sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

A LIBERDADE DAS MULHERES

 




O dia em que as mulheres deixaram a igreja: para sempre

 

Paolo Cugini

 

 

E chegou o dia. Havia um burburinho no ar, acompanhado de risos cúmplices. Uma correria silenciosa, mas alegre. Tinham combinado tudo em segredo, como nos velhos tempos de escola. Mas agora já eram mulheres crescidas e, justamente por isso, decidiram que naquele dia iriam embora para outro lugar. Tinham tomado a decisão de sair da igreja para sempre: sem regresso. Os últimos acontecimentos convenceram-nas de vez que ali não havia lugar para elas. Talvez, afinal, aquelas recusas constantes fizessem parte de uma voz do Mistério que orientava a história, o universo, a seguir por outros caminhos. O universo é imenso, então por que insistir em permanecer num lugar que, dia após dia, se revela hostil?

Esse era o pensamento das amigas que, cheias de alegria, naquele dia decidiram percorrer todas as ruas da vila para chamar todas as mulheres que encontravam e anunciar-lhes a grande novidade: o Mistério chama-nos a todas para ir além. Séculos e séculos a receber apenas recusas, incompreensões, ordens de silêncio. E depois, não se lembram de quando se divertiam a queimar-nos, a chamar-nos bruxas! E por que, então, haveríamos de ficar num sítio assim, que não nos quer, que nos trata mal? Vamos embora todas, gritavam, e dançando e cantando alegremente passavam de porta em porta. “Vamos, meninas! Somos livres! Não nos deixemos mais aprisionar pelos seus discursos mesquinhos.”

Foi assim que, a partir daquele dia, as igrejas ficaram sem nenhuma mulher: partiram todas. E nesse dia, ficou escrito nos céus e gravado nos sussurros do vento: “Serão tempos novos,” proclamava o silêncio das naves vazias, “pois as mulheres, filhas da terra e da coragem, ouviram o segredo pulsar do Mistério.” Assim, como ondas que abandonam a praia após longos séculos de tempestade, afastaram-se dos lugares que nunca as tinham amado, levando consigo a antiga chama da liberdade. E os sinos, que outrora chamavam para a reunião, permaneceram mudos a contemplar a revolução serena das almas em marcha.

Foi o fim de uma época e o nascer de outra, onde a voz das mulheres, finalmente liberta das correntes da invisibilidade, ecoou pelas vielas, nas praças, sob o céu infinito: “Não haverá mais prisão que nos possa deter, nem palavra que nos faça calar. De hoje em diante, a vida escreve-se noutro lugar.” E ainda hoje, quem escuta com o coração aberto pode ouvi-las, dançando leves na fronteira entre o velho e o novo mundo, anunciando que onde a liberdade chama, nenhum coração ficará acorrentado.

 

 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Redescobrir o Mistério para além da ortodoxia

 




Paolo Cugini

 

 

No silêncio que precede toda grande virada, ergue-se uma voz que convida a desviar do caminho já trilhado. É a voz dos profetas, aqueles que escolhem ir contra, atravessar a teologia pelo outro lado da ortodoxia. Seu caminho é solitário, frequentemente criticado, mas necessário: só quem ousa desafiar o senso comum pode descobrir o rosto oculto da verdade, escondido justamente onde ninguém ousa olhar.

A profecia, neste contexto, não é apenas antecipação do futuro, mas também ruptura com o passado. Quem insiste em identificar a vida com a norma, com o que já foi dito e feito, condena-se a uma esterilidade espiritual, incapaz de captar a embriaguez do verdadeiro. A verdade não se encontra onde todos apontam, mas no caminho inverso, na direção oposta, lá onde a sede de vida, de justiça e de amor impulsiona a buscar o novo sob as cinzas do antigo.

Assim, a teologia “na contramão” torna-se desejo de autenticidade, reconhecimento de que o Mistério não se deixa aprisionar em fórmulas herdadas, mas se esconde aos olhos de quem se julga guardião do passado. É aqui que brota a água viva, não da memória fossilizada, mas do presente que inquieta e renova, como o vento que sacode os galhos e convida a sair da segurança dos hábitos.

