço que deve ser feito é o de oferecer instrumentos tanto de acesso a estes novos mundos culturais e espirituais, como de interpretação. Nem tudo o que encontramos nas praças é bom e merece ser assimilado. Como proceder e que percurso seguir para ser capaz de captar o belo no mundo e ajudar outros no mesmo caminho? Quais são aquelas contaminações que já nos contaminam positivamente, mesmo sem darmos conta?

CONTAMINAÇÕES NUM MUNDO INTERCONECTADO

 




Paolo Cugini

 

 

Quais são as consequências do novo paradigma cultural que tem, como característica principal, a ruptura com o modelo passado? Se o paradigma muda, também deve mudar a forma de abordar a realidade, pois é justamente isso que foi colocado em discussão. No Ocidente, viemos de um percurso cultural marcado pela dureza, por uma razão e racionalidade que não deixam espaço não só para a imaginação, mas também para os sentimentos, as paixões, tudo aquilo que caracteriza a nossa vivência quotidiana. Ao longo dos séculos, houve uma exacerbação do princípio da racionalidade, que prevaleceu sobre tudo, anestesiando a realidade, tornando-a insensível, incapaz de abordar o mundo de outra forma que não fosse pela razão. Existe uma paixão dentro da história, nas nossas veias; existe um sentimento profundo que sente a vida de modo diferente do raciocínio. A natureza tem um coração, que sente a vida com critérios que escapam aos sistemas lógicos e dialéticos elaborados na modernidade. Por isso, tudo desmoronou. A natureza é paciente, tranquila, mas em determinado momento revolta-se contra as violências, os abusos, as violações, as falsificações. Estamos a assistir à revolta da natureza: ela já não aguenta mais. Era preciso esperar pela destruição do planeta para nos apercebermos de que havia algo no nosso modo ocidental de abordar a realidade que não funcionava?

Se os sistemas conceptuais colapsam, com eles quebram-se os procedimentos lógicos fechados, as muralhas conceptuais construídas à medida para se defender da natureza e da realidade. Se já não existem mais pavilhões conceptuais e sistemas de proteção, isso significa que o campo está aberto, que há espaço para tudo, que o mundo, daqui em diante, pode criar aquelas relações das quais é estruturado. É a este nível de compreensão que entra em jogo, no novo paradigma cultural, o conceito de contaminação.

Utilizo o conceito de contaminação de forma exclusivamente positiva. Também isto já é uma indicação importante. A saída do paradigma da modernidade, que colocava a razão e o sujeito no centro absoluto do discurso, apresenta o homem como parte de um todo. O pensamento ocidental, que se consolidou na época moderna, sempre colocou o homem no centro de um mundo em que tudo gira à sua volta e do qual pode usufruir. Este mundo desmoronou, não resistiu ao impacto com a realidade que, como nos ensina a física quântica, está toda interligada, o exato oposto do que pensava o paradigma moderno. Habituados há séculos a classificar a realidade, a colocar fronteiras, a julgar quem era digno e quem não era, ficámos sem resposta quando a realidade nos apresentou a fatura, comunicando-nos que tudo está interligado, que a relação é o conceito chave para quem quiser compreender o sentido das coisas. Se tudo está em relação com tudo, significa que já não faz sentido elaborar sistemas perfeitos, que não têm qualquer referência real, mas que servem apenas para justificar conceitualmente tomadas de posição pessoais, muitas vezes para justificar usurpações e poder político.

Contaminação é um conceito ao mesmo tempo fascinante e perigoso. Fascinante porque nos conduz a dimensões inesperadas, novas, que exigem disponibilidade para nos deixarmos questionar. Entrar em mundos contaminados e deixar-se contaminar significa compreender que, no novo paradigma cultural, a identidade já não é um conceito construído sobre valores predeterminados, mas forma-se caminhando no tempo, atentos a onde se pisam, mas sempre com o olhar voltado para a frente e com o espírito aberto ao encontro, à relação. Ao mesmo tempo, contudo, o conceito de contaminação é perigoso porque põe em causa tudo aquilo em que nos fixámos e que determinou a estrutura do nosso mundo. É perigoso porque exige o abandono das seguranças conceptuais, juntamente com a disponibilidade não só de construir algo novo, mas de se deixar desconstruir. O conceito de contaminação, nos vários campos do saber, não pode ser implementado num paradigma moderno, fechado nos seus próprios sistemas construídos com princípios a priori. Sobretudo, porém, o conceito de contaminação não funciona em contextos em que alguém pensa que detém a verdade absoluta. A contaminação coloca-nos em marcha à descoberta de novos mundos e, enquanto os descobrimos, compreendemos a nós próprios.

 

 

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

O PROBLEMA DOS DOCUMENTOS NA PÓS-MODERNIDADE

 




Paolo Cugini

Uma característica específica do período cultural em que estamos imersos é que não é fácil fazer uma síntese. Existem muitas variantes culturais do novo paradigma que rapidamente mudam de horizonte ou desaparecem. Este é um aspeto novo. Até há algumas décadas, a cultura ocidental possuía uma estrutura interna, chaves de leitura claras, uma orientação de fundo partilhada. O mesmo pode ser dito das culturas de outros povos, cada uma com uma história, uma tradição bem distinguível. O problema do historiador, do investigador, do arqueólogo que estuda o passado, sobretudo nas culturas milenares, consiste em localizar documentos e, uma vez encontrados, poder interpretá-los.

Nas culturas dos séculos passados, nota-se o esforço de transmitir o conhecimento adquirido, especialmente de forma oral e, em alguns casos, por escrito ou através de outros meios, como a pintura, o desenho, a arquitetura. Quando são encontrados artefactos arqueológicos, o entusiasmo é sempre elevado, pois aumenta a possibilidade de conhecer um pouco melhor aquele povo específico, as suas tradições, os seus costumes. Hoje, o discurso mudou completamente. O problema da atualidade é a infinidade de documentos que todos os dias são produzidos em todo o mundo e colocados na rede. Existe uma disponibilidade de material documental de todos os tipos como nunca antes se viu na história. Este aspeto, em vez de simplificar as coisas, complica-as imensamente. Quem faz investigação hoje deve aprender a navegar no oceano infinito de material documental sobre cada tema específico que se pretenda estudar e aprofundar. Passou-se de um material disponível escasso e muitas vezes em más condições, ao ponto de dificultar a identificação do autor e a autenticidade do documento em questão, mas que, ao mesmo tempo, permitia delimitar a pesquisa, para uma tal quantidade de documentos que torna quase impossível ao investigador realizar um trabalho o mais objetivo possível.

Há um dado que une esta impressionante quantidade de material documental proveniente de todas as partes do planeta e que caracteriza as culturas: o facto de que cada ramo do saber atual partilha o prefixo "pós". Poderíamos dizer que estamos na cultura do depois, com uma dupla atenção ao presente e à projeção para o futuro. Por um lado, a obsessão pela imagem, de como aparecemos perante os outros, impulsiona o comportamento no esforço diário de permanecer em sintonia com o que aparece no mercado. Ser considerado atual significa existir. Por outro lado, a insatisfação de viver num presente cheio de uma miríade de ideias e modos de ser, com os quais se torna difícil identificar-se e encontrar um caminho próprio, leva à busca pelo futuro. São inúmeros os projetos, as projeções em mundos distópicos, seja na literatura, seja nas artes, que permitem habitar idealmente outros mundos sem demasiadas preocupações com os dramas do presente.