Ir contra, então, é um ato profético: exige coragem e espírito crítico e, sobretudo, a capacidade de se deixar interrogar pelo desconhecido, pelo lado da história que ainda não tem nome. Só quem abraça a incerteza descobre que a fé é caminho, nunca posse; o amor é risco, nunca simples adesão; a justiça é sede, nunca prêmio. Nessa tensão vive a verdadeira teologia: não no controle, mas no abandono confiante ao Mistério que se revela apenas a quem ousa ir contra.

A própria fé não nasce da segurança, mas daquele passo incerto que leva para fora do rebanho. A história da espiritualidade é atravessada por mulheres e homens que souberam escutar a voz interior contrária, escolher o caminho menos trilhado e, por isso, geraram novidade. Hoje, mais do que nunca, em tempos de crise e transformação, voltar a profetizar a partir da teologia do outro lado é um gesto de responsabilidade e esperança, um convite a deixar-se surpreender pelo Mistério que nos precede e acompanha, para além de qualquer cerca de doutrina.

 

 

domingo, 30 de novembro de 2025

A FERTILIDADE DA HERESIA

 



Paolo Cugini

 

 

A palavra "heresia" frequentemente evoca imagens de fogueiras, perseguições e condenações. Tradicionalmente, o termo tem sido associado a desvios da doutrina oficial, um estigma a ser evitado a todo custo. Contudo, se observarmos a história das ideias com um olhar menos dogmático e mais aberto, uma verdade inesperada emerge: a heresia, longe de ser meramente destrutiva, muitas vezes se mostra extraordinariamente frutífera. Ela atua como motor de mudança, estímulo à reflexão e, por vezes, como semente de novas visões de mundo.

O pensamento humano sempre se desenvolveu através do confronto entre o que é considerado verdadeiro e o que é considerado desviante. A ortodoxia, por sua própria natureza, tende a cristalizar o conhecimento; a heresia, por outro lado, questiona-o, provoca-o, força-o a defender-se. É nessa dialética que muitas vezes surgem as ideias mais inovadoras. Sem o estímulo da heresia, muitas doutrinas teriam permanecido imóveis, incapazes de se adaptar às novas necessidades e exigências da sociedade. Novamente, sem a heresia, provavelmente não haveria dogma.

A história da filosofia e da teologia está repleta de figuras que, acusadas de heresia, posteriormente influenciaram profundamente o pensamento ocidental. Considere Giordano Bruno, que, ao desafiar as concepções cosmológicas de sua época, abriu caminho para uma visão infinitamente mais ampla do universo. Ou Galileu Galilei, cuja heresia científica lançou as bases para a revolução científica moderna. No campo religioso, heresias medievais como as dos cátaros e dos valdenses, embora duramente reprimidas, contribuíram para um debate espiritual e social mais matizado.

Não menos importante é o papel da heresia na arte e na literatura. Muitas vezes, artistas e escritores que ousaram desafiar os cânones e normas de sua época foram inicialmente acusados ​​de heresia estética ou moral, mas essa mesma capacidade de ir contra a corrente levou ao surgimento de novos estilos, gêneros e movimentos. Dante Alighieri, com sua visão pessoal da vida após a morte, ou Caravaggio, com seu uso revolucionário da luz, são exemplos de como a heresia pode ser uma fonte de renovação criativa.

A heresia não se restringe a ideias religiosas ou artísticas, mas também abrange modelos sociais. Movimentos inicialmente considerados heréticos, como o abolicionismo, o feminismo ou as primeiras reivindicações por direitos civis, contribuíram para transformar radicalmente a sociedade. Embora seja verdade que a heresia possa ameaçar a ordem estabelecida, é igualmente verdade que ela representa uma preciosa oportunidade de crescimento e evolução. Sua fecundidade reside precisamente na capacidade de romper com os padrões, propor alternativas e estimular o pensamento crítico. Em um mundo em rápida transformação, a tentação de se apegar às próprias certezas é grande, mas a história nos ensina que apenas aqueles que sabem ouvir as vozes heréticas são capazes de se renovar. Em última análise, como disse o poeta: Não há inovação sem heresia.

 

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

A Teologia do dissenso

 




Uma ponte necessária entre doutrina e realidade vivida

Paolo Cugini

 

 

A teologia do dissenso representa um campo de reflexão e confronto que, embora se desenvolva dentro do panorama eclesial, carrega consigo um valor profundamente humano e comunitário. Ela nasce do reconhecimento de uma tensão constante: a que existe entre a firmeza da doutrina oficial da Igreja e a multiplicidade irredutível das experiências concretas vividas pelos fiéis. É nessa dialética que se joga uma partida delicada, capaz de suscitar questionamentos radicais sobre a própria função da doutrina e o papel da comunidade cristã no mundo contemporâneo.

O dissenso, ao contrário do que se pode pensar, não surge de um espírito de rebelião por si só, mas da percepção aguda de uma distância, por vezes dolorosa, entre os princípios absolutos afirmados pela hierarquia e a concretude da vida cotidiana. Muitas vezes, são justamente aqueles que sentem na própria pele essa discrepância que dão voz ao dissenso, não para negar a fé, mas para permanecer fiéis a ela no contexto de sua realidade. A doutrina, por sua natureza, tende a formular normas e princípios gerais, frequentemente baseados em abstrações e em um conhecimento parcial da complexidade humana. Consequentemente, pode parecer rígida e incapaz de abarcar toda a riqueza e as nuances da experiência individual e coletiva. É nesse espaço de descolamento que o dissenso teológico encontra sua razão de ser e se torna porta-voz das demandas daqueles que não se reconhecem em definições percebidas como demasiado abstratas, impessoais ou até prejudiciais para quem vive situações de marginalidade ou julgamento negativo.

O dissenso não se limita às disputas acadêmicas entre teólogos, mas permeia a vida das comunidades cristãs. Muitas vezes, manifesta-se de forma silenciosa, quase submersa: muitas pessoas, no seu dia a dia, escolhem caminhos pessoais que divergem das prescrições doutrinais, por vezes sem sequer terem consciência disso. Isso levanta uma questão fundamental: para que serve a doutrina, senão para guiar e sustentar o caminho de fé das pessoas? A doutrina, de fato, deveria ser um instrumento a serviço da vida, e não um fardo insuportável. Nessa perspectiva, o dissenso configura-se como um estímulo crítico, um elemento indispensável para evitar que a fé se reduza a um conjunto de regras abstratas. O eco das palavras de Jesus contra os fariseus, que impunham pesos doutrinais que eles próprios não conseguiam carregar, ressoa ainda hoje com força e atualidade.

A teologia do dissenso não se limita à constatação da distância entre doutrina e realidade, mas empenha-se em recolher, organizar e formalizar as contradições em argumentos sólidos. Seu objetivo é desmascarar as invenções doutrinais, ou seja, aquelas normas ou interpretações que se afastaram da essência da mensagem evangélica ou da vida real do povo de Deus. Por meio do confronto com a realidade vivida, o dissenso teológico busca devolver à doutrina sua função originária: ser uma palavra de esperança e de sentido para a existência concreta das pessoas. Nesse sentido, o dissenso não é inimigo da Igreja, mas um recurso precioso para sua caminhada de autenticidade e coerência.

A tensão entre ideal e realidade nunca poderá ser completamente resolvida. A teologia do dissenso, portanto, exerce a função de manter o diálogo aberto, de impedir que a doutrina se cristalize em abstrações estéreis e de garantir que a fé continue a dialogar com a vida. Trata-se de um equilíbrio delicado e dinâmico, em que o dissenso não destrói, mas constrói. Em última análise, a teologia do dissenso é uma ponte: não entre duas margens opostas, mas entre um ideal que corre o risco de se tornar inalcançável e uma realidade que pede para ser compreendida, acolhida e redimida. É graças a essa ponte que a fé pode continuar sendo, hoje como ontem, sal da terra e luz do mundo.

 

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

CURSO DE EXTENSÃO DE HOMILETICA - FACULDADE CATÓLICA DO AMAZONAS - PROGRAMAÇÃO

 




A Faculdade Católica do Amazonas em Parceria com o Setor Avenida Brasil da Arquidiocese de Manaus, organiza um curso de extensão em homiletica

 


FEVEREIRO 2026

 

 

CARGA HORÁRIA

35 h.

APRESENTAÇÃO

A Faculdade Católica do Amazonas, em consonância com as Diretrizes da Arquidiocese de Manaus no que diz respeito à formação dos ministérios dos cristãos leigas e leigos, vêm oferecer sua contribuição apresentando um curso de homilética para ajudar os ministros da Palavra e os catequistas a aprimorar a capacidade de transmissão dos conteúdos.

 

OBJETIVO GERAL

Proporcionar aos participantes uma formação sólida em homilética, capacitando-os a preparar, estruturar e apresentar sermões e mensagens religiosas de forma clara, relevante e eficaz, respeitando os princípios teológicos, a tradição e a realidade do público-alvo e oferecendo indicações para uma liturgia inculturada no contesto amazônico.

 

OBJETIVOS ESPECIFICOS

·         Compreender os fundamentos teóricos da homilética, incluindo sua história, conceitos principais e importância no contexto religioso.

·         Desenvolver habilidades de interpretação bíblica e aplicação prática dos textos sagrados às necessidades contemporâneas das comunidades.

·         Apreender elementos básicos de hermenêutica bíblica.

·         Promover a criatividade e a sensibilidade pastoral na elaboração de sermões, considerando contextos culturais e sociais diversos.

·         Ajudar os participantes do curso a compreender melhor o caminho da Igreja na Amazonia e em Manaus.

·         Estimular a reflexão ética e espiritual quanto à responsabilidade do pregador diante da comunidade.

·         Proporcionar oportunidades práticas de elaboração e apresentação de homilias, com feedback construtivo de colegas e orientadores.

·         Conhecer os documentos da Igreja católica sobre a interpretação da Bíblia e da homilética.

 

DESTINATÁRIOS

- Candidatos em formação inicial para o serviço futuro;

- Ministros Extraordinários da Eucaristia e da Palavra, do Culto e Catequistas que necessitam de atualização e formação permanente;

- Leigas e leigos com formação e atuação pastoral que podem ser multiplicadores do mesmo Curso em suas Paróquias ou Áreas Missionárias.

 

PERÍODO

Fevereiro 2026

 

LOCAL

Centro paroquial de são Vicente de Paulo, R. Gil Vicente – Compensa, Manaus – AM, 69035-300.

 

METODOLOGIA

Aulas presenciais com material didático apostilado, uso de vídeos, debates, laboratório litúrgico.

 

CORPO DOCENTE

 Dr. Paolo Cugini

 Me. George Vasconcelos

 

INVESTIMENTO

 110 reais (este valor compreende três almoços e deve ser entregue no momento da inscrição).

 

INSCRIÇÕES

 Secretária paroquial da paróquia são Vicente de Paulo, R. Gil Vicente – Compensa, Manaus – AM, 69035-300.

Celular: 92 9288 7836

Email: paroquiasvpam@gmail.com

CERTIFICAÇÃO

Ao término do Curso a partir de frequência mínima de 75%, será conferido o Certificado de Curso de Extensão Universitária em homilética.

 

CRONOGRAMA

Sexta 6 fevereiro

19-22: os ensinamentos do Vaticano II sobre a homilética. As indicações do documento Dei Verbum

Sábado 7 fevereiro

8-12: O diretório de homilética (primeira parte)

14-18: Como se elabora uma homilia: indicações práticas

 

Sexta 13 fevereiro

19-22: A igreja na Amazônia e em Manaus. Indicações para uma liturgia do rosto amazônico.

Sábado 14 fevereiro

8-12: A homilia na liturgia da Palavra. A tarefa do ministro da Palavra na liturgia.

14-18: as homilias mistagogicas da época dos Padres da Igreja e a pregação sobre os sacramentos na atualidade.

 

Sexta 20 fevereiro

19-22: A interpretação da Bíblia na Igreja

Sábado 21 fevereiro

8-12: Análise de algumas homilias de padres brasileiros famosos.

14-18: elaboração de uma homilia dominical. Indicações gerais de técnica homilética.

 

BIBLIOGRAFIA

Bíblia

DOCUMENTOS DO CONCILIO VATICANO II:

·         Dei Verbum

·         Lumem Gentium.

·         Sacrosantum Concilium.

PAOLO VI. Evangelii Nuntiandi. Sobre a evangelização n mundo contemporâneo. 1976.

FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. 2013.

FRANCISCO, Papa. Desiderio Desideravi. Sobre a formação litúrgica do povo de Deus. 2022.

CNBB. Animação da vida litúrgica no Brasil. Documento 43/1989.

 CNBB. Ministério e celebração da Palavra. Documento 108/2019.

CNBB. Anúncio querigmático e evangelização fundamental. Subsídios doutrinais 4/2021.

CNBB. Instrução geral do Missal Romano e introdução ao Lecionário. 2023.

PONTÍFICIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja. 1993.

MAZZA Enrico. A Mistagogia. As catequeses litúrgicas do fim do século IV e seu método. São Paulo: Loyola, 2021.

CUGINI, P. A Bíblia e o problema da interpretação. A comunidade dos fiéis antes das Escrituras. IHU-Unisinos/2020. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/603187-a-biblia-e-o-problema-da-interpretacao-a-comunidade-dos-fieis-antes-das-escrituras-artigo-de-paolo-cugini

CUGINI, P. Liturgia num mundo em mudança. In Revista Eclesiástica Brasileira Petrópolis, volume 84, número 327, p. 8-28, Jan./Abr. 2024. https://revistaeclesiasticabrasileira.itf.edu.br/reb/article/view/5213/5002

 

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A teologia dos margens

 




Paolo Cugini

 

 

Existe uma teologia que não busca os holofotes, que não se apressa em obter reconhecimento nem se apega ao rigor dos grandes sistemas doutrinários. É a teologia marginal, aquela que nasce na sombra, entre os caminhos empoeirados da história, onde a vida é medida pelo peso dos dias e pelo som surdo dos fracassos cotidianos. Uma teologia que respira o odor acre do esquecimento e se acomoda onde o mundo desvia o olhar, convencido de que nada de importante possa brotar nesses lugares negligenciados.

Mas há muito a aprender debaixo das pontes, entre as mãos trêmulas daqueles que não encontraram abrigo, entre corpos cansados que buscam refúgio no vento da noite. Existem ensinamentos ocultos na fome que morde a cada amanhecer, nesses rostos que enfrentam o dia sem a certeza de uma refeição. Nestes lugares, a presença do Mistério se revela poderosa, quase como se quisesse desmentir a presunção das grandes cátedras. Aqui, entre as sombras das favelas latino-americanas, o Mistério se faz carne no cotidiano, insinua-se entre a luta pela vida e os abusos dos traficantes que decidem o destino de gerações inteiras.

O teólogo dos margens, aquele que para para ouvir o silêncio dessas ruas, descobre um rosto do Mistério que escapa aos olhos de quem se enclausura nos palácios dos grandes centros teológicos. Há algo prodigioso na vida dos pobres, uma sabedoria que não nasce dos livros, mas do contato direto com o sofrimento, a solidariedade e a resistência diária. É aqui que se experimenta a presença do Mistério de forma visceral, como um relâmpago que rasga a escuridão da noite e ilumina o sentido profundo de existir.

Se realmente, como narra o Evangelho, Jesus quis se identificar com os últimos, é sinal de que o caminho autêntico para o conhecimento do Mistério passa justamente por essa solidariedade com quem vive à margem. Roupas rasgadas e sujas, sapatos gastos, barracos no lugar de casas, comida que falta, trabalho inexistente, jovens privados de oportunidades, idosos abandonados: o que significa viver o Mistério nessas condições? Onde se esconde a luz entre as fendas da miséria?

Talvez sejam justamente aqueles que vivem na marginalidade que intuem o Mistério, pois ele se manifesta na fragilidade, na precariedade, na esperança que resiste contra toda esperança. E, no entanto, ao ler estas palavras, os miseráveis da história sorririam amargamente e devolveriam a pergunta: como podem aqueles que habitam em palácios suntuosos, com carteiras recheadas, perceber o Mistério? A resposta, eles já conhecem: impossível. Porque o Mistério não se deixa capturar pela abundância nem se manifesta na autossuficiência, mas habita na carne ferida do mundo, onde a vida luta para não sucumbir.

Assim, a teologia marginal, mesmo permanecendo à margem, guarda um tesouro de verdades muitas vezes ignorado. Ela nos recorda que o verdadeiro conhecimento não se conquista do alto, mas se acolhe ao se inclinar, ao se abaixar, ao compartilhar o pão amargo da existência. No fundo, o Mistério habita onde o coração se faz próximo, onde o homem se faz irmão, a mulher se faz irmã, onde a pobreza se torna ventre de luz e a marginalidade se transforma em lugar de revelação.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

DESCOLONIZAÇÃO E IDENTIDADE

 



Paolo Cugini

 

 

Falar de descolonização não é simplesmente abordar uma questão histórica ou política: é, antes, o início de um profundo processo de libertação, com o objetivo de recuperar a identidade que foi massacrada, distorcida e, muitas vezes, negada por aqueles que invadiram o nosso mundo. A descolonização, portanto, é um ato de coragem e resistência que visa restaurar a dignidade, a voz e as raízes das culturas e dos povos que sofreram o impacto violento da colonização. A colonização não é apenas um evento histórico, mas um fenômeno que deixou profundas cicatrizes no tecido social, cultural e psicológico das sociedades colonizadas. Línguas, tradições, religiões e até mesmo sistemas de pensamento foram frequentemente erradicados e substituídos pelos dos invasores. É a memória que a colonização tentou apagar, impondo uma nova ordem e uma nova narrativa ao mundo. Descolonizar significa, antes de tudo, libertar-nos das correntes invisíveis que continuam a influenciar a forma como nos vemos e como vemos o nosso passado. É uma jornada que envolve redescobrir as próprias raízes, recuperar tradições e reconsiderar valores originais. Não se trata apenas de recuperar terras ou autonomia política, mas de reconstruir a identidade coletiva, resgatar a própria história e rejeitar a narrativa imposta por outros.

A invasão e a dominação colonial frequentemente resultaram na perda de línguas nativas, na demonização de práticas espirituais locais, na destruição de sistemas educacionais indígenas e na marginalização do conhecimento tradicional. Esse massacre de identidades não se limitou ao passado, mas continua a reverberar no presente, na discriminação, no preconceito e na dificuldade que muitos povos têm em se reconhecer plenamente. Reivindicar o próprio mundo significa reconstruir o que foi destruído, redescobrir um senso de pertencimento e comunidade. É um processo que envolve cultura, arte, literatura e espiritualidade, e se manifesta no desejo de contar a própria história com as próprias palavras. O processo de descolonização serve para prevenir essa perda, restaurando o valor e a dignidade das raízes. No mundo contemporâneo, a descolonização não se refere apenas aos países que sofreram dominação colonial, mas também à necessidade de repensar estruturas de poder, modelos educacionais e relações culturais que ainda perpetuam lógicas de subordinação. A educação decolonial, a recuperação de línguas indígenas e a valorização de práticas artísticas tradicionais são ferramentas nesse processo. É um desafio que exige empenho, consciência e, acima de tudo, a vontade de ouvir as vozes daqueles que sofreram com a colonização.

Falar de descolonização, portanto, significa abrir um diálogo profundo com o passado e o futuro; significa reconhecer as feridas infligidas e trabalhar para curá-las; significa restaurar a dignidade e a liberdade daqueles que as perderam. É um processo que nos diz respeito a todos, porque somente recuperando nossa identidade podemos realmente construir um mundo mais justo, um mundo que respeite as diferenças. Não permitamos que nossa história, nossa cultura e nossa identidade se percam. Descolonizar é, agora mais do que nunca, um ato de renascimento